sábado, 30 de junho de 2018

"Infidelidade", de Raymundo Netto para O POVO



Sátiro era realmente de um azar medonho!
Imagine que no escritório, nos bares, cinemas, sebos, no círculo de leitura, até na padaria, e seja lá onde mais estivesse, não era incomum assanhar a mulherada. Sem esforço, as seduzia com a fala mansa, os ouvidos pacientes e o olhar desinteressado. Porém, entre todas as mulheres do mundo, a única que não lhe dava o menor cartaz era justamente Artemísia, a sua esposa. Muito pelo contrário, ela parecia se deliciar em humilhações com o marido. Desmentia o coitado na frente de amigos e o desfazia para as amigas. Não o deixava descansar em casa, sempre reclamando da vida, da sua inutilidade, exigindo-lhe mais do que podia, e, à noite, o rejeitava na cama. Dizia abertamente ter nojo de seus modos, do seu cheiro, além de irritar-se com sua voz e conversa monótona: “Você não presta, Sátiro!” 
Não importava. Ele a amava, e a amava solitário e profundamente, como um coveiro ama a morte.
Os amigos se solidarizavam: “Rapaz, seja homem. Ninguém merece passar por isso. E, tenha dó, se a patroa não se dedica, há de ter aquela amiga...”
Nessas horas, ele deixava escapar um sorrisinho malicioso de coisa guardada a 7 chaves – que ele daria tudo para se lembrar onde esquecera ao menos uma: “ Ah, vocês não entendem... Mas é por que não sabem... e ainda bem que não!” Mesmo ali, em sua miséria pessoal, sorvia a sua cervejinha arrogante, como triunfal, porém incompreendido, vencedor.
Certa noite, após um dia intenso de trabalho, chegou em casa e perguntou pelo jantar. Ela, após um costumeiro “Não sou sua empregada”, pediu que sentasse: “Não gosto de embromação, você sabe. Pois bem, vai ser duro para nós dois, mas sou franca: eu te traí hoje!”
“Traiu?” Aquela palavra rebentou em seus ouvidos como um estampido de revólver, uma bomba atômica, a expulsão do Paraíso. Hesitou: “Como assim, amor?”
A mulher se aborreceu. Colocou as mãos nos quartos: “Como assim? Quer que eu conte em detalhes, seu abestado?”
Sátiro, tremendo-se todo, empertigou-se e levantou rapidamente: “Tenho que tomar um ar”.
Saiu zonzo de casa, enquanto a mulher, exausta, foi-se deitar com a leveza de um querubim.
Chegou ao bar, onde encontrou a turma animada a comemorar o resultado do futebol. Ele, pálido e sem pedir licença, lançou-se por cima da mesinha de plástico, virando copos e espetinhos, caindo num pranto frouxo e dolente de moça largada. Contou seu drama. A mulher tivera coragem de trair o compromisso. Justo com ele, mais fiel do que ponteiro de balança.
Os colegas, pasmos com a pungente confissão, reagiram. O primeiro: “Que piranha! Com todo respeito, Sátiro, mas essa sua mulher não vale o que o gato enterra... Paga na mesma moeda. Reaja, homem, ela está pensando que você é o quê?” Outro dava ideia: “Beba, beba... Isso não pode ficar assim. Joga as tralhas dela na rua. Beba que ajuda.” Aquele era mais enfático: “Se fosse comigo, não estava mais aí para contar história... Acha que vai ficar assim e pronto? Você tem sangue de barata, por acaso?”
Então, súbito, Sátiro pôs-se em pé. “Não, isso não ficaria assim, mesmo. Reagiria!” Sem dizer mais nada, dirigiu-se à saída com uma passada longa e forçosa.
Os amigos pensaram: “Vai fazer uma besteira. Está doido, fora de si.”
Compraram umas latinhas extras de cerveja e correram eufóricos para a casa do atraiçoado, chegando a tempo de assisti-lo, choroso, apertando ao peito um buquê de rosas, de joelhos e prostrado aos pés da mulher, suplicando-lhe o mais sincero e servil perdão.


sexta-feira, 22 de junho de 2018

“Padre Cícero por trás das câmeras”, de Camilo Pestana para "O Mosquitim"


A seguir, entrevista de Raymundo Netto ao jornalista Camilo Pestana, do jornal O Mosquitim.

O projeto “Padre Cícero: o filme” é uma iniciativa da Fundação Demócrito Rocha, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, que resgata uma obra considerada esquecida da historiografia cearense e o faz com muita pompa, em forma de livro, reprodução do pôster em tamanho original e um estojo que acolhe um documentário (45min) e o filme (1976).
Aqui, entrevistamos Raymundo Netto, escritor, editor, pesquisador e coordenador geral do projeto:

O Mosquitim: Raymundo, como você tomou conhecimento desse filme?
Raymundo Netto: Esse projeto já devia ter sido executado há tempos. Conheci a Elvira Sá de Morais, produtora executiva do filme e filha do produtor Francisco Martins de Morais, há muitos anos. Na época, ela tinha uma intenção, quase necessidade, de trazer de volta, de qualquer maneira, esse filme, que tinha, por trás das câmeras, uma história de alegria e de dor, como quase todas, aliás. Eu conheci a escritora Ana Miranda – que representou a beata Maria de Araújo na película –, um pouco antes, e foi ela quem me apresentou a Elvira para um trabalho de edição de livro de dona Celina, sua mãe.

OM: E o que o levou a apresentar esse projeto ao MinC?
RN: A princípio, Padre Cícero é o primeiro longa-metragem colorido do Ceará e a primeira obra audiovisual ficcional sobre a vida do padre. Isso, por si só, já justificaria a sua importância histórica, chamando a atenção do MinC para o registro e resgate dessa obra como forma de fomentar acervo e pesquisa da historiografia audiovisual brasileira. Entretanto, com o tempo, lendo jornais da época, ouvindo relatos de conhecidos que trabalharam na sua execução, ciente do momento histórico em que foi filmado e lançado e percebendo a escassez de informações sobre ela, meu interesse não apenas pelo filme, mas pelo contexto geral que o envolveu foi aumentando, a ponto de desenvolver o projeto e apresentá-lo ao Ministério.

OM: Então o projeto não se reduz a relançar o filme, apresentá-lo nos dias de hoje?
RN: Não. Eu posso até dizer que nesse quesito, poderíamos ter ido mais além, e não fomos. Gostaríamos de ter previsto orçamento para trabalhar no tratamento da peça que se encontra na Cinemateca Nacional, mas exigiria um esforço bem maior, assim como um equivalente aporte financeiro e o envolvimento de técnicos especializados. E, com isso, talvez o resultado fosse bem menor. Decidimos conferir um tratamento de imagem e de áudio da cópia que tínhamos em mão, mas, focado na questão histórica, optamos em reunir o maior número de elementos que contassem essa história, a preservassem, que ela chegasse a um maior número de pessoas. E como fazer? Escreveríamos um livro. Aliás, esse é o produto principal do projeto. Acreditamos que, por meio dele, e do documentário, outras pessoas poderão se encarregar dessa tarefa, mas, necessário se fazia criar essa curiosidade e interesse pela obra, até então, esquecida.

OM: E nesse livro, então, você conta a história do filme?
RN: Pois é. A ideia era essa: contar a história do filme. Mas quem pesquisa sabe como isso se dá. Iria escrever a história dele, iniciando pela biografia breve de seus personagens principais: Francisco Martins de Morais (produtor), Helder Martins de Moraes (diretor e roteirista) e Elvira Sá de Morais (produtora executiva). Depois, avançaria, contextualizando o momento histórico, a Embrafilme, na época, sob o comando de Roberto Farias, durante a Ditadura Civil-Militar. A execução das filmagens, apresentando a equipe técnica e os atores cearenses e de outros estados brasileiros, o percurso da filmagem, seus principais sets, curiosidades de bastidores, ficha técnica, premiações, lançamentos etc. Importante ressaltar a figura de Francisco Martins de Morais, o empresário que acreditou e investiu nesse filme. Uma inspiração de mecenas. Natural de Mauriti, também era devoto do “Padim Ciço”. Não foi muito difícil Helder Martins, diplomata e seu primo, convencê-lo. Dedicamos o documentário, assim como o livro, a ele, por este espírito tão necessário por aqui.

OM: Mas...
RN: Mas eu me perguntei: “Afinal, o que difere Padre Cícero de qualquer outra obra cinematográfica filmada no Ceará e que justifique essa atenção?” Então, me vi obrigado a escrever um breve relato histórico da produção audiovisual não apenas cearense, mas que foi filmada no Ceará, no recorte de tempo de 50 anos (1924-1974), ou seja, desde a primeira exibição do primeiro documentário de Ademar Bezerra de Albuquerque exibido no Cine Moderno, em 15 de outubro de 1924 (daí essa data ser considerada o Dia do Audiovisual Cearense) até o ano em que Helder Martins decidiu fazer um filme tendo como protagonista o maior líder religioso brasileiro. Ou seja, reconhecendo como seu deu toda essa trajetória, percebe-se o marco que foi a produção de Padre Cícero para o Ceará. E, para cumprir essa etapa, passei por algumas obras e consultei alguns amigos que foram fundamentais, como Ary Bezerra Leite, Nirez, Frederico Fontenele, Firmino Holanda, Sânzio de Azevedo, Renato Casimiro... Ah, não posso esquecer, claro, que contei com entrevistas que fiz com todos aqueles que também participaram do documentário, e com outros que, infelizmente, não pudemos trazer, mas que nos contactamos por e-mail, telefone ou por meio de webconferências, como Cacá Diniz (produtor que teve uma participação intensa na “engenharia” do filme), Jefferson Albuquerque Jr (cenógrafo e ator), Emmanuel Cavalcanti (ator), Benício (ilustrador) etc. Não posso deixar de agradecer ao próprio Helder que me enviou diversos jornais da época e Valmi Paiva que me cedeu caixas de slides com fotografias de still de Evaristo Neto.

OM: Você nos disse que juntamente com o livro os leitores teriam outras novidades. Quais seriam?
RN: Graças ao espírito de pesquisador e de colecionador do ator, diretor e escritor Ricardo Guilherme, nós tivemos acesso ao roteiro original do filme. Graças a ele, pudemos comparar esse roteiro com a obra final, descobrir alguns aspectos interessantes que se passaram na cabeça do roteirista Helder Martins, imaginar o que ele desejava a princípio, conferir o que não foi filmado ou o que foi filmado, mas que no momento da montagem decidiram retirar (foram mais de 7 horas de filmagem produzidas). Estudando o roteiro, percebi o quanto de documental havia e, assim, me pus a fazer notas, quase um cotejamento biográfico, com a história do próprio padre Cícero. Esse roteiro, com imitação de fac-símile, é um anexo volumoso do livro.

OM: Curioso... Eu pensei que esse produto fosse encartado ao livro.
RN: Não. O que vem encartado ao livro é outra surpresa: a reprodução do pôster do filme em tamanho original. É um mimo para aqueles cinéfilos que sabem e entendem que, até algum tempo, os fãs, quando sabiam que seu filme preferido – ou todos eles – iria sair de cartaz, corria para o seu cinema de rua e esperava para pedir que lhe dessem aquele cartaz como souvenir. Assim, esse souvenir vem agora para todos que adquirirem a obra. Outro dado importante é o seu ilustrador: José Luiz Benício, que naquele tempo era o maior cartazista, se podemos definir assim, do cinema, sendo o criador de mais de 300 peças, entre elas, as dos filmes dos Trapalhões, Dona Flor e seus Dois Maridos, A Superfêmea, do Zé do Caixão, entre outros. É lindo esse pôster.

