sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Resenha de Nilto Maciel para "Contos de Ir Embora", de Natercia Rocha (EDR)


Como definir “livros essenciais (canônicos)”? Seriam obras ilimitadas ou sem limites? Crescem (fortuna crítica) muito além da maioria. Não sabemos se atingirão a eternidade.
Ora, se, ao menos, imaginássemos o tempo de duração dela, não estaríamos a discutir o sexo dos anjos. Então, qual o significado de obra ilimitada? Como acontece o desenvolvimento ou o crescimento de cada uma delas? Por estudos críticos ou analíticos. Primeiro surge o prefácio, seguem-se artigos, resenhas, comentários resumidos. No estágio seguinte, se aprontam dissertações acadêmicas, teses de mestrado e doutorado, ensaios. Iracema, de José de Alencar, se compunha originalmente de pouco mais de 20 mil palavras. Quantos milhares de vocábulos a respeito dela foram escritos?
O primeiro volume de peças ficcionais de Natercia Rocha não abriga o mesmo número de palavras de Iracema. Além disso, guarda perto de 150 anos de distância do romance de Alencar. Constitui-se de seis relatos concisos ou de tamanho médio. E este (prefácio) é o primeiro apenso dele, o primeiro apêndice, o primeiro “pedaço” enxertado após sua criação. Tomarei todo cuidado para não tornar evidente minha fome de comentarista. Nada de roubar os aplausos devidos à autora. Sou apenas o apresentador.
Não sei se Contos de ir embora se tornará “livro essencial”. Ou se o julgarão um dos mais importantes compêndios de ficção curta publicados no Ceará, em 2013. Ou no início do século XXI. Certamente não conseguirá fortuna tão grande quanto Iracema.
Deixando de lado tantas divagações, cheguemos ao nosso objetivo. Comecemos pelo título geral. Por que “contos de ir embora”? Na verdade, toda estória é de chegar. Ou de não continuar. Até os “eternos” e universais “e foram felizes para sempre” se limitam a ficar. O “ser feliz para sempre” consiste em alcançar a felicidade, o paraíso etc, e nele ficar. Também os dramas de Natercia não indicam o “ir embora”. Quiçá queiram dizer solidão. Ou chegar e ficar. Permanecer como antes. Em “O Retrato”, a protagonista se exibe ao leitor com os “cotovelos escorados na meia-porta, pé direito apoiado no joelho oposto”, sozinha na casa de taipa, a ruminar seu passado. O epílogo é assim: “E ela ficava (grifo meu) ali, escorando no joelho ora um pé, ora outro, esperando (grifo meu) chegar um novo dia” (...).
O mais relevante exemplo desse “ficar” (na solidão) quem sabe seja “Rua Bovary, s/n”. Expliquemos ao leitor menos experiente: a escritora cearense quis lembrar Emma Bovary, a personagem “solitária” (no casamento) e sofrida de Madame Bovary, de Gustave Flaubert. A protagonista de Natercia Rocha fala ou escreve a seu ex-marido. Relembra os antecedentes da separação, sem se afastar do seu presente: (“Hoje, quando olho para trás, penso”...), e termina também no tempo atual (dela, na narração): “Mudei de cidade, de ares, de trabalho e conquistei novamente minha rotina. (...) Mas agora vou à praia, sozinha (solidão, grifo meu), claro, certa de que não preciso da alegria ou felicidade inventada por alguém, para camuflar o labirinto de solidão (grifo meu) que compartilhamos nessa vida”.
Não quero fazer o papel do radical e, muito menos, do teimoso, aquele que finca pé numa opinião, seja ela interessante ou banal, e não arreda um milímetro. Sim, reconheço também o “ir embora” da autora. Se Maria das Dores (de “O Retrato”) não foi embora; o outro, o fotógrafo José Maria da Paixão ou apenas Zé Paixão (seu possível amado, o sonhado, o desejado, o esperado) desapareceu para sempre. Não voltou sequer para entregar a encomenda (a foto de Dasdô). Mandou por “gente da vila”, uns três meses depois. “Zé Paixão nunca mais voltou, nem para buscar a outra parte do pagamento, conforme combinado” com o pai da moça.
Em “Os olhos de Elizabete”, o outro (padre Pedro) também vai embora. Não da cidade ou da região onde viviam. Terá sido apenas da vida dela? Há, porém, nesse papiro, um “quê de mistério” (desculpem o uso de expressão tão gasta). A história se inicia com a protagonista (e assim vai até as proximidades do desfecho) e termina apenas com o padre, como se ela, a moça, tivesse ido embora, desaparecido, sumido.
