Epitácio Macário e Raymundo Netto
Haveria algo nesse mundo que não seja informado
pela busca e pelo gasto do dinheiro? Fui à leitura do livro de Raymundo Netto (Quando o amor é de graça – Editora
Demócrito Dummar) com essa pergunta em mente.
A escrita
inteligente com que me deparei não apenas indicou propostas para a questão, como
me conduziu, a refletir, pelos dutos da existência. Mediados pelas crônicas,
fatos corriqueiros foram sendo reconstruídos na tessitura humana que lhes faz
serem acontecimentos, conteúdo e forma.
O domínio da
língua, a sagacidade, a crítica mordaz, o lirismo, a ironia, o humor... tudo se
mistura e faz o leitor transitar do riso à circunspecção num estalo de dedos.
Como é próprio do
gênero, cada crônica encerra um posicionamento do escritor que, no caso desse
livro, é sempre inquietante. Quem gosta de livros confortantes, sugiro que
leia... outro. Pois, ao meu ver, o trato daquilo que nos aparece como banal – e
muito propício ao fuxico e à autoajuda – aqui é a maneira de Netto disfarçar
algo de profundo.
Ao que me pareceu,
nada é de graça nesse livro.
Declaro-me, desde
já, muito satisfeito por saber de outro cara para quem ser feliz, em meio ao
sofrimento em escala social, é egoísmo em estado puro. Um sujeito condenado à
treva por preferir falar da vida e do amor gratuito, num mundo onde a glória
performática, o “dinheiro e o poder” são os “verdadeiros deuses”. Encontro-me
nesse compadre Raymundo que tem “problema com relógio de ponto e com extratos
bancários”, que gosta “de letras, não de números” e por isso “não se adapta ao
dinheiro” – este que é o “grande olho da providência”, fomentando a “selvageria
entre os iguais numa sociedade desigual”.
Deparei-me com um
cabra ciente de que a fealdade é uma bênção, pois “a beleza se perde, mas a
feiura é permanente, e com o tempo e o costume passa a ser compreendida junto
com a paisagem”. Ora, não depender dos bisturis, do Botox e das longas sessões
em salões “de beleza”, para manter o que se acha que tem, não já é algo para se
comemorar?! Além do mais, temos tido prova de sobra no Brasil de que tudo pode
piorar... Então, compadre Raymundo, o melhor é deixar como estamos!
O que me prende
nessas passagens é a profunda verdade escondida na molecagem: a autenticidade
requer a coragem de assumir-se como se é. Isto não é fácil para quem traz em si
uma pulsão para o diferente do costumeiro, um olhar agudo sobre tragédia e
glória humanas.
O sujeito lírico
que aparece e se esconde no livro é um destes que remam contra a maré montante.
Este leitor
experimentou lambendo os beiços os disparos satíricos contra a performance de escritores que jamais
se perguntaram “literatura para quem?”. Os ditos intelectuais que se acham
cultos “no sentido erudito do termo e escrevem com monotonia ou ilegibilidade,
em experimentalismos a lhes acobertar a ausência ou excessos de conteúdo pelo
garimpo artificial do vernáculo”.
Eu sei que essa
maneira de questionar seu próprio mister é ácida e causa efeito no meio que
Raymundo Netto frequenta. Com essa falta de modos, “esse sujeitinho ridículo”
abre o maior pau. Comprazo-me com isto não somente porque estou assistindo na
arquibancada, pois no meio acadêmico a briga é a mesma, mas pela razão da
crítica e também porque confusão só presta grande!
Ora, ladys and gentlemen, não seria o caso de
assumir a condição de escritor num país de não-leitores?! Para que a empáfia e
o hermetismo? Não seria melhor expressar, mesmo que doa, o “drama do escritor”
em dia de lançamento?... Esperar o público com mesas replenas de salgados e
guaranás, atender a um, dois ou três com autógrafos – e quando for mais de
cinco, pode ter certeza que são familiares que jamais lerão o livro. E depois
carregar as caixas de exemplares que sobraram – quase, quando não, todos! – de volta
para o porta-malas do carro, utilizando-se, inclusive, da força de trabalho da
esposa, que é “a maior vítima de todo autor”.