OM: E essa pesquisa acabou por gerar o documentário que vai ser lançado no Juazeiro?
RN: Antes, o lançamento do documentário e do filme acontecerá no Festival Vida & Arte, no dia 24 de junho, um domingo, às 20h30. Apenas em julho, dia 20, terá um lançamento no Memorial Padre Cícero pela manhã e, à noite, exibiremos o filme de 1976 no Centro Cultural do Banco do Nordeste, também em Juazeiro. E, sim, essa pesquisa orientou a elaboração do roteiro, a filmagem, montagem e finalização. É um média-metragem e conta com a participação e os relatos de Helder Martins, Elvira Sá de Morais, Ana Miranda, Ricardo Guilherme, Haroldo Serra, Walden Luiz, Nirton Venâncio, Rosemberg Cariry, Valmi Paiva e de moradores de Rosário, a “Juazeiro do século XIX”, intercalados por cenas do filme de 1976. A meu ver, quem assiste ao documentário fica bem curioso de conhecer a obra original.

OM: Impressiona saber de um filme com tantos nomes cearenses de tanto valor, como Haroldo Serra, Walden Luiz, Ricardo Guilherme... E a Ana Miranda como atriz? Que achado! E mesmo assim esse desconhecimento da obra?
RN: Esquecer, Pestana, no Ceará, não é exceção, mas quase uma regra. Temos muita facilidade de esquecer. Não é à toa que a apresentação do livro é intitulada “Cine Amnésia”. Nasceu de uma provocação do pesquisador Firmino Holanda que, em entrevista ao jornal O POVO, fala sobre o desconhecimento quase geral (de crítica e de público) sobre o filme Padre Cícero e lamenta o que denomina “desleixada preservação de nossa memória audiovisual”. Pois bem decidimos criar uma coleção “Memória do Audiovisual Cearense” que estreia, justamente, com essa obra. Para quem gosta e pesquisa cinema, um prato cheio. Aliás, em tempo, na ilustração de Benício, encontramos vários atores do cinema, mas cearenses apenas Ana Miranda e o Nildo Parente, que tinham projeção nacional. Assim, na capa do livro, o ilustrador Karlson Gracie, sobre a ilustração dele, acrescentou Ricardo Guilherme, Haroldo Serra e Seny Furtado, a nosso ver, uma simbólica e merecida contribuição para esse resgate .


OM: E que hoje alguns deles são nossas maiores referências no teatro, como o Ricardo, que criou o Teatro Radical, o Haroldo que, juntamente com a Hiramisa, carrega anos de história na Comédia Cearense, e o Walden, também um dos mais prestigiados no segmento.
RN: O Marcus Miranda também participou, embora com um papel sem falas e curto, assim como José Magestik. O frei Kerginaldo Memória participou na figura do bispo dom Luiz.

OM: Você me lembrou bem. Há um casting impressionante de atores que participaram desse filme além dos nossos, os cearenses. Pode citá-los?
RN: Claro. A Embrafilme estava muito ligada a esse filme, uma superprodução, a primeira grande experiência do ciclo cinematográfico cearense. Havia o interesse de realizações audiovisuais sobre personagens históricos, num clima de nacionalismo próprio do momento político. Padre Cícero, então, pensava Helder, seria apoteótico. Para tal, havia a natural exigência da presença de grandes nomes do cinema da época, e assim foi feito. Entre eles: Jofre Soares, José Lewgoy, Dirce Migliaccio, Nildo Parente, Emmanuel Cavalcanti, Rodolfo Arena, Ana Miranda, Manfredo Colasanti, Cristina Aché, Ângela Valério, Hileana Menezes etc.

OM: Incrível imaginar todas essas pessoas, durante três meses, filmando por aqui, em Fortaleza, Caucaia, Juazeiro, Baturité, Crato, Rosário...
RN: E tão importante quanto o elenco foi a sua equipe técnica: José Medeiros, que Glauber Rocha afirmava ser “o único que sabia fazer uma luz brasileira”, Walter Carvalho, Cacá Diniz, Antônio Luiz Mendes e Walden Luiz. O Walden, inclusive, foi responsável pelo único prêmio recebido pelo filme, o de “melhor figurino”, pela Associação Paulista de Críticos de Arte.

