– UAHHHH! Hora de acordar...não sou esse tal
coelho maluco, mas vivo me atrasando – Falou lançando mão de seu relógio de
algibeira o famoso Pilombeta, um sujeito que por si só já levava qualquer um às
gargalhadas. Magricela, braços longos, uns dois metros de altura, óculos na
ponta do nariz e sempre vestido com o mesmo paletó velho e escuro, o que o
transformava em uma figura esquálida e desengonçada levando ao riso solto o
mais sério dos senhores daquela Fortaleza de 1920.
Pilombeta havia
acabado de acordar de mais uma noite de carraspana regada a cumbe, um tipo de
aguardente de má procedência muito popular em tempos de escassez de cana-de-açúcar,
uma vez que a seca do último 1915, praticamente devastara com o já árido Ceará
daqueles tempos. Como não tinha casa, dormia onde fosse possível e naquela
noite não deu outra. Estava a passar perto da Coluna da Hora da Praça do
Ferreira, onde ficava a cacimba que abastecia boa parte dos estabelecimentos
comerciais e moradias do centro daquela Fortaleza ainda tão descalça de
paralelepípedos e asfalto, quando por lá pousou para um cochilo que levou
horas. Era madrugada alta.
Ao amanhecer e sem
acreditar que já badalariam oito horas da manhã, Pilombeta arrumou-se em seu
único e surrado paletó, lavou os olhos e naquela que todos chamavam de fonte
dos desejos da cidade e saiu desabalado rumo ao café do Pedro Eugênio. O café
situava-se na segunda seção de bondes do Benfica, no lado par do bulevar,
cercado por frondosas mangueiras sob as quais mesas de mármore com cadeiras de
ferro fundido, acentos e encostos confeccionados em madeira envernizada, todas
desarmáveis, embelezavam o lugar. Completavam o gracejo do lugar as paredes de
madeira pintada de verde com recortes de madeira pendentes, delicadamente
pintados de branco.
Naquele aprazível
retiro intelectual, verdadeira junção de poetas e artistas de todas as classes
sociais, reuniam-se para prosas e sarais ao ar livre. Aos sábados e domingos,
centenas de pessoas se acotovelavam em busca de uma mesa que fosse para
degustar os famosos pratos do lugar. Era o velho mugunzá, tapiocas, pães de
milho, arroz doce e, claro, o prato-chefe da casa: a mais famosa panelada com
unha de boi daquelas paragens. Tanto é que por lá caminharam juntos a falar de
poesias e política gente do porte de Quintino Cunha, Fernando Weyne, Raimundo
Ramos Cotoco, Moacir Caminha, Moésia Rolim, Ulisses Bezerra, Tomé Mota e tantos
outros.
Como era sábado,
Pilombeta, que ganhava a vida tocando piano nas seções de cinema mudo exibidas
nos cinematógrafos do centro de Fortaleza foi se achegando e logo perguntou a
Pedro Eugênio se havia por ali um pouco do que ele chamava de levanta-defunto
para sua prova matinal. Rindo-se, o dono do local puxou-lhe uma cadeira e
afirmou que estava a lhe buscar um pouco de panelada para curar-lhe a
carraspana. Sabia que não seria pago por aquilo, mas compreendia que há
fregueses que valem a pena se ter por perto na hora de um recital.
Pilombeta
apressou-se à refeição, agradeceu dizendo a Pedro Eugênio que estava atrasado.
E logo no dia mais importante de abril, nacionalmente conhecido como o da
mentira que, em Fortaleza, por conta do espírito zombeteiro do cearense tem nele
24 horas inteiras para se contar toda a sorte de mentiras que se pode imaginar.
