“Mas
eu a amo até o fim dos tempos...
e você não pode fazer nada para mudar isso!”
Aquela
severa e quase heroica confissão rasgaria os curiosos ouvidos do condomínio
inteiro. Mas quem poderia imaginar que ela partiria da quitinete tão silenciosa,
cheirando a urina, e logo daquele inquilino, um homem de mais de 80 anos, baixinho,
magro, quebrantado e que parecia mal se sustentar nas próprias pernas, tão raro
de sair de casa ou de ser visto pelas áreas comuns do prédio?
Souberam
depois que seu filho, contrariado com uma possível aventura de seu velho pai,
discutia e ameaçava: se ele não se afastasse daquela “piranha”, o colocaria num
asilo e tiraria dele o pouco do dinheiro que ainda lhe restara.
“Tenha
modos, Ozires Filho! Você nem a conhece e a julga desse jeito”, desiludia o
pai.
O filho,
entretanto, não se comovia, mesmo assistindo ao belo par de olhos azuis –
“herança do vovô, que era holandês” – a derramar em lágrimas a súplica por piedade.
“Tenho certeza que a sua filha pensa da mesma forma, papai. Da próxima vez que
eu souber que saiu e que deu dinheiro para aquela, aquela... – moderou –... já
sabe: asilo! Temos dinheiro para bancar seus remédios e plano de saúde, não. E
muito menos festejo de velho sem-vergonha.”
Resoluto,
o filho dirigiu-se ao quarto para deixar as fraldas descartáveis e os
medicamentos que havia trazido da farmácia, quando viu a sala vazia e a sua porta
aberta. Correu e ainda assistiu ao pai, em desabalada carreira, vestindo a
camisa e pegando um táxi que, por ventura, passava à porta. Ele correu atrás,
gritou. Os vizinhos saíram à janela e acudiram nos “Pega! Pega ele!”, mas o
veículo mouco ao tumulto partiu levando o velho resfolegante.
Ozires era
comerciário aposentado e viúvo. A esposa vivera enquanto pudera com ele – um câncer
a descansou –, mas o sabia cobiçado pelas mulheres no trabalho e no entorno.
Galanteador, abusava de perfume e de palavras adocicadas em mentiras para
tê-las próximo de si. Amava à debalde. Nunca alguém mais apaixonado. O casal de
filhos, ainda adolescentes, a pedido da mãe, ia resgatá-lo no bar do seu
Natanael, completamente bêbado, cantando a dor de cotovelo mais tórrida e
incurável, chorando horrores: “Eu quero morrer. Me deixem morrer em paz! Eu
mereço morrer...”
De fato,
há meses, à surdina noturna de uma casa de shows, deu-se com Setembrina: “Mas
me chamam por Seth”. Sentiu seu coração pulsar a paixão dilacerante, uma
lambança espiritual. Desde então, com os seus insuficientes recursos, passou a
ser seu protetor. Ela ligava todos os dias, por meio do celular novo pago pelo
velho, assim como também ele a regalava com perfumes, sapatos, acessórios,
roupas e bebida... em troca de uns poucos afagos, de um ouvido mesmo que
desatento, daquela sensação gostosa de remoçamento e do fim de uma solidão.
Então, com
a fuga do pai, Ozires Filho chamara logo a polícia. Estava furioso com ele, mas
só o veria novamente na manhã chuvosa do dia seguinte, apenas em fraldas, no
abandono da travessa escura e enlameada de um bairro distante. O corpo inerte,
frio, roxo de pancadas e com os olhos cuidadosamente arrancados e desaparecidos.
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