Caminhava na calçada quando, em um monturo encostado ao
poste, notou uma volumosa pasta colecionadora azul. Curioso, olhou para os
lados – não era de remexer em lixo – e a pegou. Era uma espécie de álbum de
recordações. Passou as suas páginas e encantou-se com a mulher sempre presente
nelas – provavelmente, a autora daquele registro. Levou-o para casa.
Nos
próximos dias, tornou-se a sua leitura de cabeceira. A moça, sem dúvida, uma
obsessiva. Ali, o passo a passo de uma história de amor. Havia colagem de fotos
– muitas delas eram cuidadosamente recortadas e cobertas por canetas
hidrográficas coloridas –, ingressos, pulseirinhas, guardanapos, restos de
flores, fios de cabelos, cartões, poemas em esferográficas. Nas fotos: encontros
em restaurantes, folia de carnavais, festas a fantasia, reuniões familiares,
momentos íntimos, comemorações de aniversários de namoro e de casamento.
Como não cair
fundo de paixão por alguém tão dedicada a um seu amor? “Mas por que jogaria
aquilo no lixo?” Então, ele passou a não prestar para mais nada nessa vida. Aonde
andasse, seu olhar incessante procurava por aquela a tomar por inteiro todos os
seus suspirosos pensamentos.
Um dia,
estava em um café quando, finalmente, ela apareceu. Vinha com uma senhora –
reconheceu a mãe. O mesmo sorriso das fotos. Mais magro, assim como ela, e os cabelos
mais curtos. Esperou o momento certo, inventou uma desculpa e se aproximou.
Pediu para sentar, se poderia ligar, queria lhe contar uma história. Nada
demais. “Vê-se tratar-se de um cavalheiro, minha filha”, assentiu a mãe. Assim,
somente assim, ela ofereceu o número de seu telefone.
Naquela
mesma noite ele ligou. Conversaram muito. Ela o ouvia sem entusiasmo. Mas ele
era insistente e falava de lugares e de coisas que ela gostava. “Que
coincidência, mãe...” Daí, conseguiu o primeiro encontro. Depois, o segundo e
mais outros e outros: “Minha filha, você tem que se distrair...”. Desde então,
ela já lhe confidenciava a sua tristeza e decepção. Fora casada. O marido a
quem devotara tanto amor, a traíra covardemente. “Nem todos são iguais. Você
tem que acreditar”, afirmava o bom ouvinte, pegando-lhe a mão trêmula e
beijando-a quase como quem prova do ar pela primeira ou uma última vez.
Porém,
após meses de uma convivência despretensiosa e agradável, de passeios e
confissões mútuas e intermináveis, ela percebeu que o companheiro não se
conformava apenas com a sua amizade. Ela gostava dele, sim, e muito, mas como
amigo, um bom amigo somente. Tinha que ser sincera e o foi, dilacerando o
coração do pobre homem, iludido de amores. “Pode me procurar depois, viu, mas somos
apenas amigos...”
Não
demorou muito, ele exigiu dela um novo encontro, nem que fosse o derradeiro.
Precisava lhe mostrar algo. Ela relutou, mas não poderia negar isso a ele.
Encontraram-se
no banco do parque. Ele estava soturno, tão triste quanto uma noite sem
estrelas, trazendo, agarrado ao peito, uma sacola. Logo que sentou-se, ele
passou para ela um álbum, mas não aquele, outro, de autoria própria, com
inúmeras fotos dos dois, recortadas cuidadosamente e coladas em glitter e canetinhas
hidrográficas, além de guardanapos, cartões, letras de músicas de gosto
comum...
Ela não
acreditava no que vira. Seus olhos escancaravam-se a cada página folheada. As
lágrimas tombavam por sobre aquele pequeno museu pessoal, quando ela olhou para
ele, meneou a cabeça lentamente e agarrou-se firme ao seu pescoço, numa
convicção perversa:
– Minha
alma gêmea!
Muito lindo! Emocionante!
ResponderExcluirGrato, Soraya, pela leitura.
ResponderExcluirMuito profundo, parabéns Raymundo.
ResponderExcluirBelo conto!
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