quarta-feira, 2 de setembro de 2020

"Herói. Morto. Nós", de Lourenço Diaféria


  [Crônica publicada em 1º de setembro de 1977]

 

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher.

Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer – oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que – como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem – não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos – mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis – tarde demais.




Um comentário:

  1. Essa crônica do jornalista Lourenço Diaféria, que foi inquirido pela ditadura militar por escrevê-la, é uma dsa mais belas do jornalismo brasileiro. Soube desse ato heroico na época mesmo, 1977, e fiquei comovido. Em plena ditadura, um militar que trabalhava no hospital militar, que não participa das prisões e torturas, deu sua vida para salvar a do garoto Adilson, de 14 anos, que caíra no fosso das ariranhas, no zoo de Brasília. O sargento Sílvio Holenbach, 33 anos, já estava dentro do carro para sair qdo viu o garoto cair no fosso. Mesmo a esposa pedindo para não ir, ele foi, pulou no fosso e ergueu Adilson para as pessoas puxarem. Enquanto isso, foi atacado pelas ariranhas e não resistiu aos mais de cem ferimentos que sofreu. Faleceu 48 depois no mesmo hospital que trabalhava. Duque de Caxias é tido como herói das Forças Armadas porque reprimiu revoltas populares na época das regências e por ter lutado na Guerra do Paraguai. Sílvio Holenbach não matou ninguém: deu sua vida para salvar a de um menino que nunca tinha visto na vida.

    ResponderExcluir