“O Caminho do Meio ou O Meio do Caminho” é a short story na qual mais se evidencia o tema da partida ou do ir embora. O próprio título sugere viagem. Na verdade, se dá, literalmente, a grande viagem do protagonista ou do narrador, saído do sertão do Ceará no rumo do Norte do Brasil, em busca de emprego e de vida menos sofrida: “decidi arriscar a sorte pras banda do norte, nas frente de borracha, trabalhar no seringal”.
A ficcionista conhece bem o sertão, a pequena cidade do interior e também a metrópole. Se não conhece (posso estar enganado), terá reproduzido (como o lambe-lambe de “O Retrato”), com muita fidelidade, esses três modelos de mundo. O sertão se revela nesse drama, bem como em “O Caminho do Meio”. A cidadezinha está presente, com todas as tintas (modo de vida, tipos humanos, comportamento etc), sobretudo em “O Caminho do Meio” e “Eta Vida Besta”. A cidade grande é perceptível em “Os Olhos de Elizabete”, “Rua Bovary, s/n” e, furtivamente, em “O Diário de Alina Reyes”. 
Natercia Rocha apresenta extenso leque de linguagens: da matuta à erudita ou consentânea à norma culta, segura ao se aproximar do coloquial sem gíria ou modismo. Leem-se dezenas de vocábulos ou expressões próprias do povo nordestino, alguns grafados de acordo com a pronúncia: “se achegue, homi, desapei, saia desse sol”; “empapado de farinha”; “lambedô com agrião, cambucá e mastruço”; “parede nua de reboco”; “pé na taipa, embalando a tipoia”; “piada de gente” (apinhada ou repleta, cheia); “magovéi da peste” (magro velho: mirrado, desnutrido) etc.
Noutra direção, a contista ostenta intimidade com novas ou modernas técnicas narrativas, sempre a fugir do narrativo-descritivo linear e outros expedientes há muito desprezados pelos criadores mais apegados ao renovamento dos métodos. Assim, em “O Diário de Alina Reyes”, o escrito da protagonista (primeira pessoa) está reproduzido literalmente, com três breves intervenções do expositor dos fatos (jornalista?), não identificado.
Em “O Retrato” – um dos trechos mais belos do conjunto – observamos a circularidade da narração: num primeiro momento, Maria das Dores aparece, solitária, à porta do casebre, a olhar para a estrada. O demiurgo descreve o ambiente (a casa) – o espaço onde “vemos” a protagonista – e, concomitantemente, descreve, em flashback, a visita do fotógrafo, a morte do pai dela e outros acontecimentos. No remate, a moça “reaparece” na mesma posição e no mesmo lugar (como se estivesse todo o tempo, do início ao fim da narrativa, a pensar ou rememorar sua história quase sem enredo, de tão enfadonha e tão “parada”).
Enquanto as duas primeiras estórias estão na terceira pessoa, “O Caminho do Meio ou O Meio do Caminho” é contado pelo protagonista, o jovem sertanejo sem nome explícito. E, por este motivo, a linguagem é a do matuto analfabeto. Também na primeira pessoa foi redigido “Eta vida besta”. Não mais caboclo sem escolaridade, porém homem do interior, a lembrar fatos ocorridos em sua infância, sendo ele apenas testemunha. Em alguns trechos, o leitor se depara com expressões do dialeto do Nordeste brasileiro. É outra composição de alto nível.
“Rua Bovary, s/n” sai da boca de mulher, sem nome expresso – infere-se da leitura do segundo parágrafo: “e eu, mãos nos bolsos, quase sufocada”. Não há relatório de fatos. Só um ou outro movimento corriqueiro: “abri a porta da frente”, “vi os plátanos” etc. Trata-se de pintura essencialmente introspectiva, de agudo efeito descritivo (o leitor se sentirá como diante de uma fita de Bergman ou de um quadro impressionista): “vi as folhas avermelhadas dos plátanos no caminho, em formato de coração, e tive que pisá-las levemente, até chegar à saída de casa”. 
Exauri-me. Além disso, o leitor certamente detesta lengalenga de leitor metido a crítico. Vamos, então, às seis peças dessa escritora cearense com jeito de narradora essencial.

Fortaleza, 12/14 de outubro de 2013
Nilto Maciel
(a título de apresentação da obra)

SERVIÇO
Visite a Livraria Virtual das Edições Demócrito Rocha: www.livraria.fdr.com.br
Contos de Ir Embora, de Natercia Rocha
1ª Edição
Nº de páginas: 96
ISBN: 9788575296196
Formato: 15 x 10,5
Peso: 0.450 Kg
Acabamento: Brochura

Investimento: R$ 20,00

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Rádio AlmanaCULTURA: "Volte para Mim", de Monique Kessous





Não me deixe
Não me esqueça assim
Não vá sem antes me ouvir falar
Olhe nos meus olhos
Veja bem
Ninguém tem culpa do que aconteceu
Você sabe muito bem
Que no fundo eu só preciso ter o seu amor
Nos teus braços me atirar e o céu mudar de cor
Acho que eu nunca amei ninguém assim
Como eu amo você

Diga que me quer
Volte para mim
Dê mais uma chance pra nós dois
Pense outra vez
Esqueça o depois
Faça o que quiser

Mas diga que sim

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Resenha-Lançamento "Os escritores que eu matei", de Marco Severo, por Raymundo Netto (26.2)


Os escritores que eu matei, de Marco Severo, é um livro envelopado e endereçado para leitores, de preferência, os habituais, aficionados pelo exercício saudável de debruçar sobre palavras, inseparáveis de suas prateleiras, vagueadores de livrarias, enfim, gente interessante, com quem vale a pena tomar um café e dividir nosso tempo ou uma tapioca.
Como Severo nos diz, também sou atraído por títulos – embora como editor saiba o quanto pode vender uma bela capa –, e o dele é muito instigante, quase fatal. Pensei, a princípio, tratar-se de resenhas de obras por ele tecidas. Não são. Isso, não nego, me rendeu uma boa surpresa.
A obra traz 23 textos versando sobre temas e provocações comuns e recorrentes ao leitor contumaz [se você não souber o que significa isso, provavelmente deverá se esforçar para ler mais], como a questão de ler ou não best-sellers, a leitura de clássicos, a idade certa para ler isso ou aquilo, os autores de uma obra só, o que atrai o leitor, os escritores midiáticos, o que faz um autor ou livro ter destaque e outro não, se devemos (ou se é possível) separar o autor de sua obra, a organização de prateleiras, que livro tememos, se devemos ou não emprestar livros (sugere inclusive uma metodologia de fundo de armário...), o que devemos e podemos ler antes de morrer (ou o que é melhor esquecer), leituras da infância, o que levaria para uma ilha deserta (no caso de títulos, claro) etc. e coisa e tal, além da “fofoca” literária, aquelas informações minimalistas da vida íntima e idiossincrasias desses seres (artistas) tão queridos e imortais.
Severo é um obsessivo, tanto, que nos assegura ser nos, espero longínquos, estertores finais de vida o seu último pedido: mais livros! Para quê? Ora, desde criança, e com mais vigor na adolescência, descobriu a sua paixão pela leitura. Deve ter sido muito criticado, muito zoado, como geralmente são aqueles que ousam se encostar num canto de parede para ler e viver livros. Um hábito estranho, merecedor de títulos dos mais impopulares nos tempos meus, assim como nos dele e até hoje: CDF, bitolado, alienado, crânio, geninho, nerd dentre outros. Quem mandou querer ser diferente?!
Longe de concordar com tudo que ele estampa no livro – o que a democracia e a diversidade permitem e exigem, embora não o perdoe por escrachar meus cânones soniais –, a obra faz pensar, seu maior mérito, provoca uma reflexão sobre o nosso modo de nos encontrarmos nesse mundo literário, não apenas no que diz respeito a leitura, mas também a nossa relação com o suporte livro e a própria literatura que nos rodeia.
De leitura fluente, na voz de crônica, e por vezes divertida (quando não estiver troçando com você), Severo vai aparecendo, se revelando, abrindo seu catálogo de memórias, o repertório de vida inteira, assim como nós o fazemos, enquanto leitores dele, num diálogo silencioso – mesmo quando em nossa cabeça estamos berrando: “Está maluco, Severo? Esse cara é tudo de bom!” – e, o melhor, que não precisa ter fim quando cruzamos a última página.
Só peço ao autor: por favor, não me envie cartas! Ele saberá o porquê, e você também, se adquirir o livro.

Serviço
Os escritores que eu matei, de Marco Severo
Editora: Substânsia
Lançamento: 26 de fevereiro (quinta-feira), às 19h
Local: Biblioteca da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Prédio anexo – 4º andar: Rua Barbosa de Freitas/Av. Pontes Vieira)
Preço: R$ 30,00

Livraria Virtual: http://www.editorasubstansia.com.br/#!loja/ccz3

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Seleção Turma 2015 Oficina de Quadrinhos da UFC (VAGAS LIMITADAS) - 19 de fev a 25 de fev


Estão abertas as inscrições para a seleção da turma 2015 da Oficina de Quadrinhos da UFC! Se você tem a partir de 16 anos e curte quadrinhos, junte-se ao projeto de extensão mais bacanudo das galáxias!
As pré-inscrições começam hoje, 19/02 e terminam às 23h59 do dia 25 de fevereiro. Os 200 primeiros pré-inscritos dentro da faixa etária estabelecida estarão credenciados para a prova de seleção, que acontecerá no dia 28 de fevereiro, às 9h da manhã, em local a ser divulgado na fanpage da Oficina: https://www.facebook.com/oficinadequadrinhos?fref=photo.
Da prova, serão selecionados os 30 oficineiros de 2015, que participarão das aulas durante todo o ano, sempre aos sábados pela manhã.
A Oficina avisa que não é preciso saber desenhar para poder participar. Você sabe contar boas histórias? Então tem as mesmas chances que qualquer outra pessoa. Muitos participantes se especializam em roteirização e colorização.
Os quadrinhos a serem desenvolvidos ficam a gosto do aluno: mangá, comic, tiras, fotonovelas. 
mundo dos quadrinhos é rico e todas as escolhas são bem-vindas.
A taxa de inscrição é apenas R$ 1,00 (um real). 
Dúvidas?
Confira as Perguntas Frequentes: http://goo.gl/Uwslbu 
Formulário de Inscrição: http://goo.gl/forms/qEJk3xja9B

Se liga, Brasil!

