A seguir, entrevista de Raymundo Netto ao jornalista Camilo Pestana, do jornal O Mosquitim.
O projeto “Padre Cícero: o filme” é uma iniciativa da Fundação Demócrito
Rocha, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, que resgata uma obra
considerada esquecida da historiografia cearense e o faz com muita pompa, em
forma de livro, reprodução do pôster em tamanho original e um estojo que acolhe
um documentário (45min) e o filme (1976).
Aqui, entrevistamos Raymundo Netto,
escritor, editor, pesquisador e coordenador geral do projeto:
O Mosquitim: Raymundo, como você tomou conhecimento desse filme?
Raymundo Netto:
Esse projeto já devia ter sido executado há tempos. Conheci a Elvira Sá de
Morais, produtora executiva do filme e filha do produtor Francisco Martins de
Morais, há muitos anos. Na época, ela tinha uma intenção, quase necessidade, de
trazer de volta, de qualquer maneira, esse filme, que tinha, por trás das
câmeras, uma história de alegria e de dor, como quase todas, aliás. Eu conheci
a escritora Ana Miranda – que representou a beata Maria de Araújo na película
–, um pouco antes, e foi ela quem me apresentou a Elvira para um trabalho de
edição de livro de dona Celina, sua mãe.
OM: E o que o levou a apresentar esse projeto ao MinC?
RN: A
princípio, Padre Cícero é o primeiro
longa-metragem colorido do Ceará e a primeira obra audiovisual ficcional sobre
a vida do padre. Isso, por si só, já justificaria a sua importância histórica,
chamando a atenção do MinC para o registro e resgate dessa obra como forma de
fomentar acervo e pesquisa da historiografia audiovisual brasileira. Entretanto,
com o tempo, lendo jornais da época, ouvindo relatos de conhecidos que
trabalharam na sua execução, ciente do momento histórico em que foi filmado e
lançado e percebendo a escassez de informações sobre ela, meu interesse não
apenas pelo filme, mas pelo contexto geral que o envolveu foi aumentando, a
ponto de desenvolver o projeto e apresentá-lo ao Ministério.
OM: Então o projeto não se reduz a relançar o filme, apresentá-lo nos
dias de hoje?
RN: Não. Eu
posso até dizer que nesse quesito, poderíamos ter ido mais além, e não fomos.
Gostaríamos de ter previsto orçamento para trabalhar no tratamento da peça que
se encontra na Cinemateca Nacional, mas exigiria um esforço bem maior, assim
como um equivalente aporte financeiro e o envolvimento de técnicos
especializados. E, com isso, talvez o resultado fosse bem menor. Decidimos
conferir um tratamento de imagem e de áudio da cópia que tínhamos em mão, mas,
focado na questão histórica, optamos em reunir o maior número de elementos que
contassem essa história, a preservassem, que ela chegasse a um maior número de
pessoas. E como fazer? Escreveríamos um livro. Aliás, esse é o produto
principal do projeto. Acreditamos que, por meio dele, e do documentário, outras
pessoas poderão se encarregar dessa tarefa, mas, necessário se fazia criar essa
curiosidade e interesse pela obra, até então, esquecida.
OM: E nesse livro, então, você conta a história do filme?
RN: Pois é. A
ideia era essa: contar a história do filme. Mas quem pesquisa sabe como isso se
dá. Iria escrever a história dele, iniciando pela biografia breve de seus
personagens principais: Francisco Martins de Morais (produtor), Helder Martins
de Moraes (diretor e roteirista) e Elvira Sá de Morais (produtora executiva).
Depois, avançaria, contextualizando o momento histórico, a Embrafilme, na
época, sob o comando de Roberto Farias, durante a Ditadura Civil-Militar. A
execução das filmagens, apresentando a equipe técnica e os atores cearenses e
de outros estados brasileiros, o percurso da filmagem, seus principais sets,
curiosidades de bastidores, ficha técnica, premiações, lançamentos etc.
Importante ressaltar a figura de Francisco Martins de Morais, o empresário que
acreditou e investiu nesse filme. Uma inspiração de mecenas. Natural de
Mauriti, também era devoto do “Padim Ciço”. Não foi muito difícil Helder
Martins, diplomata e seu primo, convencê-lo. Dedicamos o documentário, assim
como o livro, a ele, por este espírito tão necessário por aqui.
OM: Mas...