OM: E pelo que me falou, parece que o filme não emplacou no quesito público e bilheteria.
RN: Cinema é acima de tudo o seu fazer artístico. Essa coisa de bilheteria é exigência de mercado. Aliás, um mercado que cria fakes sucessos, em todas as linguagens, afinal, para eles esses “produtos” têm que vender. Não importa se são bons ou ruins, se estiverem nas mãos de uma empresa ou de um agente com essa expertise, tentarão a todo custo enfiá-los na goela das pessoas – meros consumidores – que não têm crítica (o povo subdesenvolvido culturalmente brasileiro), e que precisam ler a assinatura da chancela para “acreditar” neles. Claro, isso aliado à inexistência da crítica isenta e com o apoio bem pago e/ou articulado de uma imprensa deslumbrada que segue sua filosofia de garantir a venda também de seu produto revista/jornal, e por aí vai. Se o seu “produto” não cair nas graças desses tubarões, você poderá até aparecer, mas vai ter que suar bem mais ou morrer clamando no deserto. No caso do Padre Cícero, penso que o problema foi a sua distribuição e a inexperiência da produtora que, sozinha, ao final, tinha que garantir pagamentos e outras responsabilidades, não tendo braços nem apoio para as devidas articulações. Mas, não há dúvida, o filme é ousado.

OM: Para concluir, Raymundo Netto, o que espera afinal do resultado desse projeto?
RN: Nós iremos divulgar esse material em alguns lançamentos que já estão previstos e outros que estão porvir. O documentário e o filme também serão veiculados, a princípio, na TV O POVO (no Canal Futura 48.1, dia 30 de junho, as 17h, o filme “Padre Cícero: os milagres de Juazeiro”), mas estamos articulando para a sua exibição pelo Canal Futura em rede nacional e na TVC. Alguns dos exemplares do livro Padre Cícero (com o pôster) e do estojo (DVD com filme de 1976 e o documentário) já estão sendo disponibilizados a acervos e casas de cinema de todo país. Enfim, fizemos ou tentamos fazer a nossa parte. Esperamos despertar em outros pesquisadores e agentes culturais esse espírito de descobrir, fazer, refazer, registrar e assegurar para as futuras gerações a preservação de nosso patrimônio artístico-cultural . Afinal, o futuro não se espera, mas se faz desde já.