"Adauto Araújo, Centenário", por Audifax Rios para O POVO


Audifax Rios, colunista e artista plástico

O menino, já taludo, havia de continuar os estudos fora da sua cidadezinha e fez fincapé. Adorava caçar passarinhos nas cercanias, pescar piabas e tomar banho no rio Acaraú. O saudável convívio com os companheiros era a marca da liberdade e não queria abdicar daquela vidinha maravilhosa. Porém era preciso buscar o saber, aprender uma profissão, então o único jeito foi amarrar o traquinas Adauto no lombo de um burro que durante sete dias e sete noites percorreu tortuosos caminhos entre Santana e Fortaleza, onde já se encontrava o mano Cláudio. Era o ano de 1924 e Joaquim Adauto Araújo, a graça completa, contava, então, nove anos de idade, posto que nascera na seca do quinze, no dia três de agosto.
O pai tinha posses, podia educar os filhos em bons colégios, assim Adauto foi matriculado no Cearense dirigido pelos irmãos maristas franceses e lá conviveu com Thomaz Aragão, Murilo Borges, Augusto Carneiro, Aurélio Mota, Ernesto Valente e outros que, como ele, mais tarde se destacaram em suas atividades. O pai, como ia dizendo, agropecuarista e industrial, era prefeito de Santana do Acaraú, respeitado cidadão João Alfredo Araújo, mais conhecido por Coronel Joca Marques ou Fanico herdado do pai. Ou simplesmente Seu Joca da estirpe dos Araújo e Marques, casado com Eutália dos Rios, Carneiro e Frota, todos povoadores da ribeira.
Seis anos interno no casarão da Duque de Caxias, hora de partir para o Rio de Janeiro, cursar medicina como queria o sensato Joca que sentenciara definitivo: “Se for pra ser médico, pago os estudos”. Em Ouro Preto já estava Cláudio, cursando engenharia. Embarcou num paquete que demorou no Recife por conta de greve dos portuários, o que foi definitivo para a vida do jovem Adauto, então com dezessete anos. É que estendera a mão para uma cigana na beira do cais que lera nas linhas misteriosas a sina: “Você terá muitas brigas na justiça e vencerá todas”. O vaticínio o perseguiu pelo resto da vida.
Demorou seis anos na “Cidade Maravilhosa” entre estudos na Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual e os antros de perdição da Lapa onde morava; entre o fuzuê boêmio e os protestos estudantis contra a ditadura Vargas. Amigos, os colegas Guarany Mont’Alverne, Arimateia Monte, Thomaz Aragão... os mais chegados, cearenses, sobralenses. Companheiros de Noel Rosa nos bancos escolares e nas mesas dos bares.
Canudo na mão, o destino era voltar para o Ceará. O consultório custou ao velho Joca a razão de vinte e cinco contos de réis e depois de um estágio em Fortaleza estabeleceu-se definitivamente em Sobral como ginecologista e obstetra. Aparando filhos das distintas damas da sociedade como pobres mulheres do povo. Durante vinte anos, de 1938 à seca do cinquenta e oito. Nesse interim casou (1940) com Ivone Frota, união que lhe deu treze filhos, nove homens e quatro mulheres.
O rebanho vacum se tornara bem maior, assim como as imensas léguas de terra. O famoso doutor Adauto se transformara num agropecuarista bem sucedido e partiu, com os irmãos Walter e Cláudio, para a instalação de uma usina de beneficiamento do seu próprio algodão.
Agora entra o vaticínio da cigana do cais do Recife. Mais parecendo advogado que médico, Adauto Araújo vivia às voltas com questões de terras, indispondo-se com a parentela, sobraçando processos e mais processos e, de sobra, desferindo desaforos e estampidos de armas de fogo. O mundo do respeitado esculápio agora era a imensidão dos eitos da Bahia, Raposa, Pitombeira, Andreza, Paraná, Água Branca... espalhados pelos municípios de Santana do Acaraú, Forquilha, Santa Quitéria e alhures.
E ao mesmo tempo em que folheava os calhamaços das pendências judiciais frequentava a Academia Sobralense de Estudos e Letras onde ocupava a cadeira no. 1, ao lado de Dom Expedito Lopes (ainda padre), Ribeiro Ramos, Clodoveu Arruda, Tancredo Halley, Paulo Aragão, Gil de Carvalho e outros.
E a cultura persegue ainda a trajetória de Adauto Araújo, a antiga fábrica cedeu espaço para uma escola de artes e ofícios planejada pelo saudoso Augusto Pontes, olhando para o rio Acaraú, o mesmo onde brincava na infância. E o filho Régis Frota Araújo, cineasta e professor universitário, ocupa atualmente uma cadeira na dita ASEL. Régis, autor da biografia do pai que comemora seu centenário em agosto deste ano. Enquanto os pássaros ainda sobrevoam o Rio das Garças onde nadam eternas piabas e caribodós.

