O mesmo ventinho avexado que
provocava os redemoinhos da infância naqueles secos meses nos meus cafundós,
volta agora remexendo, não folhas secas, mas sacos plásticos, jornais velhos,
santinhos de políticos e entulhos de construções. Em setembro de 1958, e lá se
vão pra lá de meio século, no auge da seca braba que castigava o Nordeste
brasileiro, o Ná (onde ele mora?) mal acabava de varrer a folharada amarela do
tamarineiro do mercado no chão do Big Bar e o vento teimoso trazia a sujeira de
volta e assim o colega de ginásio mal tinha tempo de cumprir suas obrigações
escolares já que os biritinhas contumazes tomavam-lhe outra parte do precioso
tempo.
Por conta deste destempero
temporal mudei até o foco do ateliê pra dentro da casa, dispensando luz natural
e a fresca da maresia iracemal. É que o teimoso ventinho resolveu construir
seus torvelinhos em minha área de trabalho, assentando a poeira sobre o branco
do papel prestes a registrar a última danação. De sobra, toda sorte de lixo
encantoado pelos vãos das paredes onde já demoravam pedaços de madeira,
caixotes, livros e a reserva do almanaque querido. Vai chegar o dia em que
precisarei usar máscara no nariz e vedar olhos e ouvidos e a obra de arte vai
sair sem sabor nem visibilidade, ouviram bem?
Esta poeira é certamente coisa do
capeta como diziam os mais velhos e sábios, asseguravam que se a gente
desobedecesse os superiores iríamos pretos pro inferno e os “ridimunhos” nada
mais eram que o transporte seguro desta fatal travessia.
Mas levantemos, sacudimos a
poeira como na canção, ou então escolhemos um papel bege ou da cor de fuligem
ou de monóxido de carbono, o pó pode ser usado como crayon ou fousain e
poderemos até obter um bom resultado com estes improvisados instrumentos, das
tripas coração.
E vem à lembrança outro pó, muito
em voga, as cinzas das cremações. Ultimamente, dois amigos preferiram navegar a
última viagem através de aprazíveis ambientes, Airton Monte na praia de
Iracema, Lustosa da Costa no rio Acaraú. O que me faz lembrar, também, do
destino das cinzas do mestre Rubem Braga, que não chegaram a ser sepultadas no
leito do Itapemirim pela incompetência (ou ignorância, ou mesmo inocência) da
empregada doméstica que empregou o pó dos ossos do cronista como tempero diário
do almoço da família. Os Braga do Cachoeiro comeram, literalmente, o grande
garanhão.
Enquanto isso vamos comendo
poeira até que a crise passe, estamos perdendo tempo por via do perfeccionismo
técnico em vez de misturar o pó com as bisnagas coloridas, quem sabe apareça
até um cromatismo inesperado e salvador. Comer poeira, aliás, passou a ser
eufemismo desde que plantaram grama nos campos de futebol de várzea e de praia
(futebol de poeira era o nome oficializado) e mesmo assim a nossa seleção comeu
foi o pó da desastrada derrota, junto ao pão que o diabo amassou.
A propósito, os políticos estão
aí prometendo distribuir colírio para todos, os eleitores passarão a ver um
palmo adiante do nariz e é aí onde corre o perigo. Melhor para os candidatos
seria continuar com a cegueira provisória ou definitiva para tudo ficar como
dantes, terra de cego com rei caolho. E nesta terra de óticas mil e grossos
óculos fundo de garrafa, bifocais e outras novidades, a luz que devia clarear
as mentes faz gerar lentes e lucros nos cofres dos intermediários entre o
clarão e as trevas.
E a ventania está levando o
assunto pra outro rumo, contudo argueiro ou cisco no olho lembra visão que é nome
de revista, loja, produtora de cartazes, agência de propaganda. Os políticos se
rotulam com esta palavrinha mágica e antecipam o futuro e o panorama global e a
felicidade geral da nação, quiçá o paraíso iluminado ou a escuridão dos quintos
dos infernos.
E voltando aos brandos tempos de
outrora, naquele ontem até que sopravam lufadas agradáveis. Havia o ventinho da
praça do Ferreira que mereceu até música do compositor Gordurinha, aragemzinha
safada que levantava a barra da farda das meninas da Escola Normal até que a
miss Mary Quant inventou a minissaia para destronar o apelido de Esquina do
Pecado, a velha Broadway, doce sacrilégio. Mais brando que a poeira escondida
debaixo do tapete da Petrobras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário