sábado, 17 de dezembro de 2016

"Dentro do Passado": Otacílio de Azevedo, de Raymundo Netto para O POVO


Há cem anos, rebentava de vez no mundo, pela Tip. Moderna – Carneiro & Cia, a obra de estreia do poeta, pintor, fotógrafo e boêmio, cria de Redenção, Otacílio de Azevedo (1892-1978). Otacílio, mais reconhecido pela sua obra póstuma Fortaleza Descalça – tive o privilégio de ser editor da sua 3ª edição (revista) em 2010 –, nunca frequentou escola, aprendeu a ler sozinho, inclusive Gorki, chegando a publicar poemas, ainda adolescente, no periódico Ceará Operário. Dentro do Passado (1916) trata-se de um poema único, originalmente distribuído em 14 sonetos – a versão definitiva, incluída em seu segundo livro, Alma Ansiosa (1918), converteu-se em 10, onde alguns foram cortados e outros modificados. Assinando como Octacílio Azevedo, o autor – na época, com 24 anos – nos conta a sofrida história de um amor frustrado pela musa Cleonice – em Sugestão do Luar (1921), ainda amargaria a sua lembrança –, antes possuidora de “tristíssimo olhar”, mas que, ao se encontrar em amores pelo poeta, “simples fazedor destes magoados versos”, “tornou-se um sorriso de luz, repleto de alegria!” Porém, o autor confessa: “Que importa se hoje a dor todo o meu ser transtorna,/ se a sua boca vermelha enlanguescida e morna/ foi a concha aromal de meu primeiro beijo?” Apesar das notas e ais românticos, Otacílio se classificava como um parnasiano-simbolista, o que foi e sempre quis ser até o fim. Retratista que era, fez da sua literatura, não só na poesia como na prosa, uma rica produção imagética, a ponto de ainda nos dias de hoje, pesquisadores de distintas áreas busquem captar de suas produções a cidade, os costumes, os hábitos e os tipos cearenses. A impressão e a expressão que a leitura de Otacílio nos deixa, leva-nos a crer que, como diria Lúcio Alcântara ao sucedê-lo na cadeira de número 26 da Academia Cearense de Letras, “...escreveu com o coração nas mãos.”
Um bom exemplo dessa expressão, registro aqui em uma das estrofes de seu poema “Carro de Bois” – muitos contemporâneos se referem a ele como o “poeta de Carro de Bois”, devido ao sucesso que teve essa composição, incluída em diversas antologias e ganhadora do 3º lugar no concurso da Federação das Academias de Letras do Brasil, pela revista Ilustração Brasileira (1951), merecendo o destaque de Antônio Girão Barroso que afirmou ser o poema “equiparável, no gênero (e no espírito que foi feito), a que existe de melhor no Brasil.”
“Rodam, tardas, gemendo, as rodas, arrastando/os pesados pranchões de pau-darco. Angustiado,/ora altivo e roufenho, ora moroso e brando,/todo o carro de bois é um soluço abafado...”
Quem viveu para assistir a um gemente carro de bois assente esse pungente quadro pintado pelo poeta. Mais ainda, acolhe esse passo e o tempo “ora moroso e brando” como um “soluço abafado”. Que delícia de metáfora. Afinal, quantos soluços abafados carregamos em nosso peito? Otacílio, menino de “olhos tristonhos”, “boca amarga” e “expressão dolorosa”, de origem pobre, e que desde os 8 anos teve que trabalhar “numa roupa de sacos de farinha” para colaborar no sustento da família – em Musa Risonha (1920), sua autobiografia em versos – e que foi operário boa parte da vida, também carregava os seus, bastando um rápido mirar em alguns dos poemas que preenchem seus 12 títulos, nos quais o amor, a morte, a melancolia, o fim do mundo e/ou da vida, a inconformação com a injustiça, o descontentamento com a miséria e a fome do mundo ocupam a sua faina poética de escritor andante e amoroso, a grassar a sua vida, numa mescla de tristeza e de saudade, mas sempre de poesia, dentro do passado.


EM TEMPO: Por sugestão de Urariano Mota, escritor e jornalista pernambucano, leitor do AlmanaCULTURA, colocamos a seguir, na íntegra, o poema “Carro de Bois”, de Otacílio de Azevedo, publicado em 1918, em Alma Ansiosa, dedicado a Mário Linhares.

Rodam, tardas, gemendo, as rodas, arrastando
os pesados pranchões de pau-darco. Angustiado,
ora altivo e roufenho, ora moroso e brando,
todo o carro de bois é um soluço abafado...

À hora viúva e glacial do crepúsculo quando
o sol desce, o seu canto é tão doce e magoado
que ora nos prende à terra, ora nos vai levando
na asa de oiro de sonho a um longínquo passado.

Choram, tristes, à frente, os bois mortos de sono...
Há uma vaga tristeza, uma ansiedade em tudo
e a paisagem dir-se-ia um pôr de sol, no outono...

Oh! Natureza-Mãe! sei quanto sofres, pois
vejo, ansioso, rolar todo o teu pranto mudo
pelos bons olhos melancólicos dos bois.









2 comentários:

  1. Linda crônica sobre um belo poeta. Obrigado pela grata leitura, Tião Ponte.

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  2. Tião, como sempre, agradeço a sua honrosa leitura, meu amigo. Espero que esteja bem. Grande abraço.

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