VIVER!
Ainda é a melhor escolha.
10 de setembro
Dia Mundial
de Prevenção do Suicídio
Nasce o poeta à luz de
um dia,
extraído de gomos de nuvens, forjado em flandres, coração cerzido por cantos de
anjos. Vem ao mundo na cangalha de vento, ao caminhar lento de quem nada espera
do desperdício das horas que se arrastam pela vida afora num sopro fresco a
tremular a cortina fina da janela, a revelar a parede caiada, branca fumaça,
tal qual folha sem graça de papel sem rastros de versos.
Ainda menino,
sente-lhe cair ao colo a étima poesia. Descontem-se os sentimentos que afloram
e afaunam a sua apatia. Como fora luz a mostrar palmo de língua a si mesma, insaita: a poesia não está
na palavra, pois que esta é larva; a poesia é não mais que sim, é você antes de
mim, é mais antipoesia que poesia e se respira no quintal, na grama verde, no
sorriso da criança que comove e se rende à esperança, e, finalmente, a poesia
não é a cara do poeta, mas do mundo, e o mundo uma sombra que vaga no fundo de
seu olhar.
O néscio, cuja fronte
suada é cingida pelos louros do ideal, opta pela vereda anárquica original,
musa da loucura melódica a flutuar na monocórdica mansidão do mundo ao som
profundo dos estertores de seu peito magro e punho. Mal sabe ter elegido, como
destino de vida, um reles rascunho.
Ordena-se, então, com
pompas de herói marginal, por meio do sonho, o poeta sem igual e, desdentão, se
põe a dançar com os demônios, a rir-se e a se rir, à socapa, com eles, a lhes
vender por nada a alma, a deitar em sua lama, em sua cama, a coçar-lhes as feridas
às costas, a lhes provar o fel da amargura e dissabor, a transformar todo o
infortúnio deste orbe em amor.
Carrega assim, vida
sem fim, na aflição da alma lunar, todas as madrugadas, por travesseiros as
calçadas e a própria febre como cobertor.
Colhe no ar cada
palavra e a semeia com a dura doçura de esteta e palavrador, aquarelas palavras
que espinham a garganta, que lhe cortam os dedos e que alfinetam o pensamento
ensimesmado. O fio de ideias que lhe escapam o novelo, a embaraçar os cabelos,
a enrugar-lhe a testa que, em festa, comemora seu verso engrolado.
O poeta não o sabe –
há quem (lhe) diga –, mas carrega entranhado em si a dor de todos, e a ela
suporta com olhos lacrimosos no decotar do peito arfante da mulher da rua, no
meio-fio frio nas noites de luar, na urina que lhe escapa ainda quente à parede
do bar, na volúpia da anca pública, na morte anunciada em seu olhar. E descreve
sua poesia com letras da fome, sabendo que as fomes maiores vêm da agonia dos
que nada tem, pois que se lhes é arrancado todos os dias pelos insaciáveis
tubarões do Congresso que as mantêm.
Dói... Ah, como lhe
dói a marcha vida. A ele, e somente a ele, o mundo impõe o exílio, e este, sem
auxílio, pode estar aqui em meio a todos, no escárnio, no deboche de quem lhe
diz: “Doido! Maluco! Abestado!”
O poeta, sim, sem
enfado, sabe, mas não acredita que sabe tudo, pois tudo às suas vistas é
imensidão, é indecifrável, é beleza. Ao contrário dos homens doutos que em sua
vileza dizem saber tudo, pois conseguem ir e vir da esquina; e têm dinheiro
para comprar a esquina, ou aquela que encosta-se a seu poste ou na feira, mas
que não veem que nunca a possuirão inteira.
O poeta, deitado em
seu quarto, coxas à barriga, morre todos os dias e sonha para esquecer a vida.
Veem-no e o dizem preguiçoso, dorminhoco, um pastor com sobrosso de um louco,
em querelas de mesa de bar: “Poetas, vagabundos a vaguear!”
Cinzas ilusões,
cinzéis de emoções, antes da garganta sufocar e seu corpo, em balanço,
pendular, molha para trás os cabelos. A barba negligente, pela última vez,
coça. Lê mais um verso do “maldito” e adoça o último orvalhar de sua face a si
estranha.
Ao poeta
desconhecido, a sepultura forrada com borboletas, a sarjeta pessoal, a mesa
posta em mistérios de um universo estrelado de lantejoulas, entre folhas de
papel crepom luzidias e amargas balas de celofane.
Quando suas palavras
quedam entre as fagulhas do seu poema, diluem-se, estalam-se e viram vidro,
caneta, papel e incompreensão.
Da taça que bebes, ó
poeta, entornas do seu verso, em semente, a solidão.
SopÓpera: crônica poemarcelo bittencourt,
de Raymundo Netto, Crônicas Absurdas de
Segunda (2015) - publicado originalmente em O POVO em 5 de novembro de 2010.
Sobre o homenageado: Gentil Marcelo de Barros Bittencourt
Filho, o Marcelo Bittencourt, era poeta e boêmio, um dos
editores e colaboradores da revista Pindaíba.
Como geralmente acontece, era um cara alegre, mas de espírito
atormentado. Alucinado pelo “maldito” José Alcides Pinto, assunto comum
em todas as vezes, e poucas, que sentamos à mesma mesa no bar do Assis, na
Gentilândia. Suicidou-se numa quarta-feira, dia 6 de outubro de 2010, deixando
o Benfica, seu bairro-lar, numa noite escura sem estrelas. Ao Marcelo, meu
minuto de silêncio de sonora e gritante poesia.
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