segunda-feira, 3 de novembro de 2014

"Diário de Bordo: O Passeio Público do Rio de Janeiro", por Raymundo Netto

Frontispício do Passeio Público

"Quando estiverdes de bom humor e numa excelente disposição de espírito, aproveitai uma dessas belas tardes de verão como tem feito nos últimos dias, e ide passar algumas horas no Passeio Público, onde ao menos gozareis a sombra das árvores e um ar puro e fresco, e estareis livres da poeira e do incômodo rodar dos ônibus e das carroças.
Talvez que, contemplando aquelas velhas e toscas alamedas com suas grades quebradas e suas árvores mirradas e carcomidas, e vendo o descuido e a negligência que reina em tudo isto, vos acudam ao espírito as mesmas reflexões que me assaltaram a mim e a um amigo meu, que há cerca de um ano teve a habilidade de transformar em uma semana uma tarde no Passeio público."

Foi ouvindo a voz do conterrâneo José de Alencar (Ao Correr da Pena, Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 1855), ecoada numa memória distante de minha juventude, é que flanei, a "tomar fresco", como bom francês que não sou, pelos caminhos possíveis do Passeio Público carioca.
Desci ali, a caminho da Cinelândia, por engano. O reconheci, então, no meio das ruas turbinadas, próximo a uma grande estátua de Mahatma Gandhi, e perguntei a quatro ou cinco pessoas: "É o Passeio Público?" As pessoas olhavam umas para outras, davam de ombros, diziam que era uma praça, sabiam lá o que era isso de Passeio Público...
Mas era, era sim, o Passeio, conforme alguns, "o primeiro parque público das Américas" (século XVIII), localizado onde era a antiga e aterrada Lagoa do Boqueirão da Ajuda, e um dos locais preferidos do Alencar, vez ou outra comentado em suas famosas crônicas, onde costumava ir às noites "peripatético", como se dizia , admirar os lampiões à gás e as estrelas por sobre as árvores tão antigas.


Atravessei seu lindo portão, em ferro e estilo rococó, encimado pelo brasão das armas reais e as efígies de Maria I e D. Pedro III, de Portugal.
O projeto do Passeio, construído entre 1779 e 1783 naquele tempo, havia um belvedere/terraço onde se tinha visão para o mar da Baía de Guanabara, que acabou pegando o metrô do aterro sucessivo e escapuliu , coube ao mestre Valentim da Fonseca e Silva que, além de arquiteto era escultor. Em 1864, o imperador D. Pedro II pediu a Auguste Glaziou, paisagista francês, que realizasse uma reforma, o que alterou a paisagem natural, conferindo-lhe um ar romântico de jardim inglês, preservando, entretanto, alguns de seus elementos arquitetônicos originais.
No início do século XX, em 1904, implantaram um aquário público, sob os cuidados do naturalista Alípio de Miranda Ribeiro, que acabou por água abaixo, como parece ser o destino deles mesmo desde sempre.
Nos anos 20, do século XX, havia ali duas casas de espetáculo (e não de jogos, como pode parecer pelas denominações): Theatro Cassino e Cassino Beira-Mar. Na verdade, havia dancing, salões de festa e de chá, apresentações teatrais e, segundo dizem, chegaram a ser cenário de filme. Foram demolidas, ambas, no início dos anos 30. Suas fundações foram reveladas em prospecção arqueológica realizada no local no início do século XXI, sendo recobertas a fim de serem preservadas para o futuro.
Em 2004, uma reforma da Prefeitura, orientada pelo IPHAN, tentou devolver-lhe os aspectos do passado, restaurando alguns passos do mestre Valentim, como o Chafariz dos Jacarés, também chamada de Fonte dos Amores (tanque de cantaria e peças fundidas em bronze pelo mestre, sendo a primeira obra em bronze fundida no Brasil. Estudiosos também afirmam que essa foi a primeira tentativa de nacionalização da arte brasileira, utilizando-se de animais de nossa fauna. O escritor Joaquim Manuel de Macedo diz que até 1806 havia um coqueiro de ferro que presenciou sair dali destruído, e, em 1906, as garças que compunham a fonte foram transferidas para o Memorial Mestre Valentim) e dois obeliscos/pirâmides, em granito, como "agulhas", com medalhões em pedra lioz (onde se lê "À Saudade do Rio" e "Ao Amor do Público"), também destacados na crônica de Alencar: "As árvores ainda estão muito maltratadas; os dois tanques naturais sobre os quais se elevam as duas agulhas de pedra estão tão bem fingidos que são naturais demais; pelo menos, têm lodo e limo como qualquer charneca de pântano. A arte deve imitar a natureza, mas nem tanto. Há também uma palhoça a um dos lados do passeio, que, a não estar ali como coisa exótica, não lhe compreendo a utilidade. Não digo que a deitem abaixo como uma parasita; mas é bom cuidar em fazê-la seguir o destino das coisas velhas e feias."

Ao lado da "Fonte dos Amores"/"Chafariz dos Jacarés"

De cara, fui encontrando velhos conhecidos, Olavo Bilac, Castro Alves, Pedro Américo, Gonçalves Dias, Alberto Nepomuceno e Chiquinha Gonzaga, dentre outros, o que me conferia um alento à caminhada não mais solitária, pintada de pequenos quiosques maltratados, combustores e alamedas belíssimas, um cenário botânico impressionante e uma aura de decadência elegante, por mim, familiar. Conhecia tudo aquilo da voz de Alencar, de Macedo, do Agassiz, do Bentinho (em Dom Casmurro)...  eles faziam parte dessa história e isso era tudo!
Alberto Nepomuceno


Nenhum comentário:

Postar um comentário