domingo, 28 de abril de 2019

"Dolorosa", de Raymundo Netto para O POVO


A sisuda e determinada viuvez de Dolorosa era de causar espanto até no falecido.
Não fosse para comprar o pão matutino, nunca de sair às ruas, de oferecer-se em janela e muito menos de se desocupar em calçada. Durante o dia, flagrada em oração diante do bem cuidado oratório onde descansavam aromáticas flores do campo em torno do derradeiro retrato de seu inesquecível amor. Depois, por horas, calava a respiração na imagem do morto, sabido que impressa ainda mais no peito em luto. Assegurava cumprir a clausura em vida, pois se dava por jurada ao ser amado, aquele que, dizia, só lhe contrariara uma única vez: na prematura morte!
Assistindo àquele martírio, imploravam os amigos: “Tão moça. Vai, mulher, viva!”. Para Dolorosa, todavia, amor que o tempo consome não é amor. O verdadeiro, único e exclusivo amor, herança maior do Deus que um dia os unira, sobrepujava a tudo, inclusive, a ausência física, merecendo ele toda e qualquer renúncia. Realmente era esse seu pensamento. Uma agonia, porém, a enredara, justo na solidão das eternas noites, quando suores e desejos eram contidos violentamente a pedradas de vergonha pela casta consciência. Sim, vivia ela um dilema secreto: o despertar do querer por outro homem.
João era um jovem auxiliar de padaria, bem mais moço que Dolorosa. Há meses, naquele estabelecimento, um descuido: trocaram olhares, e, num desses, Dolorosa fraquejou. No momento não sabia, mas João já a observava. Soube ele daquela viuvez defendida a todo custo. Isso o atraía profundamente. Também ele, às noites, em seu catre cheirando a farinha, se via perdido em lençol e no domínio da branquidão do corpo intacto daquela mulher. Imaginava ela entregue e em delírios, por tanto vigor reprimido. Naquelas manhãs, mesmo quando apartados pela lonjura incalculável do balcão, lia, escrito nos olhos divinos dela, a recusa ao toque alheio. Vê-la, sentir a polpa dos seus dedos ao receber os trocados do pão, buscá-la no interior das janelas da casa escura, passaram a ser as suas motivações de existir nesse mundo.
Um dia, Dolorosa despertou lívida e mais cedo que o de costume. Aguardou a abertura das portas de ferro da padaria. Correu ao longo do balcão e dirigiu-se ao rapaz. Entregou-lhe um dinheiro: “Moço, preciso ir à rua. Você poderia levar meus pães mais tarde em minha casa?”
João, surpreso, não recusaria. Assim, ao vê-la passar de volta, imediatamente enrolou os pães e plantou-se à sua porta, cuja soleira, há anos, não cruzava um coração masculino.
Dolorosa o aguardava. Ávida, abriu a porta e, por instantes, os dois permaneceram parados e mudos. O que João não sabia é que ela não o via exatamente como a vida o pintara, mas, sim, um quadro mórbido e repugnante. O corpo em ruínas e farrapos. Os ossos e traços de músculos revelados por entre carnes escuras carcomidas em vermes. A caveira sorridente a denunciar olhos amarelecidos, a língua negra e seca. Apenas os restos da imagem do homem que um dia o marido, e não o João, foi.
Depois, cerrada a porta, a respiração de ambos abrasava a casa de tal modo que os espelhos da sala embaçaram, recusando assistir ao ritual feroz e lascivo daqueles amantes que exalavam, no ardor do suor e do amor, o perfume frio e acolhedor da mais fiel sepultura.


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