"O cinza, a Grécia e o colorido bestial do Brasil", por João Soares Neto


 “Para se saber como um povo está sendo governado,
conheça a sua música”. (Confúcio) 

Passei os dias do carnaval meio hibernando. Saí apenas para confirmar o que já intuíra em face dos comentários lidos em várias origens. O filme Cinquenta tons de cinza é fraco. Tal como o livro que não li, deve interessar apenas aos que ainda não percorreram as estradas da vida, da leitura e da filmografia.  Parece meio inverossímil que a autora E. L. James tenha conseguido vender um milhão de exemplares. A propaganda, repetida, pode fazer milagres, especialmente quando escudada no conjunto de mídias que cria o “desejo” de ver o diferente e o “proibido”. O que se salva é a fotografia, esforço estético da diretora Sam Taylor-Wood.
Como esperado, a maioria do público era jovem, especialmente mocinhas, pois a indicação permite aos maiores de 16 anos “desvendar” as tendências sado do personagem central. Até nisso houve esperteza na classificação. Por outro lado, a personagem feminina, jovem semiliberada, ainda virgem é filha de mãe vaidosa. Já no quarto casamento, a mãe reside longe e dá breves telefonemas de ofício, sem afeto.
A personagem mora com uma colega mais “escolada” e, como é natural pelos hormônios latentes, cai no conto de fadas do jovem empresário rico, bem apessoado, enigmático, misógino, cercado de secretárias sensuais e com fissura psicanalítica. Foi  adotado aos quatro anos.
Gastei duzentas palavras com a baboseira acima e disserto agora sobre a velha/nova Grécia e o seu atual governo populista/socialista, apoiado por partido de direita. A Ática patina na sua cor simbólica azul em face de corrupção endêmica que permeia a máquina burocrática e a (in) decisão de ouvir e seguir as regras impostas pelo centralismo europeu.
Angela Merkel, sem nunca sorrir, comanda processo de austeridade que ou redime ou fará sucumbir a ideia da Comunidade Europeia que dita normas e afasta os tentáculos de um Putin sedento por anexações – a Ucrânia seria apenas o começo – para fazer renascer a mãe Rússia, cheia de problemas estruturais, mas motivada pelo voluntarismo de seu dirigente.
Aqui no Brasil, tão surreal que se deixa parar por dias, embalado pelos grandes e críticos bonecos das ruas de Olinda e pela cadência dos seus maracatus. Bem diferentes do langor que o cantor e animador Pingo de Fortaleza e o pintor/antropólogo Descartes Gadelha, tentam, como salva-vidas que são, manter abertos no curto circuito da avenida Domingos Olímpio.  A dita  avenida  é esnobada pela maior parte da juventude,  das famílias e dos turistas que se espraiam nas areias quentes de todo o litoral cearense, do Icapuí a Camocim, onde o mar é refrescado pelo rio Coreaú.
Mas há, sobretudo, a atração industriada pela “baianidade” repetida, nos tons altos dos seus trios elétricos que atraem a muitos. “Só não vai quem já morreu”. Carlinhos Brown, Gilberto Gil, Ivete Sangalo e, “last but not least”, Cláudia Leite e Daniela  Mercury dão as cartas, recauchutam suas faces, suas pernas, cantam e pulam para assegurar que estarão de volta no próximo Carnaval.
No Rio, a convivência entre sambistas de verdade, contraventores disfarçados – que dominam a maioria das pacificadas escolas de todos os grupos –, artistas querendo aparecer, turistas/pagantes que se fantasiam, patrocinadores de camarotes e políticos desavisados fazem a festa pela madrugada. Tudo sob o controle do tempo hegemônico da vênus platinada a determinar horários.
 A área de concentração se transforma em “xixizódromo” coletivo, até que o relógio oficial determine o início do desfile cronometrado no estuário sambódromo da Marquês de Sapucaí. Ressalte-se, em nome do vero Rio, que resistem com forças e desorganizações calculadas, os blocos/cordões diurnos de ruas e de bairros, com o seu humor carioca em nova fase, cáustico com os políticos, desde os tempos de Pereira Passos, Vargas e, agora, certamente, contemplando os referidos nas quizilas em curso.
São Paulo, em meio à “crise hídrica”, apelido de falta d’água, reverbera seu poder com um também sambódromo e múltiplas escolas, por absoluta falta de imaginação, e mostra que por lá existe samba no pé e gente que, por duas vezes, dá mais de dois milhões de votos ao Tiririca. E, assim, paro por aqui e me recolho na platitude desta terra em que se plantando tudo dá. E como dá.


sábado, 21 de fevereiro de 2015

"Negada Solidão", de Raymundo Netto para O POVO (21.2)


