sábado, 18 de novembro de 2017

"Amores (se) Vãos!", de Raymundo Netto para O POVO


A primeira garota a me despertar o sentimento de esquecer de mim tinha nome de flor, entretanto, nada de peitos, nem bunda, as pernas eram finas e os cabelos escureciam o rosto alvo, decorado em sardas, de quase não ver os olhos acastanhados. Ora, ela contentava apenas 9 anos! Nem sei como se deu, nem como começou. Lembro apenas de seu sorriso e do inocente desinteresse pela minha figura esquálida, repleta de apelidos, protegida dos colegas moleques pela irmã mais velha.
No ano seguinte, mudando de escola, encantei-me por outra garota, mais madura, com 10 anos, que habituava cobrir as mechas negras em gorro de crochê azul. Eu, nos finais de semana, por não suportar-me em saudades, ia ao mercadinho em frente à sua casa, com a desculpa de comprar biscoitos, mastigados com a lentidão da espera de a qualquer momento vê-la — e apenas isso — passar por trás do muro baixo.
Com o fiar dos anos, a adolescência, percebi: passava à calçada uma, apaixonava-me. Cruzava por ali outra, também. E assim se movia a torcicolos o coração de menino para lá e para cá, enamorando-se intensamente, sempre de súbito, por estranhas das quais nunca foi merecedor sequer de descuidoso olhar.
Aos 13, num esboço de reflexão prematura, pensei: alguma coisa está errada! Desconfiei se não constatava ali a promessa de um tarado, um pervertido. Promessa essa, decerto, não cumprida ao longo de uma vida sempre muito solitária, ensimesmada e pensativa. Na época, ironicamente, o desejo de seguir a carreira sacerdotal, a Bernardo Guimarães — eu gênio e a cidade proibida, Margarida —, nada de envolvimentos que pudessem atrapalhar o destino já escolhido. Ainda assim, entre os intervalos dos serviços de igreja, passava horas infindas da mais pura adolescência ouvindo músicas melosas, gastando-me em sinceras e bizarras quadrinhas apaixonadas. Que sacrilégio, hoje sei, com tanto que já se disse em completude sobre o amor... Talvez, por isso, quando um candidato a poeta mostra-me seus versos, dá-me logo a vontade de dizer-lhe: “Desista enquanto há tempo! A boa poesia é sempre muito difícil. O descuido, assim como ao violino, é imperdoável”.
Não surpreende então que meu primeiro beijo tenha chegado em uma tarda noite aos 20 anos — por iniciativa de uma garota de ideias cacheadas e com nome de pintura —, e durado dois anos de um tempo que no próprio se encerrou, deixando-me largo ensinamento: a melhor coisa do fim de um primeiro amor é descobrir ser possível ter início um segundo, assim como também concluí-lo e partir para um terceiro ou a um quarto. Tudo é questão de decisão. Para os mais românticos, os quase religiosos, isso é demasiadamente herético, cabendo um protesto megatômico de eu não saber de fato o que é amar ou ser amado. Sim, considero a possibilidade de me caber tal maldição do egoísmo, do desamor profundo e da esterilidade de um coração ateu, embora compreenda que grande fosse esse amor não caberia nele a vaidade ou afetação. Sabe-se lá se “l'amour n'est pas pour moi”, como apontava-me uma amiga aos gritos de uma canção. É-se possível o maior amor do mundo ser aquele do momento, sem tempo de mágoa, remorso ou ressentimento, apenas brilho no peito livre de um tudo, mesmo de não caber na memória o rosto da amada, posto que chama viniciana, a levar, como sonho, por poucas horas, um dia ou dois, ou tão contrário a si mesmo, como amor camoniano, por uma vida inteira.
Para mim, o amor anda de mãos dadas e é no beijo perfeito que devora o seu espírito. Agora, sentado à janela a emoldurar um imenso céu estrelado que não existe em minha vida, trago na pele o que vem de Drummond, o mesmo que me matou em desastre: “Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor à procura medrosa, paciente, de mais e mais amor. Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa, amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.”