Pois sob o lápis de
Netto, o reconhecimento desse drama se derrama como crítica social na epopeia
do autor que tem de morrer para ver sua obra publicada. Ora, “Escritor bom é
escritor morto”. E naquele que, “após sucessivos insucessos, entregou-se a
Jesus e chegou à conclusão de que a literatura é coisa do cão”. Sim, só pode
ser coisa do demônio a derrotar alguns, matar outros e corroer o caráter de
tantos no inebriante sonho do sucesso editorial. A trágica condição de seu
mister aparece ainda no relato do congresso de escritores em “Brás ilha” onde
os poetas “reunidos em palestras se perguntavam – com a pouca audiência
presente era quase ‘se’ mesmo – por que não conseguiam se projetar
nacionalmente”.
Para este leitor, o
que temos produzido nesse país é precisamente a barbárie em escala social: a
que se abate sobre os ilustrados e endinheirados, desprovidos de qualquer senso
ético, e a que se alastra sobre as maiorias que vivem da mão para a boca.
Incrustado nessa
díade, onde o atraso alimenta e é base do moderno diria Francisco de Oliveira,
o escritor labuta com os mais difíceis demônios. Parafraseando Carlos Nelson
Coutinho, diria que um deles é a quase sempre necessidade de se mover sob a
sombra do poder dominante. Servo culto, mais servo do que os outros, pois em
condições de saber-se assim e escolher. Se a opção for outra, a busca da
verdade e da autenticidade, o preço a pagar não é barato.
A mim me pareceu
que Raymundo Netto saltou para dentro dessa arena e escolheu seu lado.
A sátira e a ironia
são o método e o instrumento com que o autor dessas páginas esgrima a situação
nacional e a sua inserção – nela – e dos seus irmãos de ofício. E, assim, se há
duas maneiras de se tornar escritor – “a primeira é escrevendo, que é a mais difícil
e demorosa” e a “segunda é entrando em academias”, ele optou pela terceira:
escrever com verdade e autenticidade.
Esta sua escolha o
autor revela nas confissões à forca, onde se diz um “sujeitinho ridículo, como
as cartas de amor de Pessoa, com a fria esperança de um dia liberdade, de uma
tarde compreensão e de uma noite ser silêncio”. Alhures, se declara “ligado a
saber mais, e não só, das coisas do âmago das gentes, de suas vidas
corriqueiras, das coisas engraçadas de não se rir, ou mesmo daquelas de se
lascar de rir, mas de íntimas humanidades, folhas de não se deixar levar ao
vento”. Falar das gentes, das íntimas humanidades... eis a matéria do livro.
E se é assim, não
poderia deixar de tratar do amor, que é mote da obra, insumo e invento das
íntimas humanidades.
As cuteladas contra
a alienação em sua crítica social não é já, de início, uma declaração de
compromisso – de amor? – para com as gentes postas à margem do progresso
econômico e das letras?
Há de se dizer que
a severidade da crítica e a ironia ácida não rimam com o amor – que é sempre
sublime e desliza leve em nuvens de contentamento. O reflexo lírico seria o
estilo mais adequado para falar desta que é, na Filosofia, uma das grandes
virtudes.
Ora, ora, meu
compadre, para Raymundo Netto não é assim, não! Nem o amor é apenas doce ou
azedo, tampouco devem ser as metáforas que dele sejam o signo.
Este leitor
compreendeu que em Quando o amor é de
graça tudo tem um preço: o pão e o livro, as calcinhas e a poesia, a
felicidade e a dor, o ser e o existir. Preço que se mede em moeda, em
reprovações, no investimento de energia física, moral e psíquica.
