"Vadiação", de Carybé
A Vinda-Luz
Jesus era baiano. Nazaré, a mãe, jovem roceira, em
incerta noite, deu-lhe à luz, escanchada sobre estrelas-de-jerusalém, à beira
de uma levada desalumiada sob o véu de lua nova da fazenda Cabaceiras, na vila
de Curralinho. Ali, apenas ela e uma cachimbeira, rotineira de matar buchos,
mas que, naquela vez, seria por suas mãos os primeiros afagos e a acolhida do
rebento.
Não fosse
o destino, três boêmios bêbados a fornicar com umas quengas no meio do
canavial, talvez o menino e a mãe não resistissem ao frio, à falta de cuidados
e do de comer. Os pleibóis, que nunca viram menino novo, colocaram mãe e filho
na carroceria da caminhonete, deixando-os no hospital da cidade, local onde,
naquela noite, o seu Zé, um quinquagenário dono de uma pequena movelaria se
encontrava à dor de uma gastrite. Solteirão, encantara-se de logo e de vez por aquela
cabrita nova e despossuída.
Ademanhã,
Nazaré, por não ter um travesseiro onde encostar a cabeça, aceitou amasiar-se
com o desconhecido.
Contudo,
Jesus, para sempre sem nome de pai, era inda menino quando o Zé falecera. A,
então, viúva Nazaré deixou as coisas para trás, porque a vida só a ensinou a
caminhar de olhos no futuro, e decidiu ir à procura de Salvador, se arranchando
num tugúrio qualquer próximo à fábrica Barreto de Araújo, de beneficiamento de
cacau, onde conseguira modesta função.
O Sumiço
Em sua
lida de manhãs e tardes operárias, não tinha noção do que o filho fazia durante
o dia, entregue a sorte e ao olhar muito solícito e pouco atento de umas
vizinhas. Sabia, entretanto, que crescia falante, descolado, cheio de ginga e
de conversa. Era comum acordar-se tarde, num vagarejo devaneado de mundo,
descendo a ladeira do Bonfim com o sorriso frouxo e branco de negrinho safo,
com olhos cor de céu de domingo, orgulhoso do brinco de ouro na orelha. As moças,
entre todos, lançavam os olhares desejosos a despertar a ciumeira dos demais
rapazes do largo: "Tabareuzim folgado esse..."
Na favela
todos conheciam o Jesus da Nazaré, moleque de ser visto em bares e botecos da
região — dentre eles o famoso "Candelária" — assuntando com os mais
velhos em troca do café da manhã, da broa, do saquinho de peta, jujubas, do PF
de lei, ou mesmo por trocados, que recebia com reverência envaidecedora:
"Eitcha, meu rei, que obrigado. Mais há Deus pra lhe dar."
Diziam que
ele "era de vez" e que contava, sentado em latas de querosene
"Jacaré", causos fantásticos da cosmogonia universal, na verdade, uns
remendões de almanaques, gibis, jornais ou de livros infantis e outras
curiosidades que aquela baianada sequer sonhava, se rindo demais quando
chegavam pela voz daquela coisinha sem eira nem beira.
Mas Jesus
não se detinha apenas nas historietas fantásticas, não. Quando a recepção
do público esfriava, se punha a falar mal do governador, do prefeito, do fiscal
sanitário, dos mata-mosquitos, enfim, denunciava os males de todo um mundo,
desde que o citado não estivesse presente, o que agradava a todos. Tinha
dias, porém, que adentrava a noite e, então, Nazaré, destruída da labuta,
chegava a casa vazia e sem a ceia posta. Irritada, corria a ladeira a perguntar
pelo bruguelo. Para ela, nada pior do que vê-lo em meio àqueles beberrões,
cheios até a tampa de aguardente. Sem dó, tomava o filho, lhe torcendo feroz e
escandalosamente a orelha na frente da plateia a requerer sua paciência ou a
destacar a suntuosa nádega materna. Mas nem adiantava, pois, no dia seguinte,
lá estava o danado do garoto a contar vantagem da obra. A mãe descia novamente,
chinela na mão, e quando vinha torcer-lhe a orelha ainda inchada o danado lhe
oferecia a outra, senão não aguentava mesmo...