segunda-feira, 13 de novembro de 2017

"Abra as Páginas e Voe...: I Feira do Livro em Sobral" - Relato


Estive em Sobral, a convite da equipe organizadora da sua 1ª Feira do Livro: Mendes Jr (contista, autor de O Engraxate e Outros Suicidas), Margarida Melo e Yves Gurgel.
A primeira reunião com a Margarida e o Yves, momento em que os conheci, deu-se na casa de Socorro Acioli, também convidada da Feira, assim como também o seria a Ana Miranda, entre outros, mais tarde.
A ação, a primeira do gênero e que tomou 3 dias do Centro de Convenções, para minha surpresa, surgiu a partir da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Econômico, e não da Cultura, ou mesmo da Educação, como usualmente se espera quando se trata de administração pública, embora essas secretarias tenham sido mencionadas e assinassem como parceiras.
A Feira teve início no dia 7 de novembro e trouxe, como “isca”, uma atração midiática, o quadrinista e empresário Maurício de Sousa, cujas revistas servem, serviram e servirão durante muito tempo como porta de entrada para muitos candidatos a leitores não apenas brasileiros (até há pouco, a Turma da Mônica Jovem era a revista em quadrinhos mais vendida na China).
A programação contou com lançamentos, bate-papos, contação de histórias, oficinas, saraus, mesas-redondas, apresentações musicais, mesas de RPG, estandes de vendas de livros e de exposição, que inclusive acolheram o Grupo Literário Pescaria, que tem à frente o poeta, ator e produtor cultural Mailson Furtado, a Associação Cearense de Escritores, contando com a participação de Silas Falcão, Nice Arruda, Lucirene Façanha, Cícero Almeida e outros, como o poeta Lucarocas, o cantador Geraldo Amâncio, o aboiador Chico Neto etc. A Câmara Cearense do Livro (de editoras associadas), a Editora Imeph, as Edições UVA, assim como a Livraria Pensar (me parece ser a única livraria da cidade) e a Wizard (realizou oficina gratuita de línguas estrangeiras) também tinham seus estandes ativos durante os 3 dias.
Indispensável a presença da equipe da Biblioteca Municipal Lustosa da Costa, parceira valorosa de qualquer ação que se refira a livros e à leitura na região. A amiga Aninha Linhares, como sempre, estava entusiasmada com as atividades.
Lá, além de passear pelos estandes e conversar com mais folga com amigos – o que me faz uma falta danada (conheci pessoalmente o poeta Inocêncio Melo e, apresentada pela Marília Lovatel, a professora Kátia Cavalcante)– assisti aos gostosos bate-papos com a Socorro Acioli e Ana Miranda, esta mediada por Mendes Jr (contagiantemente emocionado e apaixonado pelo trabalho desenvolvido), e aos lançamentos de livros de Renato Pessoa (O Homem do Último Dia do Mundo), Célia de Oliveira (Recôndito das Pérolas), Marília Lovatel (Sob o Sol de Sobral), além do enésimo lançamento da coletânea Para Belchior com Amor, organizada por Ricardo Kelmer, que contou com a presença do poeta e contista Joan Edesson e o prof. Vicente Jr.
O audiovisual teve espaço com programação específica, coordenada pela Ryo Produções, que apresentou, entre os convidados, o quadrinista Zé Wellington e a sua oficina de Storytelling. Lá, também apresentado o documentário “A História das HQs no Ceará”, da Fundação Demócrito Rocha. Assim, também nos era possível ver a miniexposição “Afetografia: escrevendo Sobral com luz”.
Cabe-nos mencionar as iniciativas de campanha de esquecimento de livros pelos espaços públicos da cidade e as atividades preparatórias à ação, como oficinas, debates, contação de histórias etc., que aconteceram em espaço reservado no North Shopping Sobral. Uma espécie de “Feira fora da Feira”, em analogia à proposta da “Bienal fora da Bienal”, que acontece em algumas edições em Fortaleza. Aliás, seria muito interessante que essas ações perdurassem, como intervenções em shoppings, praças, escolas e faculdades, independentemente de se ter a promoção de uma ação “macro”.
Entre as minhas lembranças da Feira, participei de um despretensioso e largo bate-papo itinerante Fortaleza-Sobral/Sobral-Fortaleza com a escritora Ana Miranda, cujo única plateia era Pedro Linhares, motorista-leitor, a quem não poderia deixar de ofertar um livro. Assim, como o fiz com a historiadora Vânia e a professora Cássia Sá, jovens leitoras que tive o prazer de conhecer em Sobral.
Espero realmente que cada vez mais os municípios do país, cada um deles, criem seu momento de difusão do livro, enquanto instrumento de desenvolvimento pelo gosto pela leitura, por crer na sua prática como elemento indispensável para a transformação social.
A Feira, a primeira edição, como todo empreendimento, mesmo os já estabelecidos em nosso calendário cultural, carece de atenções e ajustes, de estruturação e planejamento contínuos de estratégias eficientes, além do envolvimento de agentes das cadeias criativas, produtivas do livro e mediadores de leitura, coisa que a própria evolução e essa cultura exigem (quem é realmente do meio sabe o quanto iniciativas como essas têm de ser valorizadas e apoiadas). Nada que envolva o universo cultural sobrevive sem diálogo e sem engajamento desses agentes, pois somos, ao final, um só corpo, mesmo quando alguns optem em tornar-se sequestro, sonharem-se vaga-lumes, ou finjam que não é com eles, quase em autofagia, atrasando o florescente futuro leitor e humano que todos esperamos e ansiamos em nosso país.


