Publicado originalmente em Para Belchior com Amor, organizado por Ricardo Kelmer.
Quanto amei ou deixei de amar,
é a mesma saudade em mim.
Fernando
Pessoa
“Sobral?”, riu-se. “E existe isso?”
“Existe, seu guarda. E não é só no Norte,
não, viu? Na Europa também. O senhor já deve ter estado por lá, claro.”
O policial que, tirando a farda e a
arrogância, não era muito diferente daquele moço encantado, de cabelos
ventaneados, basto bigode e surrado pela cidade grande, percebeu a mangação, lhe
devolveu o documento e advertiu:
“Tome juízo, rapaz. Assim como você, tem
muitos aqui no xilindró.”
Não era mentira. Sozinho, tarde da noite,
numa esquina deserta da Lapa, sem dinheiro no bolso e com perversa juventude
sobrando no peito, caminhava no descompromisso do tempo para a praça Mauá, ou
na direção de onde nasce o Sol, esperando a noite passar – aprendera com a
noite fria a amar mais o seu dia, assim como pela dor o poder da alegria – ao
encontro de um camarada, como ele, a morar na filosofia (leia-se “na rua”), sustentando-se
da venda de cachorros-quentes e refrigerantes na av. Atlântica.
Levando o violão debaixo do braço, arranhando
um acorde aqui e acolá, arrastava-se aquele moço de tantas tristezas pelo
abismo e pelas vertigens de sombras do abandono de sobrados inda em sacadas de
ferro, cruzando com taxistas nas calçadas a discutir o futebol, com amantes em
bancos apertados e abraços espaçosos, com damas noturnas de mãos nos quartos,
ilustradas apenas por tímidos lampiões em seu tempo negro: “É, sir Newton já sabia: o que pesa no
Norte, pela lei da gravidade, desce para o Sul grande cidade...”
Sentou-se num degrau de escadaria e retirou a
cansada alpercata, comprimindo calos de léguas tiranas, enquanto observava à
frente o burburinho nos bares e inferninhos, revelando a cinzenta alegria da
solidão carioca.
Ali, desapontado e desnorteado (sem o Norte),
saudoso de casa, de afetos, dos quintais, da rede branca, da mulher que amou e
que não pôde, ainda bem, lhe seguir, cantarolava num dedilhado baixinho:
“Nam... na, na, na, na, na, na, nam... nam, nam...”
Enfadado e ferido às costas pelo peso das
escolhas, tirou do bolso um livrinho, quase sua oração, onde se lia: “A
liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só,
nasceste escravo.” Enchia os olhos de lágrimas, fortes como um segredo e verdes
como o doce da cana, e, num poço qualquer de seu coração selvagem e repleto de
dias de ironias, lhe saltava a certeza de que, como “a eterna novidade do
mundo”, tinha coisas novas, coisas novas para dizer.
Levantou-se e meteu o pé na estrada de não
poder parar mais – na cabeça canções de rádio e de discos –, a curtir o teimoso
violão, aceso pelo cigarro, livre pelas palavras, sonhos e sons, sem regras nem
reverências, lembrando-se de um tempo de cantoria em feira e o desejo de
esquecer o que lhe era antigo, deixadas as suas mágoas todas naquelas águas
fundas e distantes dos verdes-marinhos mucuripes: “Mesmo vivendo assim, não me
esqueci de amar/ Que o homem é pra mulher e o coração pra gente dar”.
A madrugadinha já despertava os primeiros
cantares de galos de sua memória sertaneja. Veio-lhe com ela um trecho de carta
a um colega – “Veloso, o Sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai viver
na rua” –, quando deparou-se com o olhar desconfiado de outro policial na curva
do caminho, cumprindo o seu duro dever: “Por gentileza, seus documentos.”
O poeta repetiu o mesmo gesto de todas as
vezes e de todas as noites, retirando o registro do bolso traseiro de seu blue jeans e lhe entregando, enquanto
trastejava um dedo de violão: “Eu sou como você, eu sou como você, eu sou como
você...”
“Sobral?”, estranhou.
“Sim, senhor. Mas Sobral do Ceará. Soy latino-americano.”
“Carlos Gomes? O músico famoso, é?”,
gargalhou, estalando o indicador na fotografia mal impressa.
“Sim, Carlos Gomes Belchior. Mas pode me
chamar de Belchior, também músico,
ainda não famoso. Mas vamos logo, seu guarda, que o Sol está nascendo e eu não
tenho nada, nadinha, a não ser uma puta pressa de viver!”
“Amar e
mudar as coisas”
Belchior
finalmente voltou (1946-2017)
Que bonito! E viva Belchior! ��
ResponderExcluirQue viva, Juliane, e por muitos anos, mesmo apesar de.
ResponderExcluirBelíssima e merecida homenagem.
ResponderExcluirViva Belchior! Vida longa em nossos corações!
ResponderExcluirBelchior, um grande letrista, um grande compositor brasileiro,
ResponderExcluirQuando lembro Belchior sinto um enorme espaço que procuro entrar, mas não consigo largar os apoios.
ResponderExcluirBela homenagem. Creio que: Os espaços vagos que ainda poderia ser preenchidos pelo cantor Belchior, caso estivesse vivo, agora pode ser preenchido por seus fãs, seguidores e familiares, talvez. Um texto belíssimo, como também em todo Brasil muita gente estão com boas crônicas a relevante morte do nosso poeta e cantor Belchior.
ResponderExcluirSem palavras 😢😢😢😢
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