Chegou à avenida
7 de setembro, na Praça do Ferreira, ao meio-dia em ponto, esfregando as mãos e
afirmando que naquele ano ele seria o vencedor do concurso de maior mentiroso
da cidade, posto que era disputado quase a tapas com bombas, foguetes e a banda
da Polícia Militar a tocar sambas, maxixes e polcas; torcidas organizadas e
tudo o mais. Esse evento anual acontecia à sombra do famoso Cajueiro Botador[1],
carinhosamente assim chamado pelo fato de janeiro a dezembro dar frutos
vermelhinhos e muito doces.
E lá se foi
Pilombeta sendo chamado para contar a sua presepada anual. Sem se fazer de
rogado, mandou ver no verbo e na impostação da voz:
– Meu povo, essa
história é a mais pura verdade, eu juro! – disse piscando o olho.
– Eu sonhei, em
noite de muita chuva, com o futuro da nossa cidade. Vi coisas horripilantes que
até Deus duvida. Para começar passou por cima da praça um avião imenso, não
como aqueles da tal Primeira Guerra Mundial, mas, sim, um que cuspia fogo pelas
asas e passou tão baixo que quase arranca os telhados das casas e dos cafés. O
do Mané Coco. Hum! Desabou na hora, ficando por lá somente o gradil de outrora.
Os carros nem pareciam essas fubicas que estamos acostumados a ver se
arrastando entre os bondes que circulam devagar. Serão máquinas possantes de
todas as cores, tamanhos e praticamente despedaçam o chão que na época vai ser
coberto com um tal de asfalto.
Percebendo que o
povo já ia se juntando para ouvi-lo, Pilombeta caprichou ainda mais na fala.
Vendo que o seu sonho talvez lhe valesse uma boa premiação e a atenção de
todos.
– E os doidos? Você que estão acostumados apenas
com o Casaca de Urubu, seu fraque bolorento e gestos absurdos dizendo que lutou
na Guerra de Canudos e atirando pedras em todo mundo, ou ao engraçado Chagas
dos Carneiros com sua idolatria pela volta do regime monárquico, arrastando
pelos cabrestos seus três carneirinhos pintados de anilina: um azul-claro, um
verde-claro e o outro cor-de-rosa. Berrando sandices de que rei bom era dom
Pedro II, não se assustem com os doidos do futuro. E não são poucos, não.
– Andam com
roupas estranhas sem paletós e alguns com calças curtas parecendo as das
crianças a qual chamam de bermudas. Nos pés, nada dos calçados furados que o sapateiro
mestre Arcanjo vive de vender aos quatro ventos. Não, a maioria usa uns troços
alcunhados como tênis feitos de borracha. Uma Pandora.
– Ah! E podem esquecer os cinematógrafos e
os gramofones. A moda daqui há uns cem anos vai ser uma tal de televisão de
alta-definição. Que nada mais são que telas menores de cinema a transmitir
imagens que mudam o tempo todo, mais parecendo um daqueles palimpsestos do
antigo Egito. Incrível mesmo é que essas geringonças são vendidas em lojas aqui
no Centro mesmo e aos montes. Dizem até que cada casa possui várias ao mesmo
tempo. Vejam se tem cabimento uma coisa dessas?!
– Agora, de
lascar mesmo são os loucos varridos que andam com umas caixinhas parecidas com
as carteiras de cigarros que compramos por aqui hoje. Andam com eles nas mãos
berrando e gesticulando sozinhos, uns passando pelos outros discutindo sabe-se
lá com quem. “Alô! Sou eu do meu celular. Onde você está? Vamos marcar nosso
encontro para as 22 horas! Isso mesmo na Aldeota está bom...”. Dá para
acreditar que em 2017 a Aldeota vai ter prédios maiores que a Coluna da Hora,
que a Praça do Ferreira vai ser toda demolida, a cacimba aterrada e um tal de
Cinema São Luiz vai ser erguido em 1958 para virar cineteatro em 2010?
A essa hora um
mundaréu de gente já se apertava para ouvir os causos de Pilombeta. Estavam estupefados.
