Publicado originalmente em O POVO, em 27 de outubro de 2008
Nos
dias atuais, concordemos, é muito fácil se publicar um livro; não publicá-lo,
porém, diante do apelo irresistível da vaidade, é que é difícil. Eu mesmo estava
tentado a não publicar essa crônica... mas fracassei!
Quando o indivíduo, certo de “querer ser”
escritor — aliás, escritor já é “ex” até pelo próprio nome —, decide mostrar
sua obra a um editor, descobre que no Ceará não se tem disso não. Dá até para
se concluir: editora não é bom negócio, caso contrário, os americanos já
estariam por cá.
No entanto, quando o escritor consegue juntar
uma mixariazinha, ou a pede emprestada ao emergente cunhado, a fundo perdido, é
claro, acaba se entregando nas mãos de donos de gráficas (com soberbas de
editora) que batem-lhe às costas e cobram-no o serviço em troca de um
“iessebeênizinho” de nada, o que para ele, o sujeito mais solitário e
incompreendido do mundo, é motivo de lavar-se em lágrimas. O pior: mal o livro
entra no prelo, o desgraçado passa a sonhar com a cerimônia de outorga do
famoso e bronzeado quelônio, tão feinho, coitado, que não seria de todo ruim se
o deixassem a segurar portas, ao invés das frágeis tartaruguinhas (suas primas)
de areia.
Eu mesmo, antes de publicar meu primeiro livro,
passei por vários editores, só recebendo, de certo, unânimes parabéns,
parabéns, parabéns... Aliás, eles são mestres na técnica de desaparecer após
tais parabéns. Conselho: quando for a sua vez, agarre bem a mão de seu editor,
senão ele some!
É, vida de escritor não é fácil, mas é criativa.
Conheci um que, como muitos, enviava o produto de sua lavra para escritores
renomados, aguardando ansioso seus pareceres. Estes, respondiam — pressupomos
que deviam ler, mesmo fosse como Jorge Amado (não li, mas já gostei) — por
e-mails ou em breves cartas que o autor fotocopiava e distribuía orgulhoso
entre amigos e desconhecidos em mesas de bar. Numa dessas, conferi a assinatura
de um: “Dr. Scliar”. Ah, e por falar em fotocopiar, outro dia um escritor
veterano afirmou que ninguém sabia, mas ele seria o autor cearense mais lido em
Pindamonhangaba via “xeróx”!
Acontece de tudo um pouco por aqui. Outro autor,
por exemplo, revoltou-se com o livro “de papel”, fez uma fogueira no fundo do
quintal e decidiu publicar somente em blogues e sites nacionais. Depois disso,
orgulha-se, embora agora tenha mais de 200.000 não-leitores habituais. Tem
aquele outro que, após sucessivos insucessos (que construção engraçada!),
converteu-se em Jesus e chegou à conclusão de que a literatura é coisa do cão,
ou mesmo o caso do rapazinho de boca suja que se diz poeta autodidata
pós-modernista, pioneiro no Ceará da reforma ortográfica, trocando “j” por “g”,
“s” por “z”, entre outros involuntários barbarismos que ele denomina
“transgressões”.
A mais trágica história de autor e editora,
entretanto, aconteceu ano passado:
Um poeta, por gênero desassistido, angustiado
por não exercer sua arte como ofício, abandonou o chapéu panamá, deixou de
vender livros artesanais para turistas do Dragão do Mar e decidiu procurar um
editor que publicasse o seu livro (sobejamente recheado de rimas melosas: lua
com tua, coração com paixão e solidão, amar com cantar e tererê e tarará).
Estava irredutível, disposto inclusive a
lançá-lo em local privilegiado cujo apresentador sorridente, apesar de ler
muito pouco, não poupa o público de suas súbitas intervenções, antecedendo-as
sempre com “eu não sou crítico literário, mas...” e lascando a rouquenta
bobagem da noite.
Enfim, voltando ao assunto, certo dia, nosso
autor marcou hora e reuniu-se com um editor que, mesmo diante de apaixonadas
proposições estéticas, rompeu o silêncio e disse-lhe na lata: “Lamento, não
publicamos autores vivos!”
Machucado brutalmente, o poetinha arrastou o
caminho de casa. Lá chegando, no centro do quarto vazio e sujo, espertou: “A poesia
é minha vida!” Assim, retornou mais que ligeiro à editora, numa inquietação dos
diabos, invadindo o gabinete e, diante do assombrado editor, arrematou, do cós da
calça, a lâmina brilhante, anunciando num brado de causar inveja a Hamlet:
— Antes a vida pela poesia do que a morte pelo
silêncio em agonia!
Dito isso, rasgou, em meio ao pranto soluçante,
o pulso magro de escrevente. Encharcado em sangue e lágrimas, antevendo os
prováveis estertores finais, lançou-se ainda sobre a mesa editorial, espalhando
pelos cantos as canetas e chaveirinhos:
— E agora, senhor editor, morto estando eu, que
motivo haveria para não me publicar?
O editor repôs na calça a fralda da camisa e arqueou
as sobrancelhas:
— De fato, você cumpriu o primeiro requisito.
Agora, pegue os formulários com a secretária, traga os originais encadernados
em seis vias com firma reconhecida em cartório, pague uma taxa simbólica e
aguarde o telefonema... Ah, e parabéns.
Raymundo Netto, apesar de já nos havermos cruzado por algum dos corredores onde queimam as fogueiras da vaidade, nunca paramos para conversar.Chegamos no máximo a um cumprimento.Já publiquei alguns livros para adultos e para crianças, mas não me considero uma escritora. Já disse aos meus amigos que quero ser lembrada como professora, o que sou na realidade. Aliás, não gosto de ser tratada como escritora. Envergonho-me, inclusive. Ser escritor é ser mais do que aquilo que eu posso ser. Clarice Lispector (longe de mim querer comparar-me a Clarice), certa vez, em uma entrevista, respondeu a uma pergunta do entrevistador sobre o momento em que ela havia assumido a posição de escritor. A grande contista (para mim, ela é mais contista do que romancista) disse que jamais assumiria essa posição. O profissional é aquele que escreve por compromisso consigo mesmo ou com um outro; ela, não. Era somente uma amadora e continuaria uma amadora. Quando vejo alguém, que nem ao menos domina o idioma em que escreve, vangloriar-se de ser escritor, tenho vontade de sumir, de tanta vergonha que sinto. Obrigada por me ler. Boa noite.
ResponderExcluirEita, Netto. Essa crítica foi um tanto desconcertante.
ResponderExcluirPELAMORDEDEUS!
ResponderExcluirProfa. Vicência, de fato, nos encontramos poucas vezes e menos ainda nos falamos, por isso maior é o meu prazer em ler sua postagem e saber de sua leitura. Somos todos amadores, mas uma coisa é certa: só quem pode no outorgar essa alcunha de escritor é o leitor. Nem editora, nem imprensa, muito menos a sua vontade. E vamos por aí, escrevendo e nos divertindo (ou não). Grande abraço.
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