Demócrito Rocha: o pai d'OPOVO
“(...) É no jornal que o povo
encontra o seu pão espiritual de cada dia. O jornal descortina-lhe o mundo,
vencendo distâncias. É a lanterna mágica do progresso. É a força propulsora e
condutora das massas insatisfeitas, para as grandes reivindicações de seus
direitos postergados pela cáfila absorvente dos magnatas de todos os tempos.
Quando o povo geme escravo, entorpecido pelas algemas do cativeiro, indiferente
à violência paralisante do grilhão, o jornal é o sangue novo, forte e generoso
a nutrir-lhe as células dormentes, a despertar-lhe os neurônios amortecidos, a
ondear-lhe, nas veias, a torrente vigorosa e enérgica da revolta. O povo
precisa de mais gritos que o estimulem, de mais vozes que lhe falem ao
sentimento. Eis por que surgimos...”
Foi assim que, em 7 de janeiro de
1928, surgia O POVO, a mais
tradicional, democrática e conceituada folha do Ceará, na voz corajosa e ousada
de Demócrito Rocha, seu sonhador-mor. Como era bem de Demócrito, tanto o nome
do jornal como sua logo foram escolhidos por meio de concurso. Ele gostava de
ouvir a “voz do povo”, e, durante o período que dirigiu o jornal, escrevia, fazia
enquetes, criava outros concursos, provocava o leitor, ao mesmo tempo em que
liderava o “banco da Opinião Pública”, um dos integrantes das “sociedades dos
banquistas” — pequenas agremiações que nasciam em torno dos bancos da praça do Ferreira, reunindo
membros de diversos segmentos da sociedade (jornalistas, poetas, comerciantes,
professores, políticos, profissionais liberais etc.) a discutir de um tudo: das
coisas mais importantes ao trivial anedotário.
Demócrito teve origem humilde, cedo
ficou órfão e teve que trabalhar duro (aos 12, era operário), fortalecendo-se
em caráter, idealismo e senso de justiça e liberdade. Assim, não temia o debate,
ao contrário, se alimentava da polêmica, tinha gosto pela interatividade, pela participação
popular, pela opinião de outrem.
As primeiras edições de O POVO saíram de uma impressora de
segunda mão, na sede alugada no entorno da praça dos Leões. Já no segundo ano
de jornal, Demócrito, também poeta e notável cronista, lançou o suplemento
literário Maracajá, veículo que revelou
os nossos autores modernistas (Rachel de Queiroz, Jáder de Carvalho, Mozart
Firmeza, Mário de Andrade do Norte, Heitor Marçal, Edigar de Alencar, Suzana de
Alencar Guimarães e o próprio Demócrito, sob o pseudônimo de
“Antônio Garrido”, dentre outros) para todo Brasil, numa época onde isso
dificilmente aconteceria (alguns dos textos foram reproduzidos na Revista de Antropofagia de São Paulo, e
há matérias sobre o Maracajá em O Globo, do Rio de Janeiro, e no Diário da Tarde, de Curitiba).
Justamente no primeiro aniversário de
O POVO, em 7 de janeiro de 1929,
Demócrito presentearia seus leitores com “O rio Jaguaribe é uma artéria
aberta”, poema que o consagrou, sendo um dos mais representativos do modernismo
cearense[1]. Apaixonado
pelas palavras, mesmo quando extinto o Maracajá,
O POVO continuou durante toda a sua
existência, até hoje, sendo a grande janela da literatura, acolhendo
escritores, como Rachel de Queiroz, Moreira Campos, João Jacques, Milton Dias, Ciro
Colares, Airton Monte, Audifax Rios, Ana Miranda, Pedro Salgueiro, Tércia
Montenegro, Jorge Pieiro, dentre nós outros e eteceteras. Também foi Demócrito o
criador do título e do sistema eleitoral do “Príncipe dos Poetas Cearenses”,
além de promover concursos de versos na rádio PRE-9, de João Dummar.
Li, há mais de 20 anos, um livro de
Daniel Carneiro Job[2] que nos conta algumas
histórias de Demócrito, dentre elas, a de uma emboscada no centro da cidade, em
1927, quando por ordem do presidente Moreira da Rocha, 12 policiais o
encurralaram e deram-lhe murros, pontapés e golpes de rebenques, afastando os
populares, indignados diante da covardia, com ameaça de revólveres. Não
bastasse, arrastaram-no, sangrando, a Photo Salles, na praça do Ferreira, para
tirar uma “prova da eficiência da lição”... O jornalista, com 39 anos, foi
levado nos braços do povo para sua casa, onde até a madrugada, diversas personalidades,
amigos, representantes de entidades e/ou partidos políticos, além de
professores e estudantes de odontologia (ele era cirurgião-dentista) uniram-se
em oratórias e em vigília ao seu bravo porta-voz. Ora, em 1922, alguns anos
antes, em represália ao seu apoio ao comitê de Nilo Peçanha e J.J. Seabra,
recebeu notificação de transferência (atuava como telegrafista, à época) de
Fortaleza ao Mato Grosso, o que só não aconteceu devido à intervenção de D.
Manuel e Antônio Sales.
Da mesma forma, perseguido pela
polícia do presidente do Estado, foi ele, em 8 de outubro de 1930, a anunciar
no Palacete Ceará (prédio da Caixa Econômica do Centro) a vitória da Revolução e
a deposição do presidente Matos Peixoto, o “dançarino”, sendo levado nos braços
do povo para o coreto da praça onde discursou sob aplausos efusivos: “Como um
tubo de matéria fecal jogada ao monturo, caiu o governo podre que infelicitava
o Ceará!”, bradava.[3]
Em 2013, o jornal O POVO aniversaria: 85 anos, dia a dia,
de histórias do Ceará, o seu maior acervo jornalístico, seja na cultura, na
arte, na política, na economia, nos esportes, na ciência e em todas as demais
áreas, além de consolidar o seu papel de grande prestador de serviços ao povo
cearense.
Também em 2013, um marco a ser
lembrado: 70 anos sem Demócrito Rocha. O Ceará ainda há de fazer justiça a esse
nome. Mais sobre ele e O POVO, em 15 dias...
[1]
Muitas das afirmações literárias neste texto são do pesquisador Sânzio de
Azevedo, e podem ser encontradas em O
Modernismo na Poesia Cearense, das Edições Demócrito Rocha.
[2]
Daniel Carneiro Job foi jornalista de O POVO. O livro a que me refiro é A Praça do Ferreira (1992), atualmente
esgotado.
[3] Demócrito Rocha, de Cleto Pontes, da
coleção Terra Bárbara, das Edições Demócrito Rocha.