Ninguém conseguia imaginar de como aquele louco falando de loucos conseguira
retirar tantas potocas e baboseiras de sua cachola. E o pior é que o maluco
ainda falou de mais um monte de coisas inimagináveis como Internet, relógios
digitais, Fortaleza com dois milhões e meio de habitantes, que Rodolfo Teófilo
e Quintino Cunha iriam virar nome de bairros. Por fim, foi tanta loucura
aparente que não deu outra: o povo caiu em desabalada salva de palmas,
gargalhadas e fogos de artifício.
Pronto! Aquilo
foi o bastante para que Pilombeta saísse nos braços do povo. Nem bem passava de
uma hora da tarde e parecia que o campeão já estava eleito. Dito e feito. À
noite, depois da contagem dos votos não deu outra: Pilombeta, o potoqueiro do
ano de 1920.
Coincidentemente,
e por força do progresso, o Cajueiro Botador foi mandado ser derrubado pelo
prefeito Godofredo Maciel naquele mesmo ano. Muitos foram os protestos, mas não
houve jeito e lá se foi embora uma tradição cearense, causada pela
insensibilidade política de nossos governantes. Em 1991, quando a Praça do
Ferreira foi reurbanizada, o então prefeito da capital, Juraci Vieira de
Magalhães, plantou no mesmo lugar um novo cajueiro em gesto simbólico. Hoje, o
novo cajueiro é patrimônio tombado em cuja sua sombra descansa uma placa de
bronze com os seguintes dizeres: “ Neste local existiu um frondoso cajueiro
que, por frutificar o ano todo, era apelidado de Cajueiro Botador ou, por se realizarem, sob sua copa, cada 1º de
abril, as eleições para maior potoqueiro
do Ceará, era também chamado de Cajueiro
da Mentira”.
[1]
Diz Raimundo Girão em seu Geografia
Estética de Fortaleza: “Era o cajueiro da mentira. Melhor, o suporte da
urna em que se elegiam os mitômanos graduados todos os anos a primeiro de
abril, considerado o dia nacional da potoca. À sua sombra, como um pálio,
resguardava a mesa eleitoral que recebia os votos populares no mais animado e
vero dos pleitos, tudo ornamentado de bandeirinhas de papel e agitado de
foguetes de estouro”. Fonte: Otacílio de Azevedo in: Fortaleza Descalça, edições UFC, 1992.
Obrigado, Netto, por mais uma vez me abrir espaço no teu blog. É sempre bom amanhecer e ver um texto nosso sendo explicitado por mãos tão hábeis como as suas. Vou cuidar agora em compartilhar com minha rede de amigos para que possam ler sobre u fato tão histórico do nosso Ceará moleque. Túlio Monteiro.
ResponderExcluirO prazer é todo meu, Túlio. Parabéns pelo ótimo texto. Abração.
ExcluirA CADA DIA SE SUPERANDO ESSE TÚLIO MONTEIRO, EM PROSAS E INVENTICES DE NOSSA COTIDIANA FORTALEZA!!! FÃ DEMAIS!!!
ResponderExcluirE VC SEMPRE MUITO GENTIL...OBRIGADO, GRANDE BAILARINA. TÚLIO.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExcelente texto. Falta-me cacife pra tecer comentários específicos.
ResponderExcluirCada vez me surpreendendo com o meu amigo Túlio Monteiro. Dessa vez não poupou talento nas descrições vivas. Parabéns, poeta.
ResponderExcluir"Que mentira! Que lorota boa!" É isso aí, meu irmão... Gostei da artimanha em atravessar o tempo d nossos históricos perfis urbanos quebrando a ampulheta d tempo, c forma e vida bem mais crível, por esta interessante narrativa em q vc -lucidamente - expõe o rei sem roupa de nossa "evolução"...Raimundo Neto sabe tudo!Grata aos dois por esta
ResponderExcluirreleitura memorial. Márcia Matos