(*) Dica de leitura
do quadro "Vamos Ler" da REVISTA O POVO na rádio O POVO/CBN, com
Maísa Vasconcelos e participação quinzenal de Raymundo Netto (terças-feiras, das
15h30 às 16h) – 1º de dezembro de 2015
O Deserto
dos Tártaros me chegou pela curiosidade e como surpresa. Não
conhecia Dino Buzzati, o seu autor. Fui presenteado – devo-lhe ao Pedro
Salgueiro, crítico-mor dos sebos da região – com A Queda da Baliverna, cujo projeto gráfico e título, a princípio,
não me atraíram. Após a primeira leitura dos contos de tal Queda... , senti uma coceira de conhecer o romance sobejamente
anunciado como a sua obra-prima: o alegórico O Deserto dos Tártaros.
Li e, sobre a obra, escrevi, em
2013, em crônica publicada em O POVO:
“Difícil leitura, mas não por
culpa do autor. Aparentemente um livro monótono, tenso, marcado por uma
sequência de nadas e vazios desconcertantes. Giovanni Drogo, um jovem tenente,
recebe posto no forte Bastiani, na planície fronteiriça de um cantinho qualquer
esquecido do ‘mondo’. Como todo bom soldado, queria ser herói, fazer algo de
relevo, ter uma carreira brilhante, viver grandes amores, ganhar o mundo. Só
que não. Ao percorrer a enfadonha trilha militar do forte, a cada momento tinha
a certeza de que só podia ser um engano. Nada mais morto, mais desinteressante,
mais inútil que aquela vida besta, a ponto de escrever cartas mentirosas na tentativa
de se enganar, antes do outro. Tentou sair do forte, procurar outra ocupação,
pedia transferência aos seus superiores, e tudo isso lhe parecia sempre bem
possível, pelo menos é o que, pacientemente, lhe diziam, mas nunca, nunca que
saía de lá. Alguns o alertavam do que o forte poderia fazer com ele se não
saísse logo e, mesmo assim, deixou-se vestir o manto de esquecimento.
O tempo passou. Drogo sendo
promovido, anestesiando-se ao som regular dos passos das sentinelas, virando
todo apatia. Seus nervos pouco o beliscavam na procura das glórias roubadas, do
sonho a congelar por trás das muralhas nuas em noites de lua, à espera dos
tártaros, povo bárbaro que, como diziam as lendas, um dia chegariam e tentariam
destruir tudo. Neste dia, ah, neste dia, então, sim, toda a sua existência
teria um significado e a sua vida valeria a pena. Bastava-lhe este dia para
coroar de louros a longa espera. Mas os tártaros, se é que um dia existiram,
nunca chegavam. Via sinais: pequenos pontos luminosos em meio a sombras
noturnas, um fluxo misterioso na linha do horizonte, murmúrios noturnos com os
ventos, e, de repente, mais nada. Apenas o nada de todos os dias de uma vida
inteira!
‘Numa fenda dos penhascos
vizinhos, já encobertos pela escuridão, atrás de uma caótica escadaria de
cristas, a uma distância incalculável, imerso ainda no sol vermelho do poente,
como que saindo de um encantamento, Giovanni Drogo avistou um morro pelado e no
topo dele um traçado regular e geométrico, de uma singular cor amarelada: o perfil
do forte. Oh, tão longe ainda. Quem sabe quantas horas de estrada, e seu cavalo
já estava esfalfado. Drogo o fitava fascinado, perguntava-se o que podia haver
de desejável naquele casarão solitário, quase inacessível, tão separado do
mundo. Que segredo ocultava?’
O livro, meus amigos, é de uma
inquietação poética. Uma grande interrogação mancha de filosofia as páginas
vagarosas que parecem nos capturar no mesmo exílio de Drogo, sendo capaz de nos
fazer sentir o hálito úmido das paredes de pedra, cobertas de limbo, do forte
Bastiani, e de ouvir o silêncio frio das noites angustiantes que custam a
passar. Fazemos escolhas, mesmo quando não conscientes, renunciamos da vida,
nos tornamos estrangeiros de nós mesmos no passar dos anos de O deserto dos tártaros. Assistimos a
nossa história ser consumida numa fogueira silenciosa, dia após dia, em troca
de nada, a não ser da paciente espera de algo que, chega a parecer, nunca
acontecerá! Descobrimos, entre uma xícara ou outra de café ao pé da janela
triste caiada em luar, que o maior deserto é aquele que colhemos em nosso
peito; aquele que, lentamente, nos devora o corpo e a alma, e, quando menos
esperamos, o mastigamos e o encontramos entre os dentes em nome da nossa cara e
amante solidão.”
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