Batista
Assim,
Jesus cresceu rebelde: sem querer ir à escola, sem cumprir seus horários de
jornaleiro, e, mais tarde, rejeitado como reservista do serviço militar. Era de
sua mania se opor a tudo que lhe fosse posto. Ria-se dos dogmas, das regras,
das leis! Contestava-os numa inadequação terrena exemplar e absoluta. Já
tivera, inclusive, passagens na cadeia, entre outros motivos, por derrubar
dezenas de tabuleiros de camelôs, provocando uma balbúrdia dos diabos, e
lavando de acarajés e caruru a escadaria da igreja.
O rapaz
era espritado, não media palavras, além de frequentar, sabia-se, as obscuras
rodas de capoeira do mestre Batista — que mais tarde, contariam, num crime
passional, seria violentamente degolado.
As Tentações
Com receio
de seu filho também ser morto, Nazaré, de coração acochado, o expulsou de
casa. Jesus, sem direção, fez o que todo desorientado faz: tomou o rumo do mar!
Chegando em frente à foz do Rio Vermelho, subiu no alto farol, encostou-se à
lanterna, e de lá passou os dias a observar estrelas mudas numa fogueirinha de
papel. Foi uma viagem existencial tão longa de se esquecer de comer e de
dormir. Seus olhos e ouvidos foram, então, tomados a ver e a ouvir coisas.
Foi quando
uma menina num vestido de chita floral lhe apareceu. Tinha o sorriso terno,
quase divino, e a voz de rouxinol. Percebendo a fome, cofiou-lhe a barba
grossa, e lhe ofereceu pedras, como se fora pão. Ele não as quis. Daí, ela
colocou-se às suas costas e acariciou as escápulas nuas: "Mas que belas
asas você tem, seu moço... Ah, se eu tivesse asas assim, eu me lançaria rápido entre
as gaivotas, pularia por sobre as nuvens, eu quereria ser o Sol! Salte, Jesus,
salte e voe!".
Todavia, percebendo
a insistente apatia daquele homem entregue ao mais fugaz pensamento, ela se
enfureceu. Diante de seus olhos, por final, se tornou mulher, linda, a pele
branca a escorrer mel, e se fez nua e pronta a entregar-se ardentemente em sua
paixão. Mas, de repente, uma revoada de trinta-réis partiu para cima da mulher,
atacando-a. Ela se pôs a gritar com língua de fogo, estrebuchando-se contra o
ataque violento das centenas de aves que, violentas, lhe trinchavam o corpo.
Então, com os pedacinhos de sua carne inda quente no bico, uma a uma pousavam
nos lábios de Jesus, alimentando-o. Depois, unidas, carregaram o corpo magro e
alquebrado do rapaz, cruzando o encarnado céu quando o sol ajoelhava-se no
horizonte, em direção à vila da Praia do Forte.
A Iniciação
A imagem
daquele homem carregado por um bando de aves entre nuvens do céu assombrou o
grupo de onze pescadores pobres que se encontravam na praia da aldeia da vila.
As aves largaram o rapaz no dorso da onda, a sétima, depois da passagem do
vento que escancarava as vistas curiosas.
Os
pescadores, percebendo que aquele mortiço desconhecido poderia se afogar,
partiram ao seu encontro. Sem saber o que fazer, levaram-no aonde sempre se
levavam as pessoas doentes daquela aldeota: para a choça de d. mãinha Purah.
Ela,
idosa, quase cega, pequena e artrítica, mas com dons de predição, o recebeu sem
espanto. Disse para deitá-lo numa tipoia no fundo do corredor escuro onde,
durante duas semanas, o trataria com rezas, limparia as suas feridas e o
alimentaria com legumes, caldos e raízes.
