Local: Centro Cultural OBOÉ (rua Maria Tomásia, por trás do Banco do Brasil da Santos Dumont)
Sobre Sobral que Não Esqueço:
Tenho quase certeza que o Lustosa, filho de “seu” Costa que, por sua vez era filho do Chico Bento que matava porco no Morro do Moinho e de dona Vitalina, não é apenas um. Não sei onde encontra tempo para se aventurar em escrever mais livros!
O fato é que, ainda esta semana, chegou-me às mãos mais uma de suas aventuras, encapada pela figura da fazenda Pocinhos, da família Monte, descida da pena de Campelo Costa e de uns recortes de cartas antigas e de reclames: “Novidades!” Assim eu li...
O livro — Sobral que não esqueço — mais uma rasgada declaração de amor à cidade onde não nasceu, é fruto da mistura de lembranças do autor, mas com a diferencial evidência de uma criteriosa pesquisa em jornais locais ou mesmo nacionais, muitos deles, atualmente extintos: O Nordeste, A Tribuna, A Lucta, Jornal do Comércio, Gazeta de Notícias, Correio da Manhã, Correio do Ceará, Correio da Semana, Folha do Povo, A Cidade, O Rebate e outros.
Desta vez o cronista e jornalista trabalharam juntos, de pertinho, costurando uma pesquisa investigativa à ótica e humor de cronista inteligente que Lustosa o é.
A Sobral do livro não passa inteira pela janela que assistiu o crescimento de L.C. Dividido em blocos, como A Cruz e o Couro, Quando Sobral Dividia sua Gente, Seca em Sobral, Paladar Sobralense, Usos e Costumes etc. (são onze ao todo), o autor, com os pés dependurados nos galhos de fícus, discorre sobre os mais diversos aspectos que marcaram o passado, e daí cutuca as feridas no século XX, e que decidiram o futuro que hoje se vê com toda a sobralidade divulgada aristocraticamente ao universo (“Não sou universal, sou apenas municipal”). Sobral pensa grande, assim como o veterano “sobralense”...
Fico a imaginar o que move um homem sempre no sentido de sua cidade que, para o Lustosa, numa tradução poética e com toda licença, “não é uma cidade, é uma saudade chorando baixinho em mim”. Assim, como no livro, antes de revelar-se um pesquisador atento, deixa escoar pela branquidão de suas páginas, as memórias meninas de escadarias de madeira do Palácio do Bispo, das cadeiras nas calçadas ao som da velha amplificadora, do teatro São João, dos banhos de bicas dos “jacarés”, cujas águas alimentavam o Acaraú, das histórias do Chico Monte, do Educandário e do Seminário Apostólico São José e da imagem bonita, quase de cinema, dos olhos voltados às noturnas telhas de vidro e da manta que, de tão ordinária, espinhava. Pronto: o leitor está cativo!
Pesquisar não é tarefa fácil. Temos sempre a nítida impressão de que poderíamos encontrar algo mais, uma nova peça de quebra-cabeças que traduzam com exatidão aquilo que nós queremos, como em tela, apresentar. O enfeixamento tem de ser bem feito, senão o leitor desagrada logo. Não é o caso, e daí o mérito, de Sobral que não esqueço. Primeiro porque mesmo sem ser da Princesa do Norte, o leitor facilmente agarra-se à mão do livro e se deixa levar por histórias interessantes que representam uma época de desenvolvimento de um Ceará, de cartolas e em pó de arroz de Belle Époque, com direito, inclusive a pormenores de cardápios de entrée de panelada à brasileira, petit pois ao molho picante, ponche de abacaxi ao chartreuse e champã Veuve Chiquot ao som de magnífica orquestra.
Tudo em Sobral... tem cara de fotografia. A cultura, a economia (que vem desde a época da pecuária e da “Civilização do Couro”), a religião (sempre bem detalhada com seus bispos e dons pelo ex-seminarista e admirador da inteligência dos homens de batina como Dom José Tupinambá da Frota, Monsenhor Linhares, Dom José Bezerra Coutinho e outros), o racismo, a aristocracia, os costumes (estes que perpassam por todos os blocos e que, na minha opinião e gosto, é o que melhor ilustra o texto), as histórias, os chistes, a publicidade (rico detalhamento de estratégias de marketing rudimentar), a política (aí, nem se fala...), as secas, e, ao final, capítulo a parte, “Gente da Gente, um apanhado de figuras e histórias espirituosas da cidade do Beco do Cotovelo: Francisco de Paula Pessoa — senador dos bois —, Joaquim Miranda Paula Pessoa, José Leôncio Pessoa de Andrade, José Saboya, Francisco de Almeida Monte, Teodoro Ziesmer, Vicente Loiola, Clodoveu Arruda, Emilianinha, “Seu” Costa (é claro), e mais outros tantos protagonistas de causos desta cidade tão escancaradamente amada pelo amigo Lustosa.
Ler Sobral que Não Esqueço, me fez lembrar também um pouco do que sou — do que somos — e marcou-me de uma saudade do que não vivi, uma saudade boa de conversa de calçada, daquelas que a gente quase não vê mais. Quase, ainda bem. Viva o Lustosa!
Raymundo Netto