Não me venham com
besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma
palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou
no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo
dilacerado pelos bichos.
O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado
em sua terra.
Que nome devo dar a esse homem?
Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se
não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto
melhor.
Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de
uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para
mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas
consequências.
O herói redime a humanidade à deriva.
Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus
quatro filhos e sua mulher.
Acabaria capitão, major.
Está morto.
Um belíssimo sargento morto.
E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse
sargento herói ao duque de Caxias.
O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua.
Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se
reúnem os ciganos e as pombas do entardecer – oxidou-se no coração do povo. O
povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal.
Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as
enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que
mandam decorar.
O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um
sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e
desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.
No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de
alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para
salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de
heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos
espinhos que machucam o couro de todos.
Esse sargento não é do grupo do cambalacho.
Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo
mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse
pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e
duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos
jornais.
É apenas um homem que – como disse quando pressentiu as suas
últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem
– não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.
O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.
Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois.
Tarde demais.
É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente
não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu
rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue
verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue.
Esse é o preço que deles cobramos.
Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso
das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos – mas queríamos que
alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.
Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.
E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas
urgentes e inadiáveis – tarde demais.
Essa crônica do jornalista Lourenço Diaféria, que foi inquirido pela ditadura militar por escrevê-la, é uma dsa mais belas do jornalismo brasileiro. Soube desse ato heroico na época mesmo, 1977, e fiquei comovido. Em plena ditadura, um militar que trabalhava no hospital militar, que não participa das prisões e torturas, deu sua vida para salvar a do garoto Adilson, de 14 anos, que caíra no fosso das ariranhas, no zoo de Brasília. O sargento Sílvio Holenbach, 33 anos, já estava dentro do carro para sair qdo viu o garoto cair no fosso. Mesmo a esposa pedindo para não ir, ele foi, pulou no fosso e ergueu Adilson para as pessoas puxarem. Enquanto isso, foi atacado pelas ariranhas e não resistiu aos mais de cem ferimentos que sofreu. Faleceu 48 depois no mesmo hospital que trabalhava. Duque de Caxias é tido como herói das Forças Armadas porque reprimiu revoltas populares na época das regências e por ter lutado na Guerra do Paraguai. Sílvio Holenbach não matou ninguém: deu sua vida para salvar a de um menino que nunca tinha visto na vida.
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