A solidão é o retiro em si mesmo. O monólogo diante da plateia vazia. A arena devoradora de leões. A nascente da criação. A inspiração de capela. A sugestão da palavra contida. A cortina cerrada na janela. O soluço de medo. O piscar do olho. A luz das estrelas quando do nascer do sol.
Muitos não se permitem a companhia da solidão. Tentam se lhe escapar, entretidas em birôs abarrotados de trabalho ou em risonhas mesas de bar, nas constantes reuniões de grupos, na conexão ininterrupta das mídias e redes sociais, cercados de amigos eletrônicos que, como nuvens e sonhos, os deixam no primeiro soprar de vento. Entretanto, inconscientes, aproximam-se cada vez mais dela, só que de mãos vazias, sem nada lhe oferecer. A solidão exige completude, dedicação e, acima de tudo, verdade!
No exercício da solidão, deve-se permitir o autoabandono, o salto de paraquedas – ou sem ele –, o caminhar doloroso nas brasas de pânico daquilo que desconhecemos ou do que tememos perder ou mudar. É mais fácil lançar as nossas chagas num retrato a óleo de Dorian Gray, do que permitir o mergulho dentro de si, ir além das rugas e acnes, explorar as dobras e depressões íntimas, geralmente escuras e úmidas, aqueles infernos que nos revelam e nos assemelham ao propalado Deus da creação, pois, como espelhos distorcidos, nos amedrontam, nos causam estranhamento diante da máscara ridícula e preenchem de ilusões a nossa vã identidade.
O ser humano é um átomo diante do grande universo. Talvez menos do que isso, se eu tivesse sido melhor aluno de Física, o que não fui, assim como consegui não aprender tudo aquilo que, por um motivo ou por outro – geralmente imposição era o grande motivo – decidi não levar comigo, assim como o xadrez e a datilografia.
Escolhas. A nossa vida é determinada por elas. Nada nos chega que não tenhamos construído (leia-se “escolhido”) ao longo dos anos. Vale responsabilizar-se pelas consequências que atribuímos à má sorte ou àquele(a) criatura que nunca nos deu a mão ou negou o seu amor.
Carregamos nos ombros o entulho dessa má elaborada engenharia. E ele pesa, cega, sufoca e, se nós deixarmos, não nos abandona.
Não raro, por não suportar a si mesmos, os solitários necessitam de lugares com espaço, ar, pouca luz e muitos ruídos. Saem à noite, em fuga do seu espinhoso encontro consigo mesmo, e sentem carência de pessoas, muitas delas. Encostados em paredes, feito espectros algemados em correntes de angústias, não são notados nem ouvidos. Incapazes de pensar ou decidir um futuro – não que precise fazê-lo, pois quem é solitário priva de uma liberdade à beira da indecência –, torna-se um observador a viver a vida do outro, alimentando-se das sobras das alegrias e emoções alheias, em simbiose com esses estranhos comuns, num consortismo antihedonista social.
Noutros dias, a seu redor, apenas os grilos lhe despertam do andar superior dos pensamentos e penosos psiquismos. É quando ouve a canção que diz ser a sua alucinação suportar o dia a dia e o porvir da lembrança do corpo delirado que cai do oitavo andar.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

"SMASH! Falando de Quadrinhos: Quadrinho Nacional”, na Livraria Cultura (20.2)


Clique na imagem para ampliar!

Nesta sexta, 20, acontece mais uma edição do "SMASH!". Desta vez, o debate é sobre os quadrinhos nacionais. O evento, acontece há mais de dois anos na Livraria Cultura, reúne fãs de quadrinhos para discutir e analisar obras, autores, questões sociais de HQs. Desta vez, o assunto abordado será o quadrinho nacional, falando de obras brasileiras dos tempos mais antigos até os mais atuais.
"SMASH! Falando de Quadrinhos: Quadrinho Nacional”
Data e horário: 20 de fevereiro, sexta-feira, às 19h.
Local: Auditório da Livraria Cultura. Av. Dom Luís, 1010.
Evento no Facebook: on.fb.me/1vGJLp3

Entrada gratuita e sorteio de brindes.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

"O Bloco da Literatura Carnaval", um flash-back de AlmanaCULTURA, por Raymundo Netto


Publicado originalmente em O POVO, em março de 2011.

