domingo, 23 de junho de 2019

"Cafeteria", de Raymundo Netto para O POVO



Na cafeteria, ele a encontrou sentada em um pequeno sofá, quase que debruçada por sobre a mesa que havia diante dela. As duas mãos sustentavam a testa escondida por entre fartos cabelos. Ele se aproximou com interesse, como se a conhecesse, mas isso ele não a revelou: “Está tudo bem com você?”
Ela ergueu a cabeça lentamente, deixando à mostra um grande galo na cabeça. Os olhos amiudavam à presença perturbadora de um sol recém-nascido a lhes chegar através da vitrine: “Muita dor de cabeça.”
Sem pedir licença, devagar, ele sentou-se à sua frente, deixou os braços ao lado do corpo e a observou durante largos minutos de silêncio.
“Eu bati com o carro”, ela disse, hesitante. Reprimia o choro. Mantinha a cabeça baixa: “Estava escuro... e eu tonta. Sentei-me aqui.”
Lançando palavras enevoadas, falou que tentara ligar para a mãe, mas ela não atendeu. Tinha muita sede, mas nenhum garçom aparecera: “Pede uma água para mim? Minha cabeça dói...”
Ele chamou um garçom distraído ao fundo da cafeteria vazia. Pediu-lhe um copo de água: “Conte-me, como foi esse acidente?”
Não se lembrava. Era tarde da noite. Fora na rua, ali em frente. Subira a calçada. Não dava para ir à sua casa daquele jeito. Entrou na cafeteria para sentar-se um pouco, descansar e tentar chamar a sua mãe: “Nessas horas, ela não atende. Não atende.”
Ele observou não haver nenhum celular com ela: “Espere aqui. Vou ver o estado de seu carro. Como ficou. Talvez possa ajudá-la.”
Logo, ele retornou à cafeteria. Olhou para a mesa e viu que o garçom deixara o copo de água, porém ela nem o tocara. Continuava com o pescoço curvado, as mãos na testa, como da primeira vez.
Sentou-se, agora, ao seu lado. Esperou que levantasse a vista, mas ela continuou inerte, numa cisma comovente. Por conta dos cabelos, só lhe era possível perceber os lábios trêmulos. Ele sussurrou ao seu ouvido: “Eu nem sei como lhe dizer isso, mas acho que você morreu.”
Por alguns poucos minutos, ela ficou imóvel e muda. Depois, lentamente, tirou as mãos da testa e virou-se para ele. Trazia o olhar translúcido, perdido: “Foi o acidente? Não tem jeito?”
Embargando a voz e disfarçando o abalo, meneou levemente a cabeça e quis abraçá-la. Ela se esquivou dele. Colocou a mão na testa: “A dor... ela passou. Não sinto mais. Não sinto mais nada.”
Olhou para cima, para os lados e apertou os braços cruzados ao peito: “Que lugar é esse?”
Voltando-se a ele, exigiu: “Um beijo. Eu mereço um beijo. Não quero sair daqui sem um beijo!”
Confuso e sem pensar, ele tentou lhe dar o seu melhor beijo, mesmo quando nauseava diante do intenso gosto de sal que lhe tomava toda a sua boca.

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