Rua
da Escadinha ou Travessa Baturité, 162. Casa centenária que abrigou entre
outros, Gilberto Câmara, jornalista, responsável pela campanha que edificou o mais
belo conjunto escultórico de Fortaleza, aquele que representa José de Alencar,
na homônima praça, e um dos maiores incentivadores da fundação da Associação
Cearense de Imprensa, a ACI. É também a casa que hospedou o poeta paulista Guilherme
de Almeida, em 1925, quando em suas peregrinações Brasil afora em defesa da
corrente modernista. Ao final, abrigo de um dos maiores pesquisadores e
defensores do patrimônio artístico, arquitetônico e cultural brasileiro e
cearense: Christiano Câmara.
Há
cerca de 9 anos o conheci. Bati palmas ao portão, sendo recebido por Douvina, a
sua sempre guardiã e relações públicas, quando me disse, no corredor que dá
para cozinha, onde colava tirinhas de papel em fitas K-7: “Se for jornalista,
não recebo!” Estava zangado pelos inúmeros que o procuravam para explorá-lo,
tomá-lo horas no cumprimento de pautas, mas que não se atrincheiravam com ele
na defesa daquilo que lhe era mais sagrado: a história que exibia em suas
paredes. “Nunca vi isso. Impressionante... eles não denunciam, não cobram nada
às autoridades!” Deu-me como souvenir um texto impresso “Fortaleza sem Rosto”,
escrito por ele em 2000: “No Brasil, 3% da população não tem do que reclamar,
enquanto 97% não tem a quem”. Sentia-se sozinho em última trincheira, que a
cada dia via mais espremida naquela rua, tomada por shoppings de camelôs,
oficinas mecânicas, comércio de botijões de gás, estacionamento de caminhões,
“um inferno!” Os políticos e autoridades iam lá, pediam-lhe a benção,
beijavam-lhe as mãos e depois as lavavam e deixavam Christiano a ver navios,
claro, se pudesse vê-los novamente, pois se vendia a beira-mar para arranha-céus
de luxo, geralmente dos mesmos donos, os donos do Ceará, aqueles cuja fortuna tinha
origem no contrabando, na especulação, em negociatas políticas do passado a
preço da ignara alma popular. Afirmava o Christiano: “Raymundo Netto, não
adianta. Nunca que essa elite burra e analfabeta vai atrás de passado e de
manter tudo isso. Sabe por quê? Por que essa elite veio da merda e eles querem
esquecer dessa merda toda!” – nessa hora, d. Douvina tentava acalmá-lo: “Meu
velho, você não é de falar palavrão! Não precisa...”.
Há
5 anos, doído e quase choroso, confessou-me que dormia quando ouviu a voz da
mulher discutindo com um caminhoneiro na calçada. Ela pedia educadamente que
ele abaixasse o volume do som, “pois seu velho estava dormindo”. O caminhoneiro
riu e aumentou ainda mais. Christiano foi à calçada, pegou-a pelo braço e a
chamou para casa. O motorista falou: “É. Leva essa doida, mesmo!”. Christiano
respondeu: “Vou levar, sim, mas só porque, infelizmente, nessa casa não existe
mais um homem!”. Foi uma das declarações mais dolorosas que ouvi na vida. Não
nos enganemos: esse foi o tratamento que mereceu o nosso Christiano nos últimos
anos de sua vida. Aquele que recebia a todos com paixão, brilho nos olhos,
falando alto e com entusiasmo sobre um mundo cada vez mais deixado para trás,
também seria lembrado apenas pela máquina de afetos que alguns denominam,
quando o tem, de coração.
Pois
é, a morte não podemos impedir, mas o legado de Christiano podemos, sim,
manter. Agora, alguns urubus cairão em cima, tentarão com promessas doces tomar
o que puder para si, comprando ou não, algumas raridades. Outros, membros de
associações pseudoculturais de vagas vendidas a preço de pagamento de dívidas,
ou órgãos oficiais em que os responsáveis se escondem por trás das portas
tentarão ganhar vantagem.
A hora é de cautela e objetividade. Vejam a luta que seu deu para a permanência da Casa de Juvenal Galeno. É possível, sim. Esse é um exemplo.
A hora é de cautela e objetividade. Vejam a luta que seu deu para a permanência da Casa de Juvenal Galeno. É possível, sim. Esse é um exemplo.
E,
Christiano, que Deus o receba, ao lado de seu Gilberto e dom Helder, com aquilo
que ele criou e que você carregou com tanto amor em seus braços: a boa música.
Um texto de peso e medida, a altura do homenageado. Parabéns, Raymundo Netto.Tive sensação idêntica quando faleceu o meu saudoso amigo Francisco Magalhães Karam, em Canindé. Um guardião da história, que não foi compreendido nem ajudado pela classe política na sua luta quixotesca. Pensei no Ribamar Lopes e sua luta em prol do cordel e tantos outros que defendem um ideal com unhas e dentes, com amor e paixão, sem jamais ter o valor que realmente lhe é devido. O mais triste de tudo é esse caminhoneiro fie de rapariga escutando buco-buco em alto volume e ofendendo a esposa do Christiano. O BRASIL, meu amigo, vai de mal a pior.
ResponderExcluirJáder de Carvalho deve estar batendo palmas para a sua crônica e fazendo a recepção do mestre Christiano lá por riba... Viva ALDEOTA, o romance.
ResponderExcluirFazer que nem você, para não dizer "como você": respondi no facebook. Vá lá, se achegue. rsrsrs
ExcluirEu não vou dizer é nadinha! Porque, eu estou assim, sei lá como... triste e PASMO! Como é que um Estado como o nosso trata(va) um camarada como o Cristiano deste jeito? O poder detesta Cultura... menos na campanha...
ResponderExcluirRaymundoN, parabéns pelo texto!
Jader, você é que é bom demais. Continue assim, lutando pelos seus. Abraço.
ExcluirFicamos nós, Raymundos, você ainda por mais tempo, para lutar pela preservação da poesia!
ResponderExcluirOswald, apenas teoricamente "eu por mais tempo". Você com esse jeitão vai ficando, ficando... e nós indo, indo... rsrsrs Mas na poesia!
ExcluirRaymundo Netto, como você escreve bem,amigo! Sua crônica me transportou para um tempo e para um dia na casa do casal Christiano e Douvina! O cenário histórico, o quintal da casa e eles dois me fascinaram. Eles falavam quase ao mesmo tempo. Mas a sua voz era mais alta. Ele me contou sobre essa situação , e eu reconhecia a sua razão, mas pensava: o que eu poderia fazer? Que "força" eu teria para buscar soluções para resolver os seus problemas? Eu sabia que estava falando com um grande guardião de um patrimônio raro, mas como encontrar uma saída para trazer paz e reconhecimento para esse grande historiador?
ResponderExcluirPensei, inocentemente:será que a participação dele nos nossos documentários despertaria interesse de alguém poderoso e amante da cultura para ajudá-lo?
A sua crônica sensível e bela bateu forte nas minhas lembranças e coração. Obrigada pelo envio. Parabéns, grande cronista Raymundo Netto!
Texto forte, agudo. Merece ser republicado com as devidas atualizações e pedidos de providências.
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