“Não e Não! Nem viesse! Só se entregaria ali com a garantia de casar no
papel!”
Ela,
enconchada em uma cama de motel – visão digna de Boticelli –, cobria o pelo com
lençol branco e higienizado quando lançou no ar de espelhos o bombástico
decreto.
O namorado,
ainda que surpreso, não se abalou. Levantou-se rapidamente, descartou de um
cardápio de cabeceira uma folha de papel e lançou-a no carpete com a delicadeza
quase solene de um Romeu. Daí, extraiu a moça dos lençóis ainda frios para
juntos se postarem nus por sobre aquele mísero espaço A4 de vida e anunciou:
“Se é assim, pronto: agora estamos casados no papel!” Ela enlouqueceu. Ele
enlouqueceu com ela. E era tanta loucura que se podia prever dali uma demência
eterna, sem precedentes na desumana história da humanidade, desde que Adão
atentou contra a maçã da Eva.
Porém,
tempos depois, quem os visse, assim durante o dia, diria que eram de uma incompatibilidade
medonha: o leite e a manga, a chuva e a fogueira, a fome e a dor de barriga!
Não concordavam absolutamente em nada. O casal parecia compartilhar de um amor
quase danação, a devorar o ânimo um do outro numa gula feroz de quem ataca um
prato de brigadeiro.
Para piorar,
além da sociedade conjugal, determinaram a profissional, o que os mantinham 24
horas numa rinha penosa e inclemente.
Nas reuniões
de trabalho, poderiam estar diante de dezenas de pessoas, funcionários,
fornecedores, clientes e, no entanto, parecia que estavam sempre a sós, na
intimidade de seus bate-bocas. O volume da voz de um excedia à do outro com uma
segurança de um tenor. Não se viam em beijos, mas a troca de salivas era uma
constante.
Com os
filhos não era diferente. Discordavam de tudo quanto, perturbando-lhes o juízo
e as epífises. Na escola, eram vistos como sonolentos, apáticos, dispostos
apenas a não aprender nada que lhes fosse ensinado.
Os casais de
amigos, aos poucos, constrangidos com a companhia desvairada do casal, distanciaram-se.
De positivo mesmo, é que qualquer casal que conseguisse conviver ao seu lado,
mesmo os mais desapaixonados, logo se sentiam em lua de mel. Diante deles, até
a sangrenta Batalha de Stalingrado parecia brincadeira de carimba!
E nos
aniversários? Despertavam aos beijos de hálito adormecido, como em trégua, mas
logo um queria impor ao outro como se daria tal comemoração: “Aniversariante
não tem opinião!” Dali, a promoção, talvez, do mais humilhante dia de suas
vidas, o desdém a cada detalhe, além de o bolo sempre trazer o sabor preferido
do patrocinador da vez.
E por aqui
poderíamos encerrar esse enredo que justifica ser o matrimônio a maior causa do
divórcio, não fosse sabermos que, à noite, naquela casa, era enlouquecedora a
tentativa de dormir dos filhos, criados, visitas e até de vizinhos, mediante a
violência de balidos e súplicas, de pregões de feira a dança de tamancos, a
eclodir daquele aposento nupcial, a esgotar-se apenas no raiar da manhã, entre
heréticas faíscas que se espremiam entre as brechas das portas e janelas,
revelando o mais autêntico, escandaloso e nunca-acabável amor.
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