segunda-feira, 18 de junho de 2018

"Mulher Séria", conto de Raymundo Netto para O POVO



“A minha mulher é o diabo!”
Barata era cabo em uma corporação militar. Há anos, casara com Mafalda, bibliotecária, mulher séria que, de tão séria, beirava a chatice incondicional. Não bastasse ser ela imensa e ele, ao contrário, um tampinha que nem a farda lhe era capaz de oferecer qualquer altivez, o coitado morria de medo da mulher. Isso não era segredo para ninguém e muito menos para ela, a gozar do direito de humilhá-lo publicamente, a qualquer tempo e a qualquer hora. Orgulhava-se de conduzir o infeliz a rédeas curtas e não lhe poupava ameaças. Por qualquer coisa, ouvia-se “Barataaaa!” e, como num deus nos acuda, e “se demorasse era pior”, lá se ia a criatura postar-se diante dela, a se entregar aos seus cascudos.
Em um carnaval, contou-me ela, estavam num sítio com a família. Ele, após o almoço, dormia na rede quando despertou com um baque nos peitos. Era o filho. Zonzo, com as costelas ardendo, ouviu da mulher: “Não fiz esse menino sozinha! Quer moleza? Também mereço!” E saía dali altiva, prendendo os cabelos, deixando para trás o menino berrando no ouvido do pai, o que não o constrangia tanto quanto as gargalhadas de cunhados a caçoar: “Ele é cabo, mas ela, sim, é o sargento!” Barata se sentia um inseto.
Amigas alertavam Mafalda: “Vai perder o marido...” Ela, entretanto, mais segura que uma coluna romana, batia fortemente nos fartos seios: “Sou mulher direita. Nunca traí! Como eu, o traste não encontra!” Sim, Barata ouvia essa lengalenga todos os dias – “Sou fiel! Sou fiel!” – como se isso justificasse aquele inferno sem fim. Até os amigos estranhavam: “Separa, Barata. Mulher boa tem aos montes. A sua, é bucha de canhão!”
Um dia, uma surpresa inédita: Mafalda trouxe um colega de trabalho para almoçar. Era o Pinto. Apresentou-lhe com tão largo sorriso, que o Barata estranhou: “Nem lembrava que tinha dentes...”
Durante as semanas seguintes, a agora falante Mafalda, não dizia nada que não saísse o Pinto no meio. A sua boca era o Pinto! Aquele, às suas vistas, parecia ser o ideal masculino. Então, Barata lampejou: passou a insistir que a mulher trouxesse o Pinto mais vezes: “É raro um bom amigo”. Motivava o convite para irem ao cinema, ao teatro... Não se preocupasse, ele ficaria com o filho: “Nem gostava dessas coisas”. E assim, muitas vezes, aconteceu de ela sair arrumada e cheirosa com o colega. Nessas noites tardas, vinha leve e fagueira e, sem conversa, ia logo dormir sem reclamar de nada.
Uma noite, Barata deixou o filho com a sogra e disse à esposa que, extraordinariamente, estava de serviço no quartel. Então, sugeriu convidar o Pinto, “um jantar talvez”, para que ela não ficasse tão sozinha. Convencida, assim o fez. O que ela não sabia é que durante a noite inteira o ardiloso marido se plantaria de tocaia no jardim. Corria para a janela do quarto de casal, brechava, mas eles não saíram da sala, bebendo e rindo a valer de um filme antigo.  Lá fora, Barata torcia: “É agora, vamos, é agora...” e nada acontecia. Até que, tarde, o Pinto levantou-se, apertou a mão de Mafalda e se dirigiu à saída, sendo, ainda na soleira, arrebatado pelo Barata que, enlouquecido, o esmurrava fartamente.
Escandalizada, Mafalda pegou o marido numa gravata íntima: “O que é isso, Barata? Endoidou, homem?” Chorando e desesperado diante do fracasso a três, rendeu-se com a cara nos seios da mulher e, apontando para a vítima, berrava ao quarteirão: “Esse Pinto é frouxo! É froooouxooo!”



