Publicado originalmente no jornal Rascunho
Antonio Candido tem um ensaio elucidativo sobre a crônica, no qual afirma que,
filha do jornal, comunicativa por pendor, a crônica consegue, com humor, com
uma linguagem natural, espontânea, praticamente “conversar com o leitor”. A
crônica é leve e, na sua simplicidade, ajuda a dimensionar os temas a que o
cronista se dedica. Na mão do cronista, o assunto grave, sisudo, fica ao
alcance de todos — enfim, as coisas complicadas da vida descem de seu cume,
ficam “ao rés do chão”.
A crônica, que poderia ser
descartável como o jornal que a envelopa, ganha sentido de permanência quando
transposta para o livro. E se fazem permanentes, têm força de grande
literatura, as crônicas do cearense Raymundo
Netto enfeixadas no livro Crônicas
absurdas de segunda (Edições Demócrito Rocha), ganhador
do Edital de Incentivo às Artes da Secult-CE e finalista do Prêmio Jabuti de
2016, que traz um prefácio saboroso e esclarecedor de Ana Miranda e uma
introdução do historiador da literatura cearense Sânzio de Azevedo.
Retiro do prefácio de Ana Miranda
dois trechos que definem bem a crônica de Raymundo Netto. No primeiro, a autora
de Boca do inferno alerta: “O texto de Netto
é descansado, sonhador, ambulante e dialogado, nunca em silêncio. Nunca
solitário. Não se importa com o realismo e mesmo quando é realista carrega a
fantasia da memória”. Adiante, Ana Miranda anota: “O seu narrador me faz
lembrar um senhor de chapéu coco e fraque, muito elegante, cortês. Entusiasmado
e fervoroso, vaga pelas ruas a olhar tudo e conversar com quem aparece ali.
Gosta de conversa. Um narrador carregado de sentimentos, uma afetividade à flor
da pele, e um pouquinho de malícia. Fala num tom de certo gracejo inocente,
aproveitando todos os momentos para chistes e improvisos”.
Crônicas absurdas de segunda é uma seleção de crônicas que Raymundo Netto
publicou no jornal O POVO, de 2007 a 2010. Há no
livro uma unidade, uma estrutura eficiente, que decorre dos seguintes
elementos:
1)
emprego constante de intertextualidade (aproveitamento,
através da paráfrase, do pastiche ou mesmo da paródia reverencial, de trechos de
obras de autores do passado e do presente);
2)
utilização do fantástico nos enredos;
3) telurismo (o
Ceará — os seus escritores, mortos e vivos — é o grande protagonista das
crônicas);
4) didatismo (para
cada crônica, há uma nota biográfica sobre o personagem-tema — o que contribui
para tornar o livro também um consistente manual sobre a literatura cearense).
Como
a crônica de Raymundo Netto, como bem disse Ana Miranda, traz um narrador que
“gosta de conversa” (algo análogo ao que formulou Antonio Candido, ou seja, que
o cronista enceta uma “conversa com o leitor”), indico aqui as conversas que
mais me chamaram a atenção no livro: a com a estátua de Rachel de Queiroz (“A moça do Zepelim prateado”), de caráter metalinguístico, em
que é discutido o fazer do cronista; a que trata de uma “mania” do também
cronista Pedro Salgueiro (“A dança das cadeiras”),
que, no bar, numa roda de amigos, “é sempre o último a se levantar para ir
embora”, evitando assim a “falação” dos outros; a com o poeta Quintino Cunha (“Molequintino”), excelente, exemplo do emprego eficaz do humor
na crônica; a com o contista e cronista Airton Monte (“Um monte de barata”), que aparece uma noite metamorfoseado de
barata. São ainda conversas constantes do livro Crônicas absurdas de segunda,
a com o grande contista Moreira Campos (“A casa vazia”), que chega em seu
fusquinha verde no estacionamento de um shopping — a crônica permite uma boa
reflexão sobre patrimônio e memória; e a com o “poeta maldito” José Alcides
Pinto (“A
peleja de Dom Zé Alcides e o Dragão de Sobral”), texto com
preciosos elementos fantásticos. São ainda personagens-temas das crônicas,
entre outros, o romancista José de Alencar, o dicionarista Raimundo de Menezes,
o contista e romancista Eduardo Campos, o contista Jorge Pieiro, o cronista
Milton Dias, o poeta Francisco Carvalho, a própria romancista Ana Miranda, o
pesquisador, poeta e cronista Audifax Rios, o poeta popular Mário Gomes, o
jurista, escritor e crítico Clóvis Beviláqua, o poeta, jornalista e orador
Demócrito Rocha, o romancista Antonio Sales, a romancista Socorro Acioli, o
poeta Horácio Dídimo, o cronista Lustosa da Costa e o romancista e contista
Nilto Maciel. Cearenses notáveis. São muitos os exemplos de crônicas bem
compostas no livro de Raymundo Netto. Se não comento todas aqui, é para não
apagar a curiosidade do leitor.
Crônicas
absurdas de segunda é um livro
precioso. Um livro para ser adotado em escolas, como forma de divulgar o
talento da gente do Ceará.
Crônicas Absurdas de Segunda – 2ª edição (232
páginas)
(com
ilustrações de Valber Benevides e participação de Ana Miranda, Sânzio
de Azevedo e Pedro Salgueiro)
Pode ser encontrado em livrarias, especialmente na Livraria Dummar
(sede do jornal O POVO) ou em seu endereço virtual para encomenda:
www.livrariadummar.com.br/cronicas-absurdas-de-segunda
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