Há 60 anos, em 4 de outubro, na onda de Guerra Fria, o
satélite soviético Sputnik I marcaria o início da corrida espacial, deixando a
potência estadunidense impotente diante da incalculada e atroz humilhação. Não
bastasse, um mês depois, novamente a U.R.S.S. promoveria o cazaque lançamento
ao espaço de um novo satélite, o Sputnik II. A novidade maior seria que a bordo
deste estaria acomodado o primeiro ser vivo a orbitar a Terra. Para o orgulho
feminino, e por um restritivo detalhe anatômico, o ser não seria “ele”, mas
“ela”, a cadela Laika, de apenas 3 anos. Ou seja, ela não falava, porém, já
latia.
Na época, dada como morta em circunstâncias que iriam além
das divisas atmosféricas e, portanto, da jurisprudência mundial, o destino da heroína
e mártir socialista se tornou motivo de diversas conjecturas e teorias. Eu, no
entanto, não acredito em nenhuma delas e explico por que.
Há alguns anos, fotografando as ruínas ferruginosas do mercado
da carne da Aerolândia – hoje completamente restaurado –, assisti a uma cena
insólita: parecia um cão descendo de paraquedas. Seria possível? Seguindo meu
instinto de jornalista diplomado em Ministério, corri até a base aérea para
saber o que era aquilo.
No descampado, o vi sobre as patas, mangas arregaçadas, a
recolher as longas linhas de náilon e o velame. Apresentou-se: era ela mesma, a
Laika, em pessoa... ou melhor, em cachorro. Incrível. E todos pensando que ela,
há tempos, teria virado “hot dog”!
Latindo fluentemente em português, não demorou a demonstrar
a garganta seca e a perguntar, numa sinceridade quase gentílica, “onde poderia encontrar
wodka”. Ofereci-me a levá-la ao Benfica. Não bebo. Então, quando me pedem por
álcool, ou levo para a farmácia ou ao Benfica.
No caminho, por meio de fórmulas complicadas, que fingi
entender para não parecer mais burro, a pequena vira-lata – insistia na tese de
que pertencia a uma linhagem pouco convencional de husky siberiano, mas... – me
explicava: devido ao tempo relativo, ela, que, teoricamente, deveria ter mais
de 60 anos, gozava de uma jovialidade impressionante. Falou também existir uma
Sociedade Sideral Protetora de Animais e que foram alguns de seus integrantes
que a mantiveram viva quando a equipe russa a largou de mão... Ouvindo tudo
aquilo, eu que desconfiava, agora tinha a absoluta certeza: “as vodcas do
Benfica não prestam!”
Contou-me mais. Com tempo de sobra, além de encher o bucho com
gelatina russa, leu de trás para frente obras de Фёдор Миха́йлович Достое́вский e de Анто́н
Па́влович Че́хов, “gênios”, sendo agora também uma contista: “Aliás, a nossa
literatura é a melhor do mundo”. Pior é que é: Gogol, Tólstoi, Pushkin,
Maiakoviski...
Assim, escreveu também
diversos livros. Algumas teriam feito bruto sucesso em Fobos, uma das luas de
Marte, que, historicamente, vivia em conflito com o planeta vermelho.
Nostálgica, a
cãosmonauta falava de seu exílio, da saudade das noites de lua em Moscou, da
boêmia em São Petersburgo, até chegar às alucinações da experiência da
proximidade com a morte e do seu encontro com Deus, num arrependimento legítimo
de um Raskólnikov: “Estive,
praticamente, nos braços Dele, mais do que qualquer outro ser... mais até do
que o Papa!”
Diante de outras divagações e da tediosa mansidão canina,
que percebia ir mais longe do que se foi, arrisquei a obviedade: “Desculpe-me,
Kaka, mas a pergunta é inevitável: a Terra é mesmo azul?”
Sorrindo com graça e humildade, lambeu o dorso de minha mão
e perguntou: “Ora, Raymundo, você esquece que os cães enxergam em preto e
branco?”
Gostei da perspicácia da doce Laika! Gosto de textos assim, despretenciosos, que façam dar um sorrisinho no canto da boca. Parabéns, Raymundo Netto. :)
ResponderExcluirPois esse sorrisinho assim mesmo que é o melhor, Rom. Obrigado pela leitura.
ExcluirDá um cordel: O inusitado encontro de Raymundo netto com Laika, a cadela espacial. Muito bom mesmo.
ResponderExcluirHahahaha Ah, se eu soubesse fazer cordel, Léo...
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