Jesus
melhorava a cada dia e, por todos eles, proseava longamente com a velha num
telheiro ao lado de sua hortinha, no qual o ensinava a fazer meizinhas, xaropes
e outras beberagens caseiras. Também aprendeu a fazer pão e acompanhava a
mãinha nas visitas regulares aos doentes e idosos daquela aldeia. Foi quando
Jesus tomou conhecimento da miséria daquele povo, sem saneamento básico, sem
escola e assistência médica. Acompanhava e consolava as famílias quando da
perda de seus anjinhos. Ouvia os reclamos sobre a exploração de atravessadores
e comerciantes da vila ou da capital, que tomavam a preço de nada a sua pesca e
a produção suada de rendas e redes. Revoltava-se com o abandono da comunidade,
a desigualdade, e a encorajava a resistir, reconhecer e brigar pelos seus
direitos. A sua resposta, quase na totalidade, era o silêncio cabal da
impotência.
Tomado de
angústia e conflitos, quando não cumpria as "visitas de necessidade"
com a d. Purah, passava o dia na praia. Sentava-se numa duna branca, onde os
pássaros cercavam-lhe na cata de pequenos insetos entre os arbustos, verbena
rosa e madressilvas, e emprestava os ouvidos, sempre mais a disposto a escutar
do que a falar.
As gentes
o procuravam por curiosidade ou mesmo para lhe contar de seus problemas; outras
pediam receitas de lambedor; outras queriam saber se viera mesmo do céu e se de
lá se podia ver anjos; e toda uma sorte de coisas sobre o Céu e a Terra e a
mais vã filosofia.
O moço era
paciente. Com uma latinha velha e uns tocos de carvão torrava tatuís, que
catava na arrebentação, e comia ali mesmo. Muitas vezes, quedava-se atento
assistindo a brincadeiras de meninos com espinhas de peixe ou banhando as
tartarugas marinhas trazidas na ressaca de noite furiosa. Chamava as crianças,
catava-lhe os piolhos e desenhava círculos na areia, cantarolando: "Que me
perdoem se eu insisto neste tema/mas não sei fazer poema ou canção/ que fale de
outra coisa que não seja o amor./ Se o quadradismo dos meus versos/ vai de
encontro aos intelectos/ que não usam o coração como expressão."(1)
Ao final
das tardes, já não estranhavam os pescadores quando ele, finalmente, se levantava
e, batendo a areia da calça de algodão cru, se dirigia ao mar. Colhia nos
lábios o sal, molhava de brumas os cabelos e, depois de torcer o seu dred,
abria os braços a sentir a grandeza do mar na palma das mãos. O sol brilhava
alaranjando o seu rosto e o vento, após serpear cada peça de suas vestes, se
abrigava numa concha amarrada na cintura, reverberando em voz de canção,
enquanto uma nuvem brilhante de cintilantes gotículas azuis arrodeava o seu
corpo. Jesus então, numa fala diferente, passava a pregar aos peixes:
"O
efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como
está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual
pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a
terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não
pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os
ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é
porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou
porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que
eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores
se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os
ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto
verdade? Ainda mal!"(2)
A Chegada a Vila da Praia do Forte
Foi num
domingo que chegou, com seus amigos pescadores, pela primeira vez, à praça
grande da vila da Praia do Forte. Os moradores assuntavam por entreouvidos.
Sabiam pela massa daquele rapaz misterioso que fazia coisas estranhas, que
falava de outros mundos, a cuidar dos desassistidos. Para alguns, um lenda;
para outros, um postulante político.
Jesus
ganhava no sorriso cor de búzio. Encostava-se próximo às ruínas do castelo
Garcia D'Ávila e reunia pessoas a contar histórias de "Era uma vez um
Reino... um outro de outro mundo, muito, muito distante..."
Assim,
noutras noites, passaram a perguntar pelo contador de histórias, o novo “rei”
daquele castelo em ruínas, a exigir-lhe a presença nas noites claras de luar. E
foi numa dessas noites que conheceu a jovem Madá Magdala, uma conhecida
periguete filha da região, que, não fosse a intervenção de Jesus, seria
violentada por um grupo de jovens baderneiros num samba. Magdala agradeceu e
sumiu com a noite, assim como com a estrelas, mas não sem antes de a primeira
vez confessar um seu amor.