RN: Mas eu me
perguntei: “Afinal, o que difere Padre
Cícero de qualquer outra obra cinematográfica filmada no Ceará e que
justifique essa atenção?” Então, me vi obrigado a escrever um breve relato
histórico da produção audiovisual não apenas cearense, mas que foi filmada no
Ceará, no recorte de tempo de 50 anos (1924-1974), ou seja, desde a primeira
exibição do primeiro documentário de Ademar Bezerra de Albuquerque exibido no
Cine Moderno, em 15 de outubro de 1924 (daí essa data ser considerada o Dia do
Audiovisual Cearense) até o ano em que Helder Martins decidiu fazer um filme
tendo como protagonista o maior líder religioso brasileiro. Ou seja,
reconhecendo como seu deu toda essa trajetória, percebe-se o marco que foi a
produção de Padre Cícero para o
Ceará. E, para cumprir essa etapa, passei por algumas obras e consultei alguns
amigos que foram fundamentais, como Ary Bezerra Leite, Nirez, Frederico
Fontenele, Firmino Holanda, Sânzio de Azevedo, Renato Casimiro... Ah, não posso
esquecer, claro, que contei com entrevistas que fiz com todos aqueles que
também participaram do documentário, e com outros que, infelizmente, não
pudemos trazer, mas que nos contactamos por e-mail, telefone ou por meio de
webconferências, como Cacá Diniz (produtor que teve uma participação intensa na
“engenharia” do filme), Jefferson Albuquerque Jr (cenógrafo e ator), Emmanuel
Cavalcanti (ator), Benício (ilustrador) etc. Não posso deixar de agradecer ao
próprio Helder que me enviou diversos jornais da época e Valmi Paiva que me
cedeu caixas de slides com fotografias de still
de Evaristo Neto.
OM: Você nos disse que juntamente com o livro os leitores teriam outras
novidades. Quais seriam?
RN: Graças ao
espírito de pesquisador e de colecionador do ator, diretor e escritor Ricardo
Guilherme, nós tivemos acesso ao roteiro original do filme. Graças a ele,
pudemos comparar esse roteiro com a obra final, descobrir alguns aspectos
interessantes que se passaram na cabeça do roteirista Helder Martins, imaginar
o que ele desejava a princípio, conferir o que não foi filmado ou o que foi
filmado, mas que no momento da montagem decidiram retirar (foram mais de 7
horas de filmagem produzidas). Estudando o roteiro, percebi o quanto de
documental havia e, assim, me pus a fazer notas, quase um cotejamento
biográfico, com a história do próprio padre Cícero. Esse roteiro, com imitação
de fac-símile, é um anexo volumoso do livro.
OM: Curioso... Eu pensei que esse produto fosse encartado ao livro.
RN: Não. O que
vem encartado ao livro é outra surpresa: a reprodução do pôster do filme em
tamanho original. É um mimo para aqueles cinéfilos que sabem e entendem que,
até algum tempo, os fãs, quando sabiam que seu filme preferido – ou todos eles
– iria sair de cartaz, corria para o seu cinema de rua e esperava para pedir
que lhe dessem aquele cartaz como souvenir.
Assim, esse souvenir vem agora para
todos que adquirirem a obra. Outro dado importante é o seu ilustrador: José
Luiz Benício, que naquele tempo era o maior cartazista, se podemos definir
assim, do cinema, sendo o criador de mais de 300 peças, entre elas, as dos
filmes dos Trapalhões, Dona Flor e seus Dois Maridos, A Superfêmea, do Zé do Caixão, entre
outros. É lindo esse pôster.
OM: E essa pesquisa acabou por gerar o documentário que vai ser lançado
no Juazeiro?
RN: Antes, o
lançamento do documentário e do filme acontecerá no Festival Vida & Arte, no dia 24 de junho, um domingo, às 20h30.
Apenas em julho, dia 20, terá um lançamento no Memorial Padre Cícero pela manhã
e, à noite, exibiremos o filme de 1976 no Centro Cultural do Banco do Nordeste,
também em Juazeiro. E, sim, essa pesquisa orientou a elaboração do roteiro, a
filmagem, montagem e finalização. É um média-metragem e conta com a
participação e os relatos de Helder Martins, Elvira Sá de Morais, Ana Miranda,
Ricardo Guilherme, Haroldo Serra, Walden Luiz, Nirton Venâncio, Rosemberg
Cariry, Valmi Paiva e de moradores de Rosário, a “Juazeiro do século XIX”,
intercalados por cenas do filme de 1976. A meu ver, quem assiste ao
documentário fica bem curioso de conhecer a obra original.
OM: Impressiona saber de um filme com tantos nomes cearenses de tanto
valor, como Haroldo Serra, Walden Luiz, Ricardo Guilherme... E a Ana Miranda
como atriz? Que achado! E mesmo assim esse desconhecimento da obra?
RN: Esquecer, Pestana,
no Ceará, não é exceção, mas quase uma regra. Temos muita facilidade de
esquecer. Não é à toa que a apresentação do livro é intitulada “Cine Amnésia”.
Nasceu de uma provocação do pesquisador Firmino Holanda que, em entrevista ao
jornal O POVO, fala sobre o desconhecimento quase geral (de crítica e de público)
sobre o filme Padre Cícero e lamenta
o que denomina “desleixada preservação de nossa memória audiovisual”. Pois bem
decidimos criar uma coleção “Memória do Audiovisual Cearense” que estreia,
justamente, com essa obra. Para quem gosta e pesquisa cinema, um prato cheio.