Deu-se o fantástico, o inopinado, o irreal: os escritores, quem o diria, decidiram se unir! É certo que o motivo nem não era tão literário assim. Queriam porque queriam apenas criar um bloco de carnaval, acredita? Pois senta aí, Cláudia. Na busca da visibilidade, da contemporização (égua!) de costumes e da divulgação de uma imagem moderna do escritor perante o seu público (eterno desconhecido), decidiram-no como estratégia de enfrentamento.
Assim, parecia lógico que a sede para um bloco de escritores deveria ser no Benfica. Mas não, não seria. “Como desprezar o salão do Ideal?” “Perasse lá, também se tinha o do Náutico”... “E o Passeio Público, está podre?” “No Raimundo dos Queijos!” “E a cachaça?” “Que cachaça o quê? Uísque, diretamente do Piripiri (latitude 04º16'24")!” “E a gente pode cheirar?” “Só se for o pescoço dos brotinhos.” “Brotinhos? E você quer ser moderno é assim?” Ai, meu são Machado, era a primeira, dentre outras, rusga da categoria. Mas deu-se como se deu: dia marcado, o metro quadrado da pracinha da Gentilândia era tomado por escritores foliões, uns em camisas florais com pescoços rodeados em florezinhas de plástico, outros com máscaras de demônios, ou com as suas bastantes, outros fantasiados de suportes de cerveja e os poetas marginais – e/ou genéricos – em tapas-sexo. Por questão de ordem, a comissão de frente criou os sub-blocos – instaurou-se a custosa desunião oficial –, entre eles: “Os Acadêmicos das Letras” (os poucos a comparecer desfilaram em corsos, com exceção do seu Nunes, cadeira mais cativa do sodalício, que vinha pulando feito um macaco, a xaxadear), “Bloco do AcadeMiado” (composto por para-acadêmicos, ou seja, os agourentos, aqueles que não são acadêmicos, mas anseiam como carniça pela “passagem” de mais um imortal), “Os Parnasianus” (de poetas que vivem no mundo etéreo, embora ocupem muito espaço na Terra), “Um dia eu Publico” (o mais numeroso dos blocos, todos com CDs e pen-drives nas mãos, repletos de obras – nunca com revisão – de qualquer gênero e para qualquer público), “Poetas de Quinta” (turma que se dá melhor em cadeiras do que caminhando, à frente um carnavalesco de meia-tigela), “Não me AFELCE Não...” (das mulheres escritoras, em perucas com “anteninhas” e óculos coloridos), “Anjos do Augusto” (de poetas que não são homens, nem mulheres, muito menos gays... se dizem “indiferentes”), “CordeLisos” (bloco dos cordelistas que, sem dúvida, aproveitaram para vender folhetos), “Hoje eu me LIVRO!” (de gente que se diz escritor, mas não escreve e vive metendo pau em quem o faz), além de outros que, por si só, já vivem em carnaval, como o “Poesia é o Escambau!”, “Bloco dos Pindaíbas” e os “Clubeanos do Bode” (tinha o estandarte mais bonito, criação do Au Rios), enfim, era gente de dar pau em doido, em pleno Sanatório Geral.
Arrumação feita, começou o desfile. Era uma ruma de gente estranha pulando, como se em câmera lenta – os modernos dizem slow motion –, com passinhos curtos e dedinhos apontando ao firmamento, em gangorra, com saquinhos de confetes coloridos, a rebolar serpentinas e sorrisinhos e a se divertir, no dizer do Eça, a valer! Porém, bodega aberta, a turma partia para o reabastecimento – e foi nessa que perdemos de vista o corso dos imortais, cujo paradeiro só se saberá, quiçá, na quarta-feira de Cinzas. Alguns mais animados ensaiavam cantadecos às estudantezinhas, umas gracinhas, a iludi-las de sua posição intelectual. Mas o escritor, coitado, traz de berço a maldição: a mocinha que se dá com desenvoltura e frequência a outrem, com ele, entretanto, só casando, ao que responde: “Eu não, posso não, quero não, minha mulher não deixa, não, quero não, posso não...”
A charanga soprava animadas marchinhas de carnaval tentando salvar o pouco do que restou do esvaziado cordão – em menos de dois quarteirões, parece ficção! –, quando a polícia baixou e recolheu tudo, pois, logo ali, os nossos marginais, agora com carteirinha, urinavam, lombravamente, na estátua do escandalizado dr. Zamenhof1
Kompatinda!

(1) Ludwik Zamenhof (1859-1917), o criador do Esperanto, a dita “língua universal”, cujo busto encontra-se mais perdido do que cego em tiroteio na pracinha enlouquecida  da Gentilândia.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

"Livros sem capa procuram leitores apaixonados para relacionamento sério", pela LeYa


Sabia que a capa de um livro pesa, pelo menos, 60% no seu processo de decisão para o escolher? E quanto pesa a aparência física na escolha de um grande amor? Não sabemos, mas afiançamos que, tal como as ilustrações das capas, esteja claramente sobrestimada.
E se as capas não existissem? Como escolheríamos os livros e as histórias pelas quais nos apaixonamos? É este o mote da ação do Dia dos Namorados nos centro comerciais Alegro Alfragide e Alegro Setúbal promovidos com o apoio da LeYa e da Fnac [em Portugal], em plena época de São Valentim, em fevereiro. Durante este período, os dois centros comerciais Alegro vão desafiar os seus visitantes a terem um envolvente blind date, mas com livros. O objetivo é que os visitantes peguem qualquer livro com a capa escondida (todas estarão escondidas) e leiam as primeiras 10 páginas do mesmo, sem julgar a história pela sua capa. A experiência pode ser arrebatadora: histórias nas quais nunca “viajaria” podem, de repente – e livremente – surpreender. Esta experiência pode ser vivida por solteiros, por casais apaixonados, e até na companhia dos elementos menores da família [as crianças, os filhos], que terão à sua disposição um cantinho de leitura infantil e atividades aos fins de semana.
A ação envolve mais de 1.000 livros, impacientemente anônimos e a postos para saltarem das prateleiras para as mãos dos leitores. Haverá, ainda, mensagens perdidas no interior dos livros, oferta de marcadores personalizados com fotografias tiradas no momento, cartões oferta Alegro no valor de 10 euros e, claro, promoções imperdíveis nos livros escolhidos para um relacionamento sério.

P.S. os amores literários que já não tenham lugar no coração e na casa do leitor, poderão ser doados no próprio espaço para serem entregues a duas instituições locais.