Quando o
forasteiro se pôs a emitir opiniões sobre assuntos da vila, incomodou, afinal,
ninguém, é bem verdade, sabia de onde e a que vinha. Aquela história de
"cair do céu carregado por pássaros", claro, seria mais uma história
de pescador, uma lorota, fruto da invenção dos desocupados e ignorantes. Daí a
pouco, ele quase não saía mais da vila, tornando-se um tipo popular, quase
folclórico, alvo até da especulação turística.
Era de
aparecer em festas, nas quais não era convidado, a distribuir garrafas de
vinho; da mesma forma, comparecia a velórios e funerais onde agarrava-se aos
mortos, convidando-os a passear — num desses, estava presente o Jorge Amado —;
ficava horas na praça, contando histórias para as crianças, outras para as
mocinhas românticas, outras para os velhos; não perdia uma reunião da
comunidade, onde se insurgia contra as iniquidades, falando em nome dos
desvalidos, prostitutas, travestis, quilombolas, índios, crianças, cães e
gatos. Para ele,
não poderia haver a felicidade onde reinasse a miséria, a injustiça ou desigualdade.
Essa vergonhosa felicidade, cria, era puro egoísmo e hipocrisia.
Judas Queriote
O mistério
acerca daquele moço chamou a atenção de Judas Queriote, um jornalista
malsucedido, desesperançado com o ofício e que, desde sua demissão, carregava dívidas
de toda a natureza. Viu na história de Jesus a sua remissão. Então,
aproximou-se, logo tornando seu amigo. Conversavam por horas, inibindo os
ingênuos e iletrados pescadores da aldeia, ora roxos de ciúmes. O jornalista,
admirador febril do peregrino, tomava nota de seus pensamentos, reivindicações
e insistia em colher dele alguma tendência política e/ou doutrinária. Mas,
embora à primeira vista revolucionário, Jesus nada queria saber de política, de
suas estratégias ou de conceitos ideológicos. Não discutia sobre organização
social e política, muito menos a financeira. Nada exigia ou esperava do Estado,
nada queria com o poder, não reconhecia sequer o mérito de qualquer nome entre
os eleitos... Para ele, bastava que as pessoas fossem felizes. Elas mereciam
isso, simplesmente, por estarem vivas. Certa mesmo era a sua indignação com o
sofrimento alheio, com a exploração, a opressão, a violência e a maldade. Não
precisava de muito, mas do suficiente. Irritava-se, entretanto, com os
poderosos. E ali, com muito pouco, citaria nomes, falaria da exploração do povo
e da corrupção do prefeito, dos vereadores, da omissão da Igreja, do padre, dos
pastores — "sepulcros caiados" —, do juiz, do dono do cartório, do
delegado.
Após
exaustivas entrevistas, Judas trancou-se na pousada a redigir o seu aguardado
artigo. Poderia ter revisado, mostrado a outras pessoas, pedido opinião, mas
não, na sua estúpida segurança, tinha toda a certeza do mundo! Já via seu nome
indicado aos grandes prêmios da imprensa brasileira, ou quiçá, mundial. Assim,
tomou o primeiro ônibus a Salvador. Apresentou-se ao antigo editor, sendo
parabenizado e empregado novamente.
O artigo
saiu no domingo, publicado em destaque, e o jornal vendeu a barulho, atraindo a
atenção da mídia televisiva e radiofônica, além das redes sociais. Todos haviam
de querer entrevistar o "Rei-Pescador", cotado, de já, para
participação em comerciais de produtos de apelos populares de uma carangueja TV
baiana.
