Em uma época em que o lamaçal no
país toma-nos às ventas, provavelmente por não termos outras questões mais
prioritárias e emergentes a resolver, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/CE), por meio
de sua Comissão de Liberdade Religiosa, pronunciou-se, assim como também a
Assembleia Legislativa do Estado do Ceará apresentou Moção de Repúdio, contra a apresentação da
peça “Histórias Compartilhadas: Ou dos corpos que não se bastam”, realizada
durante o seminário “Conversas empoderadas e despudoradas sobre gênero
sexualidade e subjetividades”, que teve sede no auditório da Universidade
Federal do Ceará (UFC).
A imagem de uma fotografia
postada em redes sociais em que o ator Ari Areia vertia gotas de sangue sobre um
pequeno crucifixo, causou a cólera no coração imaculado de diversas pessoas
que, sem assistirem à peça nem a contextualizarem no evento em que se discutia
questões de gênero e no qual se falava exatamente sobre a intolerância e a
discriminação aos transexuais, passaram a agredi-lo, ofendê-lo e até mesmo
ameaçá-lo de morte. Alguns chegaram em sua sandice e fantasia dogmática a
denunciá-lo à Santa Inquisição e comprar a sua passagem antecipada a um dos dez
fossos do Hades dantesco.
A OAB, incompreensivelmente
baseada apenas na visão estática da fotografia e no relato preconceituoso e
intolerante de pessoas que também não têm noção do que se tratava a peça, chega
a sugerir em seu pronunciamento que o ator poderia ter usado “outros
personagens históricos” ao invés do crucifixo cristão (em entrevista à rádio O
POVO/CBN, o representante de tal comissão, também preconceituosamente
perguntava: “por que não o John Lennon?”). Faz-me pensar se haveria essa reação
se ao invés do crucifixo estivesse ali o Buda, Maomé, Iansã ou o Preto Velho.
Continuando, ela afirma solene: o “Cristo crucificado que representa para
milhões de brasileiros vida, esperança, paz, amor”. Perguntamo-nos: as
agressões e ameaças de morte que assistimos por parte dessa legião virtuosa e
enfurecida representam mesmo vida, paz e amor?
O pronunciamento da OAB,
aprovado por pessoas que por unanimidade não assistiram à peça (conforme
afirmação do presidente da Comissão), ainda determina que existem limites para
a liberdade de expressão. Ora, quem define esses limites? Delegamos esse poder
a quem?
Agora entra em cena o Ministério
Público, pede esclarecimentos, entre os quais: de quem partiu a ideia; se a
direção se preocupou com eventuais afrontas à comunidade cristã; quem são os
produtores e quais os contatos deles; quem autorizou a exibição do espetáculo;
se possui filmagens; se havia autorização para ser exibida na UFC etc., numa desfaçado
ensaio censurador.
Ouve o Ministério Público essa
solicitação da OAB, no intuito de – soaria até engraçado isso – “restaurar o
império da lei, da paz e da tolerância”. Paz e tolerância de quem? Daqueles que
confortavelmente não estão nem aí para a violência diária e histórica sofrida por
gays, lésbicas, trans e travestis, seres humanos que, segundo alguns deles, na
sua autoridade religiosa suprema e pacífica, nem são “gente”, como infelizmente já tive o desprazer de ouvir? Justamente quando nessa semana foram eles os
personagens-vítimas do pior massacre a tiros nos EUA?
Curioso é que o Brasil foi um
dos países a gritar por LIBERDADE quando da execução, por muçulmanos TAMBÉM
coléricos e intolerantes, da equipe do jornal francês “Charlie Hebdo”. Hoje,
somos nós a querermos calar essa liberdade, quando em pauta deveria estar a
maldade, a ignorância e a violência sofrida por aqueles a quem esses caiados
fundamentalistazinhos desprezam e que se possível executariam, não fosse a
falta de coragem. Graças a Deus!
Ora, OAB, MP e AL, a maior
afronta contra o Cristo na cruz são todas as formas de racismo, preconceito e
discriminação, pois “tudo que fizermos com o menor de nossos irmãos, faremos a
Ele” (Mateus 25).
E afinal, quem de nós está oferecendo a outra face, irmão?
Excelente crônica, Raymundo Netto. Esse episódio da moção de repúdio contra uma peça de teatro é sinal de como a falta de vontade de conhecer os produtos culturais, a má-fé em julgá-los sem tê-los visto ou ouvido em sua integridade e a prepotência de coibir o espírito criativo dos artistas colaboram para a formação de um cenário em que a ausência de repertório cultural sólido, a ausência de leitura da palavra e da leitura do mundo (para usar expressões do grande pedagogo Paulo Freire) e a presunção de verdades dogmáticas oriundas de grupos religiosos que se pretendem hegemônicos dão o tom da desinformação e da estupidez.
ResponderExcluirSuspeito que a polêmica toda tenha sido motivada não em defesa (que nem precisa) daquele que recebeu o sangue derramado (o Jesus crucificado), mas em ataque àquele que o derramou (um homossexual). Uma reação homofóbica com máscara legal de um Estado nada laico.
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ResponderExcluirSeu texto não é que seja apenas bom. É necessário. A Inquisição voltou! Junte fanatismo e ignorância que se cria uma fogueira mais rápido do que com lenha e fósforo.
ResponderExcluirE como sei disso, Carol. Obrigado pela leitura e compartilhamento.
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