sábado, 3 de outubro de 2015

"Alô, Alô, Marciano!", crônica de despedida de Raymundo Netto para O POVO


Foto: Kiko Silva

Alô, alô, Marciano Lopes, aqui quem fala é da Terra. Sou o Raymundo, aquele que quando o encontrava nas ruas do Centro ou no Bar do Pedim parava para compartilhar as dores comuns à desmemória coletiva desta cidade, talvez a sua amante mais fervorosa e completamente infiel.
Você, com sua voz arranhada de vitrola, não era dado a simpatias, avaro em sorrisos e gestos. Gostava de se dizer jornalista, entretanto, mal contava das histórias sobre os feitos do passado – e tinha muitos nas diversas folhas cearenses –, a não ser quando sob pressão e generosa paciência.
Quando lancei meu primeiro livro, em 2005, era seu leitor. Adorava as suas crônicas de menino, aquelas “scenas d’antanho tiradas do baú”, assistindo aos espetáculos das vitrines das lojas chiques, dizendo dos costumes, da beleza dos cinemas, das fotografias amarelecidas e dos reclames. Não sei se ainda lembra, mas fui ao seu antiquário, disse exatamente isso enquanto me apresentava, indiferente ao meu entusiasmo, a diversas peças raras de mobiliário. Entretanto, ao saber que estava ali para convidá-lo para um lançamento de livro, perdeu a inspiração e foi categórico: “Não vou a lançamentos. Livros, tenho os meus. Não dá dinheiro. Maior bobagem escrever livros.”
Eu, que tinha adquirido alguns outros títulos da ABC – editora do admirável ipuense Maurício Xerez –, aproveitei e perguntei se ainda tinha algum exemplar do Royal Briar. Respondeu-me “Não, acabou-se tudo!” Quando, repentino, alargou a vista sempre espremida: “Você não quer publicar meu livro também, não?”
Passaram-se os anos, amigo Marciano, e eu continuei a encontrá-lo ao acaso. Num desses encontros, em meio a belas manecas, me transmitiu um ensinamento: “Não importa apenas que falem sobre a história da cidade, essa história tem que ser verdadeira, pois daqui a alguns anos, quando pesquisarem nos jornais, acreditarão que aquele monte de asneiras é verdade!” Assim, você, que nem gostava muito de aparecer em fotos ou em TV, nem de agradar a ninguém, recebeu meu convite para participar de uma mesa de cronistas da cidade que criei para a Bienal do Livro, em pleno aniversário de Fortaleza.  Porém, negou-se. “Ia não. Fazer o quê lá?” Também se negaram Airton Monte, Christiano Câmara e Nirez. Aceitaram: Narcélio Limaverde, Zenilo Almada e o Ary Bezerra Leite.
Mesmo diante dos descasos para com este amigo, e deixando para lá umas piadinhas ácidas que eram bem de seu feitio, estimulei Albanisa Dummar, editora, a apresentar o seu Royal Briar em concurso de publicação, no qual, para nossa alegria, talvez mais minha do que sua, ele foi contemplado, sendo logo editado e distribuído pelo Armazém da Cultura, assegurando, ainda hoje, mais agora com a sua distância, que os leitores também amantes da “lourinha” possam encontrá-la pintada pelos seus olhos. Eu, final e merecidamente, confesse, após tantos anos, ganhei a edição original (1988) de seu Royal Briar, além da nova (2012) e belíssima edição do Armazém.
Hoje, quando soube de mais essa desfeita, essa partida silenciosa em plena noite dourada, lembrei-me, com amargo gostinho de “nunca mais”, daquelas piadinhas infames, da pergunta nunca respondida sobre a radionovela da Assunção, dos seus rastros que trago na estante. 
Pois é, Marciano, “a crise tá virando zona: cada vez mais down o high society!”


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