O escritor guineense Manuel Casqueiro,
membro da Academia Afro-cearense de Letras
Quando li Muzungu Pululu: homem branco
transparente, do guineense radicado no Ceará, Manuel Casqueiro, fiquei tão impressionado que saltei imediatamente
da última página para a primeira: o livro – misto de memória e ficção (que, a
meu ver, andam sempre, ou quase, de mãos dadas) – exigia uma leitura mais
apurada, de leitor que não quer saber apenas da história contada, mas dos
detalhes escondidos – dos, pedantemente digamos, subterrâneos da escrita. Reli
com “olhos frios” e descobri, além do poderoso contador de histórias vividas,
um fino estilista, que buscou linha a linha, texto a texto, a forma literária
mais propícia para narrá-las.
E essas lembranças transfiguradas
pela arte, pela sensibilidade de poeta (a escritora Mariana Marques, na
“orelha” de seu primeiro livro, bem afirma que “Manuel é um poeta que narra”) e
– principalmente – pela saudade são o que de melhor nos apresenta esse cearense
por adoção (o que, devido a essa opção própria, torna mais importante sua
cearensidade).
Quem vê esse “gigante gentil”
desfilando desengonçadamente por nossas ruas não imagina as tantas aventuras
que ele já viveu, desde o bairro natal Chão de Papel, em Bissau (capital da
Guiné-Bissau), passando pelas guerrilhas de libertação de Angola (ganhos e
perdas de amores e amigos, de vitórias e decepções) até chegar finalmente em
terras brasileiras (e precisamente em “terras alencarinas”, quando antes de
Fortaleza ele “perambulou” pelo núcleo progressista do saudoso Dom Fragoso: a
Crateús das Ligas Camponesas e da Educação Eclesial de Base, durante a
famigerada Ditadura Militar implantada no Brasil em 1964).
Neste novo A Lança de Nzambi é como se ele continuasse a nos contar sua vida
(e por extensão a de todos os que conviveram com ele), a descrever suas viagens
interiores e exteriores; como se apenas perseverasse em seguir as intuitivas
sugestões de seu pai, que (parecendo adivinhar que seria ele afinal quem
contaria as aventuras da família) lhe deu na infância uma “Caneta Parker 21,
preta com tampa dourada, mais 100 folhas de papel almaço pautado”.
Mas se no livro de estreia
Casqueiro já alternava suas reminiscências públicas (sobressaindo-se estas,
porém) com as privadas, neste novo volume de narrativas, as lembranças de
criança e de adulto se condensam, se misturam, assim como o cotidiano atual se
entrelaça com o poço fundo de suas tão saudosas recordações. E essas “memórias
sonhadas” trazem ainda o tempero – o sabor meio estranho – de certas expressões
das ex-colônias portuguesas da África, dessa mistura também tão nossa, que
fomos igualmente fruto de diversas combinações genéticas, culturais...
O estilo sóbrio de contos de
fadas parece ter sido corretamente escolhido pelo autor, como se ele tivesse
buscado certo “tom neutro” que combinasse com seu jeito manso, simpático e
discreto de viver sua vida de exilado saudoso – que, através de sua arte do bem
contar (como os ancestrais narradores de velhas fábulas ao redor das
fogueiras), vai nos encantando a cada página. E o que é mais louvável para um
escritor: deixa ao final da leitura uma sensação de insaciedade, um desejo de
quero mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário