Aquele casal se amava
tanto, mas tanto, tanto, que
um dia acordou pregado!
De
primeiro, perante o espetaculoso incompreendido, o sobressalto. Depois, com
pouco, a constatação bem-querida. Ele: “Agora eu tenho certeza, amor, de que
você não me escapa!” E ela: “Hummm... e eu, que tenho você todinho para mim...”
E num chamego quase autofágico o casal descobriu em seu mundo sem novidades matrimoniais
o alvorecer de um inconcebível prazer de amar a si mesmo, a bolinação
inesgotável, o compartilhar de seu próprio gozo, tão extraordinário quanto a
descoberta da areia lunar.
Passados
alguns meses de experimentos e satisfações transcendentais de fazer inveja à
Kama Sutra, encontramos o mesmo casal trazendo no corpo as marcas da perversa convivência
íntima: feridas, hematomas e cicatrizes nos braços, nas pernas, na alma.
Não havia absolutamente
nada que eles gostassem de fazer juntos – e eles tinham, por anatomia, que
fazê-lo exatamente assim, juntos –, muito menos pensar – sim, compartilhavam também
os seus pensamentos. O certo é que não se toleravam mais. Para eles, o
companheiro ou a companheira era de um tédio nauseante, de até desejar a morte:
a própria e, por efeito, a do outro.
Mesmo em
silêncio, em frente à TV, um zapeado incontrolável. À mesa, ela não suportava os
maus hábitos dele e reclamava da comilança que a deixava cada vez mais gorda.
Por outro lado, ela o fazia perder horas em shoppings na busca de acessórios ou
nas tardes de sábado no salão, além de raspar-lhe as pernas. Gentilezas? Coisa
do passado. Ele: “Vai primeiro, preguiçosa”. Ela: “Seu porco, e eu tenho que
esperar a sua boa vontade para poder me lavar direito.”
Daí, uma
manhã, ao se coçar enquanto acordava, ele percebeu-se livre da incômoda mulher,
deitada do outro lado, despregada de seu corpo cativo. Imediatamente a
despertou com a boa nova. Não demorou nada e, mesmo sem despedidas ou
perguntas, ambos cruzaram a porta e seguiram a calçada, claro, por caminhos completamente
opostos.
Durante anos
eles seguiram pelas ruas de outras cidades, outros estados e países, viveram
outras vidas, amaram e desamaram ao desfrute da liberdade outrora lhes negada.
Curiosamente, vez ou outra cruzavam o mesmo itinerário. Nesses casos, quando
possível, mudavam de calçada, davam meia-volta, embrenhavam-se à primeira porta
aberta. E, quando inevitável, no máximo – às vezes nem isso –, um tchauzinho
insosso com cara de “passa reto” ou “desgruda de mim”.
Um dia, sem
data marcada, cansados de tanta permissividade e falta de rumo, voltaram a sua casa.
Ambos estavam profundamente diferentes, e mesmo assim se reconheceram. Estavam
cansados, mais velhos e mais leves. Fitaram-se demoradamente, como a compreender
o papel daquela pessoa em sua vida. O choque das lembranças a dois de algo que
não era amor, mas coisa muito melhor, os atravessou como o cheiro do vento que aquecia
àquela mesma calçada. Sem palavras, entre risos e lágrimas, arriscaram tocar no
rosto um do outro e caíram de lábios em um beijo indecente, apoteótico, jamais
visto ou compreendido, rendidos para a vida em um perdão supremo e
desnecessário, mais unidos do que nunca por um só coração.
Maravilha de conto, meu chapa.
ResponderExcluirObrigado, Brennanzim. Valeu pela leitura, amigo-vizinho.
ExcluirO tragicômico do amor! Muito bom Ray Netto!!!!
ResponderExcluirUma metáfora ao casamento, solução-ilusão.
ResponderExcluirSensacional, um motivo para pensar profundamente as relações. Lembrei de um ditado popular que diz que "o amor é como uma fogueira, a lenha precisa estar perto o bastante para se aquecer mutuamente, mas afastada o bastante para circular oxigênio". Parabéns pela crônica e abraço.
ResponderExcluirGrande Léo, ótima reflexão. Valeu!
ExcluirLindo texto, Raymundo!
ResponderExcluirGrato pela leitura, Lia.
ExcluirMais uma prova que o amor-carrapato é a morte do amor. E mais uma prova que corações unidos, longe ou ao vivo, é a vida do amor.Lindo o seu conto, Raymundo;um hino ao amor.
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