O Juízo Final
Ora, as
autoridades da vila, obviamente, não gostaram da citação de seus nomes na
imprensa. A chegada das emissoras de rádio e televisão, e das revistas
internacionais, apesar de aquecer o comércio, os colocava na lama,
evidenciando alguns costumes políticos não muito condizentes com a boa
moral. O presidente da Câmara de Vereadores reuniu-se com o prefeito, o padre e
o pastor. Criaram um discurso consensual onde acusavam Jesus de ser herege,
louco, vagabundo. À noite, reunião fechada na delegacia, a deixa:
"Aproveitassem o temperamento intempestivo do rapaz e criassem a situação.
Ele tinha de ser preso, desmoralizado, desacreditado. E logo!"
Era noite
de Natal. Estava o contador de histórias e os amigos pescadores, como de
hábito, comendo azeitonas pretas e passeando por entre os arcos das ruínas do
castelo, quando, do nada, uma adolescente desconhecida aproximou-se de Jesus e
deu-lhe um beijo na boca. Um grupo de policiais e outros estranhos, encolhidos
estrategicamente por trás de arbustos, saltaram imediatamente em cima daquele
triste "rei", agarrando-o num descarado flagrante: "Pedófilo!
Pedófilo!"
Nem
adiantou a resistência dos amigos. O rapaz foi arrastado sob a surra de
rebenques até a delegacia, fato assistido com assombro e curiosidade pelos
turistas e moradores da vila, sob a luz frenética de pisca-piscas.
A
capangada distribuía a zoada em notícias: "Abusou de uma criança, o
vagabundo!" Ouvia-se da turba: "Que horror", "Pobre
menina", "Monstro!", "Tarado!", "Esfola
ele!"
Chegando à
pequena delegacia, havia apenas uma cela. Nela, um bêbado, o Barrabás, solto
para que não houvesse testemunhas para a "lição" de covardia que ali,
logo, logo, teria lugar pela mão desmedida dos samangos.
Nuvens
negras tomaram o céu, os penduricalhos natalinos sequestrados por um vento
rodamoinho se espalhavam pelas pedras toscas. As areias polvilhadas feriam as
pernas nuas e cegavam os passantes iluminados apenas por relampejos de uma
chuva não concebida. Os morcegos e as corujas corriam feitos loucos para a luz
e, dizem, todo o leite azedou.
As Sete Dores de Nazaré
Nazaré,
por meio do noticiário televisivo, soube finalmente do paradeiro e da prisão do
filho. Temendo por ele, ousou fazer o que sempre se negara: procurar o pai de
Jesus.
Adonai,
engenheiro que iniciara o ofício na construção de um açude no sítio em que
Nazaré trabalhara, era agora um empresário bem-sucedido no ramo da construção
civil. Quando soube que aquela mulher de seu passado de aventura estava à porta
da firma, suou frio. Mesmo assim, por, talvez, uma curiosidade mórbida, aceitou
recebê-la. O encontro marcado por ligeiro aperto de mãos foi de um
constrangimento sem tamanho. A mulher nem sentar-se, nem água ou chazinho.
Contou direto da sua história e pediu-lhe apoio. Rogou-lhe: "Ele é a sua
imagem e semelhança... Não o abandone!"
Adonai foi
só silêncio. Tentou abotoar o paletó apertado na barriga. Encaminhou-se ao
lavabo, lavou as mãos, enxugou com a toalha o suor da testa e soltou o verbo: "Nazie,
me perdoe, mas é o destino dele. De certa forma, convenhamos, foi ele quem o
escolheu. Foi ele!"
Nazaré
soluçou. Parecia-lhe então que nada havia a fazer a não ser chorar sozinha a
dor de seu menino. Adonai, por desencargo de consciência, mandou Gabriel, o seu
secretário de confiança, levar a mulher ao encontro do filho DELA.
Ao chegar,
sem forças, cansada e faminta, encontrou o tumulto formado: "Jesus é
morto! Tentou reagir à prisão. Havia um punhal, não teve outro jeito. Fora
apenas por defesa própria!", era o que dizia a boca coletiva de uma
multidão confusa.
