A Gentilândia é um daqueles lugares onde a cidade
lembra o que foi lugar onde se vive para conviver, para ver, para sentir, para
ouvir, para andar, para conversar. Convivência experimentada no cotidiano,
fruto das relações sociais alicerçadas pelo tempo. Por isso, ser gentilandino é
um estado de espírito e quem já viveu na Gentilândia sabe que é imprescindível
voltar sempre.
Elmo Vasconcelos Júnior, curador do
Memorial da Gentilândia.
Começou assim: eram meados 1986 – século passado –
quando parti do Farias Brito, colégio onde concluí o segundo grau, para as
cadeiras de madeiras toscas do Curso de Letras da Universidade Federal do
Ceará. Tinha arriscado mais uma vez a Arquitetura já que tinha dado um chute no
destino, qual ele poderia ter me tornado também geólogo pela Unifor, mas os
deuses do vernáculo cismaram porque cismaram de me enviesarem a vida para as
bandas da escrita, crítica literária ou coisas que os valham.
Outro
mundo, outros seres, outros loucos. O impacto de ver tanta gente diferente
demorou tanto a passar que lá se foram, no mínimo, uns dois meses para me
acostumar com aquele mundaréu de cabeludos pirilampeando – se me faço entender
– para um lado e para o outro. Restinho dos bichos soltos da geração riponga
que estava dando lugar a umas tais “Diretas Já!”. Os ares eram outros, pois o
sopro maldito da fuligem de armas militares da tal falada Ditadura que tomou de
um dia para outro, vinte anos de uma geração inteira que ainda assim não passou
em brancas porque não sincerizar negras nuvens negras. Era hora de os facínoras
recolherem-se às suas casernas.
Eis que
acabei por ir descobrindo coisas em conversas sempre repletas de imagens e
símbolos, com interlocutores de todos os níveis de sabença. Viventes que me
repassavam informações que só aprendidas na base do vamos destapar os segredos
do Benfica? Fui, a princípio, sendo conduzido para depois me transformar no
timoneiro desse barco chamado vida, passando a desconstruir e retelhar o
casario da Gentilândia – reza a lenda que a família de João Gentil perdeu quase
todos os imóveis do local nos jogos de cartas e outros azares – suas nuanças,
calçadas, parapeitos e um anônimo peixe que até hoje sobrevive em seu silente
mergulhar pétreo. Explico: uma meia-parede foi erguida para proteger o prédio
do atual Museu de Arte da UFC (Mauc), inaugurado pelo então reitor Antônio
Martins Filho em 18 de julho do ano de 1961, onde antes funcionava o Colégio
Santa Cecília.
Pois
bem. Voltemos ao ser aquático que lá está fixado pelo espírito moleque de algum
pedreiro que, tendo descoberto alguns pedaços de pedra derivada de xisto
percebeu que aquelas possuíam exatamente o formato de um peixe. Certamente para
não perder a chacota e o chiste – talvez sabendo que naquele recém-construído
edifício cultural iriam ficar expostas obras de grandes nomes da escultura e
pintura cearense, quiçá nacionais, o laboral trabalhador meteu sua colher de
ferro para cima e pronto – está lá para quem tiver a paciência de procurar em
uma extensão de cinquenta metros da parede que cerca o Mauc pelo lado da
avenida 13 de Maio, quase esquina com avenida da Universidade, 2854, encontrar
o que temei em chamar de pequeno sítio arqueológico acinzelado.
Outros
enigmas estão espalhados pelos arrabaldes da Gentilândia/Benfica, sendo tudo
uma questão de procurar nas entrelinhas, nos espaços menos esperados podendo
ser encontradas preciosidades iconográficas de real importância histórica. É o
caso da torre dos quatro relógios da igreja dos Remédios, que fica bem em
frente à faculdade de Ciências Sociais e ao lado do Cetrede.
Aos 14 de agosto de
1910, foi concluída a pequena capela de Nossa Senhora dos Remédios, inaugurada
com grande festa da qual participaram mais de duas mil pessoas – evento de
grande aporte levando-se em conta que Fortaleza possuía exatos 65.816 habitantes – tendo sido a missa celebrada
por Monsenhor Bruno Figueiredo, nascido em Aracati (CE), ordenado que havia sido desde 1875; educador de grande
nome, lente do Liceu do Ceará à época, sendo vigário-geral do Bispado do Ceará.
De
início e até 1927, a igreja dos Remédios era uma delicada ermida, até serem
erigidos os atuais dois corredores laterais, custeados pelo ainda abastado
benfeitor do Benfica coronel João Gentil Alves de Carvalho. É daquela época,
também, a instalação do relógio de quatro faces ainda hoje badalando as horas
que marcam o compasso dos que deslizam a pé, em seus carros e nos agora
chamados VLT’s (Veículos Leves sobre Trilhos), os metrôs, primos atuais dos
antigos bondes com seus motorneiros a serpentear Fortaleza afora.
Os
quatro mecanismos têm sua história singular: foram projetados para serem
instalados no monumento ao Centenário da Independência (1822/1922), cuja pedra
fundamental foi lançada aos 23 de julho de 1922, na então praça do Cristo
Redentor, situada onde hoje é o início da avenida Monsenhor Tabosa e defronte
ao Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura, inaugurado em 28 de abril de 1999
com seus 30 mil metros quadrados muito bem divididos em salas de cinema,
teatro, cafés, anfiteatro, praça verde, planetário, salas de estudo, sendo
anexado à Biblioteca Pública Menezes Pimentel com seus 70 mil livros e 40 mil
títulos diversos, hoje sendo todos digitalizados para as gerações pósteras.