domingo, 5 de julho de 2015

"Festa na Serra", de Ana Miranda para O POVO


Quando digo por aí que no Ceará temos serras altas, cobertas de Mata Atlântica com suas típicas bromélias, orquídeas e samambaias, relvas de marias-sem-vergonha, neblinas densas pela manhã, fios d’água e clima frio, as pessoas se admiram, às vezes até descrentes. Mesmo eu me maravilhei esses dias, na verdejante, agradável, calma e fresca serra de Guaramiranga. Não dava para acreditar que era o mesmo Ceará das praias e coqueiros, ou o dos sertões de caatinga. Parecia um sonho.
A Rachel de Queiroz dizia que o nome Guaramiranga, que significa pássaro vermelho, veio de um sítio fundado por seu bisavô, e ainda no século 19 acabou batizando o vilarejo, quando tinha só duas ruas que se cruzavam: uma da porteira do sítio até a igrejinha de Lourdes, no alto; e outra, do Monte-flor para o Macapá. Ali ela passava suas férias de menina, numa casa alugada pelo pai no alto da Matriz. Rachel contava que uns jornalistas, professores, artistas, subiam de Fortaleza e se reuniam com a inteligência local, para programar peças de teatro, conferências, recitais. No final do ano, todos se juntavam para montar um “drama”, uma espécie de teatro de revista nascido dos rituais de colheita dos antigos lavradores.
Moças vestidas de deusas declamavam, bailavam, cantavam, exaltando o clima, as águas, as flores e frutas, as riquezas do café e da cana-de-açúcar. A Rachel ainda se lembrava de uma valsa tocada num desses dramas, chamada Princesinha dos dólares: “Sou a cana jovial / do café a doce irmã...”
Aquela serra pertencia a índios, só eles conseguiam viver num lugar tão inacessível; ali habitavam os Canindé, quando chegaram os missionários, até que as terras foram desbravadas por fazendeiros dos sertões vizinhos que ocupavam as partes cada vez mais altas das encostas. Os índios, agora escravos, foram trabalhar nas plantações e construíram algumas das casas senhoriais que ainda vemos por lá. Com as grandes secas dos anos setecentos, sertanejos eram empurrados para a serra em busca de água. Não tardou a surgir em torno de uma capela o povoado de Conceição, que depois se tornou a freguesia de Nossa Senhora da Conceição. No século 19 o lugar ficou rico, com as plantações de café e de cana-de-açúcar. E veio o nome Guaramiranga.
Numa caminhada pela serra, ali perto de Forquilha, eu avistava alguns pontinhos vermelhos no meio da mata; eram frutos de café, talvez remanescentes dos tempos dos grandes plantios cafeeiros. Tudo em Guaramiranga tinha relação com a lavoura de cana e a de café que se espalhavam pelas encostas. Naqueles pomares, roçados e canaviais os lavradores descansavam fazendo versos, cantorias. Nas imensas cozinhas dos sítios as nativas ouviam e cantavam cantigas aprendidas com senhoras portuguesas ou holandesas.
Dizem que foi dessas cantigas de cozinha que nasceram os dramas lembrados pela Rachel. Quando os trabalhadores festejavam a colheita, apresentavam seus poemas em dramas e reisados. Primeiro entre si, depois para senhores e suas famílias, nos faxinais dos sítios. Os senhores forneciam as roupas de cena, os cenários, cediam os lampiões que iluminavam a faxina, convidavam o povo das redondezas, e davam de graça a cachaça. Contam que no sítio Arábia se apresentavam noitadas de dramas com mais de cinquenta e três números diferentes. Eles chamavam os números de “operetas”, que eram diálogos cantados. Os sítios ficavam cheios de gente em suas roupas domingueiras, comendo e bebendo, divertindo-se com entusiasmo.
Algum padre entendeu que aquele júbilo poderia animar as cerimônias da padroeira, aumentando a arrecadação das quermesses, e incorporou a festividade às festas de igreja. Assim foi que Guaramiranga criou seu espírito de artes, a partir de dramas, de mestres do reisado, de músicos e poetas populares, das festas religiosas, das rezadeiras com suas preces, dos balaieiros que fabricavam peças minuciosas... Com o fim das atividades cafeeiras, os lavradores se foram daquelas serras, e a festa de dramas passou a fazer parte do pequeno centro urbano. Nos domingos à noite. Uma história bucólica, um passado alegre.
Como Rachel, também tenho as minhas lembranças líricas de infância na serra. Mas era a de Maranguape, onde meus pais alugavam um sítio para nossas férias. Minha lembrança é apenas uma névoa, uma ou outra imagem sem história, pois eu era muito pequenina, tinha apenas dois anos de idade: uma piscina imensa, águas escuras cobertas de pinceladas de prata, a vegetação por trás, o vulto de uma casa, um telhado vermelho...


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