sábado, 16 de junho de 2018

"Crônicas sobre o Talento Cearense", de Rinaldo de Fernandes



Publicado originalmente no jornal Rascunho

Antonio Candido tem um ensaio elucidativo sobre a crônica, no qual afirma que, filha do jornal, comunicativa por pendor, a crônica consegue, com humor, com uma linguagem natural, espontânea, praticamente “conversar com o leitor”. A crônica é leve e, na sua simplicidade, ajuda a dimensionar os temas a que o cronista se dedica. Na mão do cronista, o assunto grave, sisudo, fica ao alcance de todos — enfim, as coisas complicadas da vida descem de seu cume, ficam “ao rés do chão”.
A crônica, que poderia ser descartável como o jornal que a envelopa, ganha sentido de permanência quando transposta para o livro. E se fazem permanentes, têm força de grande literatura, as crônicas do cearense Raymundo Netto enfeixadas no livro Crônicas absurdas de segunda (Edições Demócrito Rocha), ganhador do Edital de Incentivo às Artes da Secult-CE e finalista do Prêmio Jabuti de 2016, que traz um prefácio saboroso e esclarecedor de Ana Miranda e uma introdução do historiador da literatura cearense Sânzio de Azevedo.
Retiro do prefácio de Ana Miranda dois trechos que definem bem a crônica de Raymundo Netto. No primeiro, a autora de Boca do inferno alerta: “O texto de Netto é descansado, sonhador, ambulante e dialogado, nunca em silêncio. Nunca solitário. Não se importa com o realismo e mesmo quando é realista carrega a fantasia da memória”. Adiante, Ana Miranda anota: “O seu narrador me faz lembrar um senhor de chapéu coco e fraque, muito elegante, cortês. Entusiasmado e fervoroso, vaga pelas ruas a olhar tudo e conversar com quem aparece ali. Gosta de conversa. Um narrador carregado de sentimentos, uma afetividade à flor da pele, e um pouquinho de malícia. Fala num tom de certo gracejo inocente, aproveitando todos os momentos para chistes e improvisos”.
Crônicas absurdas de segunda é uma seleção de crônicas que Raymundo Netto publicou no jornal O POVO, de 2007 a 2010. Há no livro uma unidade, uma estrutura eficiente, que decorre dos seguintes elementos:
1) emprego constante de intertextualidade (aproveitamento, através da paráfrase, do pastiche ou mesmo da paródia reverencial, de trechos de obras de autores do passado e do presente);
2) utilização do fantástico nos enredos;
3) telurismo (o Ceará — os seus escritores, mortos e vivos — é o grande protagonista das crônicas);
4) didatismo (para cada crônica, há uma nota biográfica sobre o personagem-tema — o que contribui para tornar o livro também um consistente manual sobre a literatura cearense).
Como a crônica de Raymundo Netto, como bem disse Ana Miranda, traz um narrador que “gosta de conversa” (algo análogo ao que formulou Antonio Candido, ou seja, que o cronista enceta uma “conversa com o leitor”), indico aqui as conversas que mais me chamaram a atenção no livro: a com a estátua de Rachel de Queiroz (“A moça do Zepelim prateado”), de caráter metalinguístico, em que é discutido o fazer do cronista; a que trata de uma “mania” do também cronista Pedro Salgueiro (“A dança das cadeiras”), que, no bar, numa roda de amigos, “é sempre o último a se levantar para ir embora”, evitando assim a “falação” dos outros; a com o poeta Quintino Cunha (“Molequintino”), excelente, exemplo do emprego eficaz do humor na crônica; a com o contista e cronista Airton Monte (“Um monte de barata”), que aparece uma noite metamorfoseado de barata. São ainda conversas constantes do livro Crônicas absurdas de segunda, a com o grande contista Moreira Campos (“A casa vazia”), que chega em seu fusquinha verde no estacionamento de um shopping — a crônica permite uma boa reflexão sobre patrimônio e memória; e a com o “poeta maldito” José Alcides Pinto (“A peleja de Dom Zé Alcides e o Dragão de Sobral”), texto com preciosos elementos fantásticos. São ainda personagens-temas das crônicas, entre outros, o romancista José de Alencar, o dicionarista Raimundo de Menezes, o contista e romancista Eduardo Campos, o contista Jorge Pieiro, o cronista Milton Dias, o poeta Francisco Carvalho, a própria romancista Ana Miranda, o pesquisador, poeta e cronista Audifax Rios, o poeta popular Mário Gomes, o jurista, escritor e crítico Clóvis Beviláqua, o poeta, jornalista e orador Demócrito Rocha, o romancista Antonio Sales, a romancista Socorro Acioli, o poeta Horácio Dídimo, o cronista Lustosa da Costa e o romancista e contista Nilto Maciel. Cearenses notáveis. São muitos os exemplos de crônicas bem compostas no livro de Raymundo Netto. Se não comento todas aqui, é para não apagar a curiosidade do leitor. 
Crônicas absurdas de segunda é um livro precioso. Um livro para ser adotado em escolas, como forma de divulgar o talento da gente do Ceará.

Crônicas Absurdas de Segunda – 2ª edição (232 páginas)
(com ilustrações de Valber Benevides e participação de Ana Miranda, Sânzio de Azevedo e Pedro Salgueiro)
Pode ser encontrado em livrarias, especialmente na Livraria Dummar (sede do jornal O POVO) ou em seu endereço virtual para encomenda:
www.livrariadummar.com.br/cronicas-absurdas-de-segunda