Fonte: http://www.leya.com/pt/noticias/livros-sem-capa-procuram-leitores-apaixonados-para-relacionamento-serio/

sábado, 7 de fevereiro de 2015

"Os 100 anos de Zé Guajá", crônica de Raymundo Netto para O POVO


6 e meia. O Sol, espalhando o lume no breu, faz gemer o penoso cantar de galo. Um motor saracoteia a manhã. Levanto da rede fria de sereno, piso no vermelho xadrez e procuro lançar preguiças à areia branca da levada.
Na frente da casa grande, onde a piçarra redemunha, chego empunhando o café de caneca, sento na balança de ferro, ao lado do balcão do “mercadinho Freitas”, onde se debruça, todos os dias, aquele homem em botões de peito aberto, de face redonda, bigode ralo e olhos úmidos, penteando os fios negros de cabelo para trás, ou a tamborilar um xote do Gonzagão, na rádio Cultura do Paracuru.
Como se fora o apito de trem, as memórias do menino de seu Neco e dona Naninha despertam: “Eu ainda estou por aqui, não estou?”
José Rodrigues de Freitas, o Zé Guajá – apelido que recebeu devido ao tom avermelhado da pele, similar à cor do caranguejo –, traz nos ombros, em 2015, o peso leve de Centenário.
Catando uma manga caída naquela hora, lembrou-se do tempo de criança, destocando e preparando a roça na fazenda Santa Rosa, do seu Quinca. Aprendera a ler na “Carta do ABC”, sob o amor da mãe-professora-parteira. Quando rapaz, além de dançarino de latadas – arriscou um arrasto na chinelinha –, corredor e valente campeador de reses perdidas, descobriram que era negociante dos bons, quando juntou um casal de jumentos, uma vaca, um bezerro e, num troca-troca sem gastar nenhunzinho, acabou comprando terreno para a família morar. Mas o Zé, inquieto e namorador que era danado, pediu ao Jaime para fazer um terno bonito, pois ia arredar pé, sem tutu mas cheio de esperanças, para Fortaleza. Mas veja como se dão as coisas: justamente por conta da demora na feição desse bendito terno, acabou se tornando sócio de um comerciante da região, o Zeca Batista, e, mais importante, pouco depois, ganhou na maior sorte o coração de sinhazinha Maura Braúna, moça querida e filha de dono de terra. Onde é que o Zé podia imaginar um troço desses? Aninharam-se em uma casinha-mercearia – que infelizmente nem existe mais – e, com o tempo, a família: Maurício, Fátima, Fatimy, José Nato e Lúcio – Sérvulo viria mais tarde, no colo redobrado de Maura.
O Zé estacou um pouco seu lembrançar para atender um molequinho na compra do litro de farinha e de goma, levando, de quebra, um pirulito. Abotoou a camisa, colheu as moedinhas entre dedos nodosos, anotou qualquer coisa num caderno e, despachado o freguês, continuou:
De primeiro, as idas e vindas a cavalo e em trem para comprar mantimentos em Fortaleza, que só chegariam no comboio; o surto de varíola em 47, quando decidiu ir sozinho à capital buscar ajuda e voltou carregado de vacinas e com a missão de ele mesmo aplicá-las na comunidade; da ida para Fortaleza com a família para os filhos estudarem – moraram num Antônio Bezerra sem calçamento e sem luz elétrica e, na seca de 58, também sem água, sendo socorridos pelos vizinhos Libero e Carmelita, que tinham um cacimbão abençoado, o único que não secava nunca; a rotina em sua mercearia e a lida da Maura com os afazeres do lar e costurando para complementar a renda da casa; da volta ao Paracuru, convidado a ingressar na política, como vereador, relutando no início, mas cedendo depois e sendo eleito duas vezes; a luta para levar energia, construir estradas, grupos escolares e postos de saúde – aliás, a sua casa fazia as vezes de posto de saúde, no qual dona Maura cedia até a sua cama para que as mulheres pudessem ser atendidas pelo ginecologista: “Ô mulher danada essa minha Maura!”
Lembrou-se da primeira vez, lembrou-se de sua vez e lembrou-se daquela derradeira. Disfarçou em lenço uma apertura, pois “para quem ama, a ausência é a mais fiel das presenças”
Mas afinal, são 100 anos, e ele diz: “Tem até tataranetos!”. Como se orgulha o seu Zé. Cruzando a bagaceira, volta-se para o velho engenho, atirando na lata garapa boa, ordenando o ponteiro, empurrando castanhas com o caxeador, saboreando o doce da vida, “o visgo que aqui o prendeu”, contando histórias de saudade para a “guajazada” que o ama, o admira e o chama ternamente de “vô”. Parabéns, meu amigo Zé Guajá.


O Mercadinho Freitas e a "casa grande" do Jardim


A escola municipal construída por incentivo do vereador José Rodrigues de Freitas
(com doação do seu terreno), no Jardim, distrito do Paracuru.


D. Maura Braúna, esposa de Zé Guajá,
que hoje empresta o nome para o Posto de Saúde em Jardim.


O engenho do seu Zé, do mesmo jeitinho que eram
os engenhos há cem anos (com exceção do motor, é claro...)


José Rodrigues de Freitas, vulgo Zé Guajá,
quando presidente da Câmara de Vereadores do Paracuru.


Zé Guajá no batente, auxiliado pelas bisnetas Luana Rachel, Liana Rebeca e Sophia Dádiva.


Talvez o único registro de uma costumeira e demorosa conversa de balcão minha com o seu Zé, 
prato cheio na vida de qualquer cronista.