Ao
contrário dos empresários e de alguns comerciantes que comemoraram o castigo benfeito
daquele pervertido, o poviléu não arredava o pé da porta da delegacia. Acusavam
a covardia. Xingavam a escória que mandava e desmandava na cidade. Nas portas
cerradas das igrejas, os punhos só encontraram silêncios. A mãe, desafortunada,
só queria saber dele: "Cadê o meu garoto, por favor, cadê o meu
menino!" Mas ninguém sabia de nada: o corpo de Jesus sumira
misteriosamente!
Caifás, o
subdelegado, acusava: "Foram esses vagabundos, os amigos do elemento.
Foram eles. Têm hábito de sair por aí levantando defunto. Foram eles que
sumiram com o corpo." De outro lado, Pedro Simão, um dos pescadores,
negava três vezes, enquanto amanhecia e o galo cantava. Tomé, acenando um
retalho ensanguentado em forma de cruz e a crer apenas no que seus olhos viam,
acusava a delegacia de tentar omitir as provas do crime, na tentativa de
eliminar a possibilidade de exame de corpo de delito. O padre e o pastor
surgiriam apenas na manhã seguinte, oferecendo o apoio e o consolo a ambos os
lados, numa resignação silenciosa, contagiosa e conveniente: “Foi como Deus
quis. O que se pode fazer?”
A Discípula do Rei
Ao repicar
dos sinos de uma fria e incompreensível manhã, Nazaré, sozinha, assistia ao
apagar de luzes dos lampiões da praça quando Madá lhe apareceu: "E a
senhora é de verdade a mãe do rei?" Nazaré não entendeu, mas, fragilizada,
deixou-se levar pela mocinha a contar-lhe as histórias de um reino muito, muito
distante, enquanto a radiodifusora disseminava no ar uma canção-lamento:
"Quem é essa mulher/ Que canta sempre esse lamento?/ Só queria lembrar o
tormento/Que fez o meu filho suspirar/ (...) Quem é essa mulher/ Que canta
sempre o mesmo arranjo? Só queria agasalhar meu anjo/ E deixar seu corpo
descansar."(3)
Conclusão Inconclusa
Passaram
dias. Os pescadores, em nome do amigo, se reuniam nos coqueirais da aldeia.
Todos da comunidade manifestavam, conforme seu credo, a dor da partida tão
prematura e da saudade do jovem Jesus: os cristãos católicos, os evangélicos,
os neopentecostais, os espiritistas e umbandistas. D. mãinha Purah também
sumira, sem levar de casa coisa alguma, deixando-a em portas abertas e, no
telheiro, um ramalhete de rosas vermelhas imperecíveis.
Judas, de
Salvador, enviou para os pescadores, num envelope, todo o dinheiro que ganhara
com o artigo publicado e entrevistas concedidas sobre o anônimo Jesus:
"Como poderia saber que isso aconteceria? Acreditava mesmo na força da
figura dele perante a opinião pública. Acreditava que o povo apoiaria o meu
amigo. Acreditava que poderia conseguir mesmo ajudar a vila pobre da região.
Que trágico engano! Sinto muito." Depois, souberam, Judas não conformado com
o destino do “rei” se matara.
E daí,
numa noite estrelada onde os marulhos aqueciam os ouvidos, os pescadores
estavam em uma choça com a porta completamente cerrada e, mesmo assim, alguém
entrou. "Quem é você? A que vem?", perguntaram. Ele chegou mais
perto, preencheu a escuridão de seu sorriso, e mostrou-lhes no corpo as
feridas. Da testa seca, entretanto, desaguava um suor que, em terra,
convertia-se em gotas de sangue.
Os rapazes
quedaram-se mudos de pensamentos e palavras, não lhe reconhecendo nem o rosto
nem a voz. Quem era aquele? Até hoje não se sabe.
(1) "Você abusou", de Antonio Carlos e Jocafi
(2) "Sermão de Santo Antônio (aos peixes)", de Padre Antônio
Vieira (1654)
(3) "Angélica", de Chico Buarque