Aliás, em tempo, na ilustração de Benício, encontramos vários atores do cinema,
mas cearenses apenas Ana Miranda e o Nildo Parente, que tinham projeção
nacional. Assim, na capa do livro, o ilustrador Karlson Gracie, sobre a
ilustração dele, acrescentou Ricardo Guilherme, Haroldo Serra e Seny Furtado, a
nosso ver, uma simbólica e merecida contribuição para esse resgate .
OM: E que hoje alguns deles são nossas maiores referências no teatro,
como o Ricardo, que criou o Teatro Radical, o Haroldo que, juntamente com a
Hiramisa, carrega anos de história na Comédia Cearense, e o Walden, também um
dos mais prestigiados no segmento.
RN: O Marcus
Miranda também participou, embora com um papel sem falas e curto, assim como
José Magestik. O frei Kerginaldo Memória participou na figura do bispo dom
Luiz.
OM: Você me lembrou bem. Há um casting
impressionante de atores que participaram desse filme além dos nossos, os
cearenses. Pode citá-los?
RN: Claro. A
Embrafilme estava muito ligada a esse filme, uma superprodução, a primeira
grande experiência do ciclo cinematográfico cearense. Havia o interesse de
realizações audiovisuais sobre personagens históricos, num clima de
nacionalismo próprio do momento político. Padre Cícero, então, pensava Helder,
seria apoteótico. Para tal, havia a natural exigência da presença de grandes
nomes do cinema da época, e assim foi feito. Entre eles: Jofre Soares, José
Lewgoy, Dirce Migliaccio, Nildo Parente, Emmanuel Cavalcanti, Rodolfo Arena,
Ana Miranda, Manfredo Colasanti, Cristina Aché, Ângela Valério, Hileana Menezes
etc.
OM: Incrível imaginar todas essas pessoas, durante três meses, filmando
por aqui, em Fortaleza, Caucaia, Juazeiro, Baturité, Crato, Rosário...
RN: E tão
importante quanto o elenco foi a sua equipe técnica: José Medeiros, que Glauber
Rocha afirmava ser “o único que sabia fazer uma luz brasileira”, Walter
Carvalho, Cacá Diniz, Antônio Luiz Mendes e Walden Luiz. O Walden, inclusive, foi
responsável pelo único prêmio recebido pelo filme, o de “melhor figurino”, pela
Associação Paulista de Críticos de Arte.
OM: E pelo que me falou, parece que o filme não emplacou no quesito público
e bilheteria.
RN: Cinema é
acima de tudo o seu fazer artístico. Essa coisa de bilheteria é exigência de
mercado. Aliás, um mercado que cria fakes
sucessos, em todas as linguagens, afinal, para eles esses “produtos” têm que
vender. Não importa se são bons ou ruins, se estiverem nas mãos de uma empresa ou
de um agente com essa expertise, tentarão a todo custo enfiá-los na goela das
pessoas – meros consumidores – que não têm crítica (o povo subdesenvolvido
culturalmente brasileiro), e que precisam ler a assinatura da chancela para “acreditar”
neles. Claro, isso aliado à inexistência da crítica isenta e com o apoio bem
pago e/ou articulado de uma imprensa deslumbrada que segue sua filosofia de garantir
a venda também de seu produto revista/jornal, e por aí vai. Se o seu “produto”
não cair nas graças desses tubarões, você poderá até aparecer, mas vai ter que suar
bem mais ou morrer clamando no deserto. No caso do Padre Cícero, penso que o problema foi a sua distribuição e a
inexperiência da produtora que, sozinha, ao final, tinha que garantir
pagamentos e outras responsabilidades, não tendo braços nem apoio para as
devidas articulações. Mas, não há dúvida, o filme é ousado.
OM: Para concluir, Raymundo Netto, o que espera afinal do resultado desse
projeto?
RN: Nós iremos divulgar esse material em alguns
lançamentos que já estão previstos e outros que estão porvir. O documentário e
o filme também serão veiculados, a princípio, na TV O POVO (no Canal Futura
48.1, dia 30 de junho, as 17h, o filme “Padre Cícero: os milagres de Juazeiro”),
mas estamos articulando para a sua exibição pelo Canal Futura em rede nacional
e na TVC. Alguns dos exemplares do livro Padre
Cícero (com o pôster) e do estojo (DVD com filme de 1976 e o documentário) já
estão sendo disponibilizados a acervos e casas de cinema de todo país. Enfim,
fizemos ou tentamos fazer a nossa parte. Esperamos despertar em outros
pesquisadores e agentes culturais esse espírito de descobrir, fazer, refazer,
registrar e assegurar para as futuras gerações a preservação de nosso
patrimônio artístico-cultural . Afinal, o futuro não se espera, mas se faz
desde já.