Apesar de nos ter sido emprestada
há milhões de anos, tão limitados e incompetentes que somos, ainda não
conseguimos tomar posse da vida.
O ser humano já é incompreensível até
por definição, quando diverge daquilo que é, o ser propriamente dito, concebido
pela natureza involuntária, talvez pela transa irresponsável de estrelas num
orgasmo da via láctea, daquilo que o faz SER humano, em seu caráter integral,
consciente e merecido, de quem é pelo que se faz ser.
Viver é tão único e tão solitário que é
difícil mensurar o quanto perdemos, ou mesmo o que ganhamos nessa conjunção
coletiva, sinuca de alteridades, na complexidade de nossa relação com o que
está além de nossa individualidade, de nossos desejos, de nosso ser gratuito,
tão desconhecido de nós, mas, certamente, íntimo de todos e qualquer um.
O mundo é um campo minado, e não uma
colina de flores do campo, e daí exige a perda da ingenuidade, a atenção
redobrada, a sensibilidade e a noção exata do peso de nossa pisada.
No correr da história, e da histeria, rumamos
culturalmente num saco de gatos universal, apoteótico, com destino certo ao
espetáculo, ao grande teatro do absurdo, cuja nossa audiência útil amuralha o império
de forças que tem como argumento, principalmente nos tempos modernos, os caríssimos
anúncios e a publicidade chula, criados por agências de pseudointelectuais
devoradoradores de long-necks e drinks coloridos. A máquina não para, movida sempre
pela intensa e cruel brutalidade financeira, causa maior, quase sagrada, dos
espíritos opressores da humanidade, insaciáveis porcos comedores de bacon,
genocidas, fascistas e admirados postadores de selfies europeus, levantando
taças de vinhos, cor de sangue brasileiro, ou abrindo os braços com manjadas
estátuas, pontes e postes dignos de gerar a inveja nos tão medíocres quanto
eles.
O fogo do poder e da ambição se alastra
nos intestinos magnânimos desses porcos egoístas, corroendo-lhes as vísceras e
deixando-lhes em cirróticas cinzas o lúmen de sua alma original. Resta-lhes,
para disfarçar o carcoma, cobrir-se com roupas caras, banhar-se com perfumes
franceses, andar em carros do ano, comprar toda bobagem ultramoderna, dar de
presente garrafas de bebidas envelhecidas para parceiros (leia-se "interesseiros")
com quem divide suas aparentes vitórias e conquistas. À noite, o fantasma da ansiedade
e do medo não o deixam dormir, ou o acompanham na hemorroida doída ou no
desdém indesejado do(a) companheiro(a)
de leito.
Para suportar a dor dessa vergonha
inconfessável, adoça a boca com o álcool, entope o sangue com drogas, consome
sapatos e acessórios no shopping mais próximo, mas nada, simplesmente nada,
afasta dele o medo de perder tudo aquilo que ele bem sabe ser apenas uma farsa.
Porém, mesmo assim, somos nós quem os alimentamos,
os incentivamos, permitimos que esses porcos dominem o mundo, subam as rampas, se
vistam em togas, nos representem, ganhem voz aos microfones, decidam a nossa
vida, gastem nosso dinheiro com armas, com projetos de fachada, náufragos e
megalômanos, em negociações vergonhosas. Permitimos que eles decidam os
destinos de nossas crianças, que deixem nossos velhos ao relento, que esqueçam
das populações mais pobres e sentenciadas pelo não-poder, que cultivem um
celeiro de segregação, de injustiça, de desigualdade, de gente que nunca vai
saber até onde poderia chegar se tivesse alguma oportunidade. Diante de tão opressora
e impassível realidade, sofre quem ainda se indigna com o sofrimento alheio,
quem é sensível às possibilidades do ser e do mundo, quem muito gostaria de
crer na possibilidade de algo diferente.
Escolher nos parece sempre tão difícil...
Mas, sinceramente, o que queremos mudar se nem mesmo aprendemos a colocar o
lixo na lixeira?