Há cem
anos, rebentava de vez no mundo, pela Tip. Moderna – Carneiro & Cia, a obra
de estreia do poeta, pintor, fotógrafo e boêmio, cria de Redenção, Otacílio de
Azevedo (1892-1978). Otacílio, mais reconhecido pela sua obra póstuma Fortaleza Descalça – tive o privilégio de ser editor da sua 3ª edição
(revista) em 2010 –, nunca frequentou escola, aprendeu a ler sozinho, inclusive
Gorki, chegando a publicar poemas, ainda adolescente, no periódico Ceará
Operário. Dentro do Passado (1916) trata-se de um poema único, originalmente
distribuído em 14 sonetos – a versão definitiva, incluída em seu segundo livro, Alma Ansiosa (1918), converteu-se em 10, onde alguns foram cortados e outros modificados.
Assinando como Octacílio Azevedo, o autor – na época, com 24 anos – nos conta a
sofrida história de um amor frustrado pela musa Cleonice – em Sugestão do
Luar (1921), ainda amargaria a sua lembrança –, antes possuidora de
“tristíssimo olhar”, mas que, ao se encontrar em amores pelo poeta, “simples
fazedor destes magoados versos”, “tornou-se um sorriso de luz, repleto de
alegria!” Porém, o autor confessa: “Que importa se hoje a dor todo o meu ser
transtorna,/ se a sua boca vermelha enlanguescida e morna/ foi a concha aromal
de meu primeiro beijo?” Apesar das notas e ais românticos, Otacílio se
classificava como um parnasiano-simbolista, o que foi e sempre quis ser até o
fim. Retratista que era, fez da sua literatura, não só na poesia como na prosa,
uma rica produção imagética, a ponto de ainda nos dias de hoje, pesquisadores de
distintas áreas busquem captar de suas produções a cidade, os costumes, os
hábitos e os tipos cearenses. A impressão e a expressão que a leitura de Otacílio
nos deixa, leva-nos a crer que, como diria Lúcio Alcântara ao sucedê-lo na
cadeira de número 26 da Academia Cearense de Letras, “...escreveu com o coração
nas mãos.”
Um bom
exemplo dessa expressão, registro aqui em uma das estrofes de seu poema “Carro
de Bois” – muitos contemporâneos se referem a ele como o “poeta de Carro de
Bois”, devido ao sucesso que teve essa composição, incluída em diversas
antologias e ganhadora do 3º lugar no concurso da Federação das Academias de
Letras do Brasil, pela revista Ilustração Brasileira (1951), merecendo o
destaque de Antônio Girão Barroso que afirmou ser o poema “equiparável, no
gênero (e no espírito que foi feito), a que existe de melhor no Brasil.”
“Rodam,
tardas, gemendo, as rodas, arrastando/os pesados pranchões de pau-darco.
Angustiado,/ora altivo e roufenho, ora moroso e brando,/todo o carro de bois é
um soluço abafado...”
Quem viveu
para assistir a um gemente carro de bois assente esse pungente quadro pintado pelo
poeta. Mais ainda, acolhe esse passo e o tempo “ora moroso e brando” como um
“soluço abafado”. Que delícia de metáfora. Afinal, quantos soluços abafados
carregamos em nosso peito? Otacílio, menino de “olhos tristonhos”, “boca
amarga” e “expressão dolorosa”, de origem pobre, e que desde os 8 anos teve que
trabalhar “numa roupa de sacos de farinha” para colaborar no sustento da
família – em Musa Risonha (1920), sua autobiografia em versos – e que foi
operário boa parte da vida, também carregava os seus, bastando um rápido mirar em
alguns dos poemas que preenchem seus 12 títulos, nos quais o amor, a morte, a
melancolia, o fim do mundo e/ou da vida, a inconformação com a injustiça, o
descontentamento com a miséria e a fome do mundo ocupam a sua faina poética de
escritor andante e amoroso, a grassar a sua vida, numa mescla de tristeza e de
saudade, mas sempre de poesia, dentro do passado.
EM
TEMPO: Por sugestão de Urariano
Mota, escritor e jornalista pernambucano, leitor do AlmanaCULTURA, colocamos a
seguir, na íntegra, o poema “Carro de Bois”, de Otacílio de Azevedo, publicado
em 1918, em Alma Ansiosa, dedicado a
Mário Linhares.
Rodam, tardas, gemendo, as rodas,
arrastando
os pesados pranchões de pau-darco.
Angustiado,
ora altivo e roufenho, ora moroso e
brando,
todo o carro de bois é um soluço
abafado...
À hora viúva e glacial do crepúsculo
quando
o sol desce, o seu canto é tão doce e
magoado
que ora nos prende à terra, ora nos vai
levando
na asa de oiro de sonho a um longínquo
passado.
Choram, tristes, à frente, os bois
mortos de sono...
Há uma vaga tristeza, uma ansiedade em
tudo
e a paisagem dir-se-ia um pôr de sol,
no outono...
Oh! Natureza-Mãe! sei quanto sofres,
pois
vejo, ansioso, rolar todo o teu pranto
mudo
pelos bons olhos melancólicos dos bois.
Linda crônica sobre um belo poeta. Obrigado pela grata leitura, Tião Ponte.
ResponderExcluirTião, como sempre, agradeço a sua honrosa leitura, meu amigo. Espero que esteja bem. Grande abraço.
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