sábado, 4 de novembro de 2017

Shpping Benfica 18 anos: Atrevido Benfica, de João Soares Neto


Lutei com as forças que me faltavam do meio ao final da década de 1990. Tudo estava complicado para mim. No particular e no geral. O projeto e a execução do Shopping Benfica não contaram com apoio de ninguém. Só me diziam: aqui não dará certo. Parecia um mantra. Lembrei-me de uma frase do escritor Zuenir Ventura: “inveja não é querer que o outro tenha.” Eu era o outro. Foram anos.
Um dia, cheio de problemas, resolvi marcar a data: 30 de outubro de 1999. Aniversário de d. Margarida, minha mãe. Deu certo. Assim aconteceu. Com foto e nome de todos os que trabalharam para que o Shopping Benfica saísse do papel. Do servente ao engenheiro. Havia um buraco no meio do caminho. O do Metrofor, à nossa frente.
Família, colaboradores, amigos, autoridades e o reitor Martins Filho, refundador do bairro do Benfica, depois esvaziado com a criação dos campi do Pici e do Porangabussu, estavam lá. 
O sol era forte. Ao redor, necas de edifícios. Tudo bem, seria assim mesmo, ao som da Camerata da Universidade Federal do Ceará. Os tapumes das vazias lojas não tinham disfarces, mas dezenas de pinturas grandes de artistas locais, em concurso que marcava a criação da Galeria BenficArte. Ganhadores (Emília Porto e Audifax Rios) com passagens para os Estados Unidos e Europa. Prometido e cumprido.
Manhã seguinte, véspera do Dia de Todos os Santos, bateu a realidade. Convocamos associações e órgãos de classe, e nada. Cada um na sua. Foi aí que o meu espírito de trabalho, da cultura, da irreverência, das artes e, sobretudo, o da responsabilidade social, se juntaram e deram-me força. Desculpem a primeira pessoa, mas não tinha uma segunda.
O Metrofor, de esperança, transformou-se em transtorno. Tive que dar parte do nosso terreno para a abertura da Estação Benfica, só inaugurada nesta segunda década do século 21.
Chega de choro. No dia 30 de outubro de 2017, o Shopping Benfica completou 18 anos. Fosse uma pessoa, teria passado, com folga no Enem, mas escolheria um curso deste Benfica, raiz e fundamento de várias universidades, como a Federal do Ceará, a Uece, a IFCE e de cursos superiores, de vários matizes, particulares.
Os nossos vizinhos tornaram-se amigos, desde a construção. Batiam papo, coçavam a cabeça, perguntavam o meu nome, como seria a obra e a conversa corria solta. Hoje, são clientes, porque já eram amigos. São tratadas como pessoas solidárias que nos deram o azimute para  os nossos sonhos não virassem pesadelo.
Estamos agora a arrumar este jovem Shopping Benfica. Novas roupas, novas luzes, cara limpa, espelho d’água, jardins frondosos dão a animação indispensável ao ethos que o distingue dos demais. 
O Benfica foi o primeiro shopping do Brasil a obter a certificação ISO-2001, de acreditação da Grã-Bretanha. Por diversas vezes fomos homenageados no Fórum de Líderes, em São Paulo. A pergunta que nos vinha à mente, ao subir ao palco: o que faço no meio desses “Tycoons”. Uns, quebraram. Outros…
Na área da cultura ganhamos, anos seguidos, todas as premiações do “Selo Cultural”, em administrações diferentes da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult). Ao final, fomos aquinhoados com o selo “Diamante”, o único concedido, entre empresas públicas e privadas. Depois, o selo foi extinto.
Não estamos bazofiando. Externamos apenas para que a história o registre. No Ceará, tem disso. Os bem-vindos e  os aquinhoados são os abençoados pelo BNDES, isenções, refis, incentivos fiscais, renúncias fiscais, fundos de pensões, entre outros. Nós, nunca tivemos nada disso. Pagamos e temos certidões fiscais do Município, do Estado e da União.
Depois de tantos percalços vencidos, estamos aqui ao lado de milhares de clientes, lojistas locais e, imaginem, até multinacionais, já se instalaram no Benfica. Quem diria! Deus sabe como foi duro, mas tudo defendido pela nossa equipe cabeça-chata, pelos lojistas e por nossa clientela, gente de bem, que conversa conosco, do mesmo jeito que o fazia durante a construção.
Vida que segue. Deus nos abençoe. Obrigado a todos.