É como quando ele
trata de vida e morte com a inteligência mordaz de quem sabe que a primeira é o
início da segunda e esta o fim daquela. Siamesas! Assim é o amor na barulhenta
conversa entre pacientes numa antessala do consultório psicanalítico. O preço
para eles: a dor. “Aqueles que lhes estão à sombra são inevitavelmente
arrastados à rósea infelicidade”, vaticina um paciente.
Uma contradição
interna, amor e felicidade vs dor e
tristeza caminham de par nas páginas lidas e sentidas.
Há nessas paragens,
num “Coração de bolso”, uma tristeza de quem já perdeu ao ganhar, pois se é uma
ferida que dói e não se sente – o amor – às vezes a dor permanece quando ele
acaba.
Esta lembrança que
fica precisa ser lavada com água pura da literatura para, assim, escorrer em
correnteza demorosa. Da mesma maneira que “a conquista de afeto se dá nos
degraus do calendário, na ciranda do relógio”, a reconversão de sua perda em
pulsão de vida segue o mesmo ritmo. Não se pode arrancar a golpes de automação
as reminiscências do tempo em que se amou e foi amado.
Daí a contradição
do amor: exigir do amante a mobilização de todas as forças para erguê-lo e,
depois, para desconstruí-lo. Custa caro! Fica o desejo, porém, da conquista do
afeto “que se dá com gratuidade e tolerância, no reconhecimento de nossas
existências, imperfeições e afinidades”.
A teimosia dessa
busca encontra amparo na prosa poética de Raymundo Netto. Sua literatura planta
na aluvião e irriga na aridez dos tempos do amor, sem deixar de registar
acidentes e dores do percurso. Mais que um atirar-se numa jornada rumo ao
outro, o amor é busca da felicidade num caminho para o si-mesmo do ser amante.
Para nosso escriba, “Quando nós conseguirmos ser nós mesmos, nos encontrarmos,
fatalmente ela também nos encontrará, e se deitará conosco em estrelada noite
de esfuziante e perfeito amor”.
Que edificante!
Os escaninhos da
escrita nos conduzem ora ao mar, ora à terra, ora ao espaço, ora a lugar nenhum
quando se trata do amor romântico. Em “Crônica desamada”, o sujeito lírico
posiciona-se, mais uma vez, entre o talvez e o provavelmente. O amor é
possibilidades...
Eis que irrompe,
porém, um tipo de sentimento que prende sem exigir, ata nas cordas do coração e
desata os nós da existência a facilitar o viver as horas, os dias. E o faz com
tamanha força e sem alarde, como quando deitados na sala, numa tarde de
domingo, experimentando uma “renúncia espontânea, nem de doer, sem cobrança de
nada em troca”, pai e filhas gêmeas.
Assim, vai
emergindo das linhas, corajoso e sem armaduras, um amor de dar as mãos no pôr
do sol, gratuito, espontâneo como a brisa. Talvez o mesmo que experimentara
como filho de mãe que nunca se desmanchou em afagos, mas havia dias que lhe
chegava com um potinho enrolado num pano, cheio de farofa – o cuidado!
Quando o amor é
assim, os amantes o vivem como estado de graça. Poetas enxergam na escuridão.
Cânticos transportam-nos para alhures. E é como a chuva fina regando os torrões
ressequidos do ser-tão, escoando nos corações que se aninham como passarinhos.
“Ó, mio babbino
caro”!
Epitácio Macário é graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do
Ceará (1995), mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará (1999) e
doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (2005). Atualmente é
professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará na Graduação em Serviço
Social e no Mestrado Acadêmico em Serviço Social, Trabalho e Questão Social (Mass/Uece).
Membro-fundador do Centro de Estudos do
trabalho e Ontologia do Ser Social (Cetros). Tem experiência na área de
Economia Política e Fundamentos da Educação. Atua principalmente nos seguintes
temas: trabalho, educação superior, desenvolvimento econômico e questão social.