domingo, 29 de setembro de 2019

"A Dois", de Raymundo Netto para O POVO



Aquele casal se amava tanto, mas tanto, tanto, que um dia acordou pregado!
De primeiro, perante o espetaculoso incompreendido, o sobressalto. Depois, com pouco, a constatação bem-querida. Ele: “Agora eu tenho certeza, amor, de que você não me escapa!” E ela: “Hummm... e eu, que tenho você todinho para mim...” E num chamego quase autofágico o casal descobriu em seu mundo sem novidades matrimoniais o alvorecer de um inconcebível prazer de amar a si mesmo, a bolinação inesgotável, o compartilhar de seu próprio gozo, tão extraordinário quanto a descoberta da areia lunar.
Passados alguns meses de experimentos e satisfações transcendentais de fazer inveja à Kama Sutra, encontramos o mesmo casal trazendo no corpo as marcas da perversa convivência íntima: feridas, hematomas e cicatrizes nos braços, nas pernas, na alma.
Não havia absolutamente nada que eles gostassem de fazer juntos – e eles tinham, por anatomia, que fazê-lo exatamente assim, juntos –, muito menos pensar – sim, compartilhavam também os seus pensamentos. O certo é que não se toleravam mais. Para eles, o companheiro ou a companheira era de um tédio nauseante, de até desejar a morte: a própria e, por efeito, a do outro.
Mesmo em silêncio, em frente à TV, um zapeado incontrolável. À mesa, ela não suportava os maus hábitos dele e reclamava da comilança que a deixava cada vez mais gorda. Por outro lado, ela o fazia perder horas em shoppings na busca de acessórios ou nas tardes de sábado no salão, além de raspar-lhe as pernas. Gentilezas? Coisa do passado. Ele: “Vai primeiro, preguiçosa”. Ela: “Seu porco, e eu tenho que esperar a sua boa vontade para poder me lavar direito.”
Daí, uma manhã, ao se coçar enquanto acordava, ele percebeu-se livre da incômoda mulher, deitada do outro lado, despregada de seu corpo cativo. Imediatamente a despertou com a boa nova. Não demorou nada e, mesmo sem despedidas ou perguntas, ambos cruzaram a porta e seguiram a calçada, claro, por caminhos completamente opostos.
Durante anos eles seguiram pelas ruas de outras cidades, outros estados e países, viveram outras vidas, amaram e desamaram ao desfrute da liberdade outrora lhes negada. Curiosamente, vez ou outra cruzavam o mesmo itinerário. Nesses casos, quando possível, mudavam de calçada, davam meia-volta, embrenhavam-se à primeira porta aberta. E, quando inevitável, no máximo – às vezes nem isso –, um tchauzinho insosso com cara de “passa reto” ou “desgruda de mim”.
Um dia, sem data marcada, cansados de tanta permissividade e falta de rumo, voltaram a sua casa. Ambos estavam profundamente diferentes, e mesmo assim se reconheceram. Estavam cansados, mais velhos e mais leves. Fitaram-se demoradamente, como a compreender o papel daquela pessoa em sua vida. O choque das lembranças a dois de algo que não era amor, mas coisa muito melhor, os atravessou como o cheiro do vento que aquecia àquela mesma calçada. Sem palavras, entre risos e lágrimas, arriscaram tocar no rosto um do outro e caíram de lábios em um beijo indecente, apoteótico, jamais visto ou compreendido, rendidos para a vida em um perdão supremo e desnecessário, mais unidos do que nunca por um só coração.


9 comentários:

  1. O tragicômico do amor! Muito bom Ray Netto!!!!

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  2. Uma metáfora ao casamento, solução-ilusão.

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  3. Sensacional, um motivo para pensar profundamente as relações. Lembrei de um ditado popular que diz que "o amor é como uma fogueira, a lenha precisa estar perto o bastante para se aquecer mutuamente, mas afastada o bastante para circular oxigênio". Parabéns pela crônica e abraço.

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  4. Mais uma prova que o amor-carrapato é a morte do amor. E mais uma prova que corações unidos, longe ou ao vivo, é a vida do amor.Lindo o seu conto, Raymundo;um hino ao amor.

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