“1, 2, 3 Carmélia! 1, 2, 3 Carmélia!”
A
criançada, como em quase todas as tardes dominicais, se reunia no meio da praça
ensombrada de árvores pacatas a enredar-se nas mais diversas brincadeiras
infantis, sendo, entre todas, a mais cobiçada a de pique-esconde. Porém não o
era para Carmélia, uma menininha desengonçada, magricela e deveras distraída,
que mesmo portadora do verme filosófico e do hábito de guardar latas, sentia a
curiosa necessidade de convivência com outros, talvez para ter a certeza de que
existia de verdade ou que ainda estava viva.
Contudo,
havia naquela brincadeira uma frustração intolerável: era sempre a primeira a
ser encontrada! Quando isso acontecia, padecia horrores, e a partir de então,
era vê-la ali, no pique, sentada inerte como um poste, assistindo à tardia chegada
dos outros participantes. Alguns até conseguiam, com uma incompreensiva habilidade,
chegar até o ponto e se salvar. Outros poderiam também ser encontrados pelo
pegador, mas só após muito tempo, o que alargava a agonia da menina,
sentindo-se diminuída, incapaz, ao contrário dos demais, eufóricos à espera
daquele derradeiro redentor a gritar, para desespero do pegador: “1, 2, 3 Salve
Todos!” Comum era ela voltar para casa arrasada, se jogando entre as suas latas
e pensando alto, num ímpeto belchiórico de amar e mudar as coisas: “Eles
verão... no domingo será diferente!”
Assim, naquela
tarde, estava mudada – embora ninguém a notasse –, confiante, com ares de
segredo. Não sabiam, durante a semana, Carmélia mapeara aquela praça de ponta a ponta,
todos os espaços, buracos e esconderijos. Daí, como planejara, enquanto a pegadora
fechava os olhos e contava, aos berros e ligeira, até 100, ela já sabia onde
seria o seu perfeito escondedouro.
A menina era
toda entusiasmo e animação. Ali, em completa escuridão, podia ouvir os passos e
a correria seguidos da sentença: “1, 2, 3 João! João!” O menino deveria estar
chorando de ódio, pensava. Era o primeiro. Não ela, mas ele. Com o tempo,
ouviria um a um dos jogadores sendo denunciados pela pequena pegadora que, provavelmente,
já estranhava o seu inexplicável paradeiro.
Roendo as
unhas trêmulas, olhos imóveis na sua própria emoção, estampava um sorriso
malino: “Não vão me encontrar, não vão!”
Passaram horas,
dias, anos e ela prosseguia na brincadeira. Aquele cativeiro quase não a comportava
mais, tinha fome, todavia gritava-lhe o espírito vingativo: “Acham que eu sou
boba, mas não sou besta não. Eles vão ver...”
Um dia,
entediada e incomodada com o silêncio, olhou com cuidado por cima de seu
esconderijo e não viu ninguém. Estranhou também não encontrar a árvore
escolhida como ponto do pique-esconde. Levantou-se com vagar e mesmo sem saber
onde bateria o pique, pulava alto, as lágrimas cascateando nos olhos, numa
alegria de circo: “1, 2, 3 Salve todos! Salve todos!... eu ganhei, eu ganhei!” E
nenhum de seus coleguinhas apareceu. Ali, apenas alguns pedestres, garis e os
pombos se admiravam daquela moça comprida e seminua a balançar o corpo com singular
desembaraço.
E foi
assim, tropeçando, às gargalhadas e com o coração retinto, que chegou em casa e
encontrou a mãe, magra e envelhecida, a colocar a mesa. Vendo a filha despontar
na soleira, olhou para o relógio da parede: “Até que enfim, Carmélia, a
sopa já estava esfriando.”
"num ímpeto belchiórico de amar e mudar as coisas" foi inesperado, inusitado e muito criativo (o que não deixa de ser uma justa homenagem ao bigodudo compositor).
ResponderExcluirO final, como sempre, surpreende.
Hahaha vez ou outra entra uma dessas trilhas sonoras. Para mim, um alívio. Você é um leitor especialíssimo, amigo Tião.
ExcluirObrigado, Raymundo. Suas crônicas são dessas coisas boas da vida de quem gosta de literatura.
ExcluirUma verdadeira obra prima. Sentimentos e realidade. Uma retórica sentimental !
ResponderExcluirOlá, "Unknown". Agradeço demais a sua leitura e o retorno. Quando postar, por gentileza, "assine", pois algumas pessoas aparecem como "desconhecidas" e, quando conheço, gosto de me "aproximar". Grande abraço.
ExcluirSurpreendente. Registro de fatos e sentimentos que nos prendem aguardando o desfecho. Amei!
ResponderExcluirMalvinier Macedo
Malvinier, agradeço muito a sua leitura e retorno. Forte abraço, querida.
ResponderExcluirQuantas lembranças nos remente essa crônicas,um fato simples,mas você consegue com maestrias nós proporcionar sentimentos preciosos.
ResponderExcluirMuito obrigado, Leonilia, pela leitura e comentário. Abração.
ExcluirMuito bom, Raymundo Netto. Para mim um choque quando ela saiu e não encontrou nenhum dos seus amigos.
ResponderExcluirOi, Rosinha. Seria um choque para qualquer um, mas para ela não... apenas uma estranheza, mas a sua vitória era gritante. rsrs Um ótimo dia, querida.
ExcluirUau!!!
ResponderExcluirQue final,rs
assumo que tive ligeira agonia ao constatar o silêncio da praça,tal qual a pequena Carmélia todas as vezes em que era surpreendida ao ser encontrada,ufaa...rs
Olá (não saiu seu nome aqui), agradeço a sua leitura e o seu pasmo. Abraço.
ExcluirMuito bom conto, talvez um dos melhores que já li da sua lavra. A incerteza entre o real e o fantástico me prendeu até o final. Você conseguiu uma narrativa instigante, menos pela singularidade da personagem; mais pela habilidade da linguagem na trama. Valeu, amigo.
ResponderExcluirPardal, bom dia. Muito grato pelo seu comentário, sempre bem-vindo. Espero contar com sua observações preciosas. Agradeço demais. Forte abraço.
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ResponderExcluirUma boa dose misturando o real e o fantástico; traquinagens de autor com as eternas categorias de tempo e espaço deixando-nos, aos leitores, vastas possibilidades de pensar a personagem Carmélia. Muito bacana cumpadi véi
ResponderExcluirProf. Macário, bem vindo ao nosso AlmanaCULTURA. Muito feliz de vê-lo por aqui e agradeço a sua leitura e a nova amizade. Estamos juntos. Abração.
ExcluirQue conto fantástico,Raymundo! O improvável desfecho, bom demais!!!
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