segunda-feira, 4 de junho de 2018

"Maurício Gentil", de Raymundo Netto para O POVO



Maurício Gentil o era tanto quanto o seu nome acusava.
Naquela manhã, à exaustiva esperança de prole pela esposa, adentrava uma clínica a cumprir o espermograma. Tímido, pensava em como falar com a moça da recepção sobre “aquilo”... Nem precisava. Ao vê-lo, lançou à queima-roupa, na frente dos demais clientes, perguntas indiscretas sobre hábitos íntimos e outras coisas do tipo. Gentil travava, murmurando sins ou nãos hesitantes.
Ainda na recepção, disfarçou ler jornal, enquanto assistia à saída de outros homens de uma saleta de porta apertada. Discretos e ligeiros, se dirigiam à mulher, lhe entregavam algo e corriam. Foi quando ela gritou, mortalmente: “Sr. Gentil, é a sua vez, por favor!”
Trêmulo e desajeitado, dirigiu-se a ela, que o entregou um frasco, teceu recomendações de higiene e o conduziu à saleta, lhe fechando a porta na cara. Não havia mais o que fazer. Acuado e em desamparo absoluto, lançou-se, copinho na mão, numa poltrona larga, diante de uma TV que exibia uma frenética e barata cena de sexo, com mulheres de seios enormes gritando por Deus, feito loucas. Ao lado, revistas pornográficas e fotonovelas eróticas, com páginas pregadas, rasgadas provavelmente por algum aspirante a maníaco sexual.
Maurício deprimiu-se. Lembrava-se da mulher em casa, há meses, apontando-lhe a dedo o compromisso conjugal e, naquela manhã, o acordar solícito no preparo de vitaminas e outras misturas exóticas. Estava lá agora, a pouca luz, cercado de mulheres nuas, a calça nos joelhos, distraído no vazio daquele ridículo copinho de plástico, quando despertou ao chamado do celular – o hino do Botafogo! No visor, a foto sorridente daquele insuportável cunhado: “Raimundão, não não po-posso falar agora não, ca-cara. Estou no médico. Liga o-outra hora, tá?” E desligou, justo quando a atendente bateu na porta: “Está tudo bem, seu Gentil?” Ele, vestindo desastradamente a calça, disse que sim. Dirigiu-se à porta. Viu que não tinha como trancá-la. Ficou ainda mais nervoso. Temia que ela ou algum cliente desavisado pudesse abri-la a qualquer momento e flagrá-lo ali, nuzinho, com a mão boba.
Olhou para a TV, vendo aqueles homens mandando ver, despejando virilidade, e ele achando a brincadeira sem graça, querendo morrer, mas sem saber como dizer àquela mulher que daquela vez não deu... e, claro, que isso nunca havia acontecido antes.
Ela já batia à porta outra vez, quando ele desligou a TV, sentou, fechou os olhos e tentou concentrar-se devagarinho, pensar em algo bem sexy e estimulante. Foi quando se deu a tragédia. Numa armadilha do inconsciente, apenas uma imagem tomava conta de seus pensamentos: a maldita foto daquele cunhado em seu celular. Não adiantava, virava para um lado e para o outro, tentava pensar na mulher, na namorada da faculdade, na vizinha, mas aquela imagem, ao som do hino da “Estrela Solitária”, parecia pregada na sua testa.
Desesperado, após uma nova intervenção da atendente na porta, conseguiu num vaivém murcho coletar uma gota, uma única e risível gota! Ah, não, não precisava passar por isso. Ele não. Era tão homem quanto qualquer um ali. Daí, pegou o copinho, abriu a torneira da pia e misturou com o dedo. Respirou fundo e, como a melhor forma de defesa é o ataque, partiu para cima da atendente!
Deixando o seu copinho no balcão ao lado, praguejou contra aquela barulheira na recepção, aqueles filminhos chinfrins, da ausência de uma musiquinha para dar o clima, do excesso de luz e até das cores frias das paredes: “Não sei é co-como vocês a-ainda não fecharam!”
A atendente, com olhar a meio pau, fria como a tal parede, apenas perguntou: “E a sua amostra, afinal, onde está?”
Perturbado, Maurício virou-se, encontrando na mesa onde colocara sua amostra apenas um copinho de plástico com chá, enquanto, pela janela, outro paciente colocava os bofes pra fora.