Considero-me romancista, portanto, tenho grande curiosidade em conhecer a história das romancistas brasileiras. Como o romance chegou a mim, quem levou os primeiros “tiros no peito”, como diz a Lygia Fagundes Telles. Achava eu que pouco havia romancistas, nos tempos antes de Rachel de Queiroz até Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira que teria escrito o primeiro romance de brasileira e o fizera em Portugal, em 1752, sob pseudônimo. Mostrando como Diófanes, Climeneia e Hemirena, príncipes de Tebas, venceram os mais apertados lances da desgraça, dedicava-se a ensinar as máximas de virtude e formosura, enquanto atacava a monarquia. A erudição e o inusitado feminil dessas páginas levou contemporâneos a atribuírem a autoria a Alexandre de Gusmão, iluminista estrangeirado e conhecido por seu horror ao despotismo e sua virulência na crítica ao Trono. Depois se descobriu o nome da escritora, escondido no anagrama: dona Theresa Margarida da Silva e Orta, irmã do moralista Mathias Ayres. “Certamente a autora foi orientada pelo irmão e pelo protetor”, dispararam. Tive a oportunidade de ler o romance, e achei-o bonito, estranho, possuído por seu tempo... Depois descobri o pungente livro de Maria do Carmo de Melo Rego, Guido, sobre seu indiozinho Piududo.
Romances de outras mulheres... Nada nas minhas enciclopédias, antologias, nas histórias literárias, nas formações da nossa literatura... Uma floresta à noite... Mas o passado pode ser refeito por indícios, e o fazemos de acordo com as necessidades dos novos tempos. Com o interesse pelo feminino surgiu, em 1999, uma maravilhosa antologia publicada pela Editora Mulheres, levantando escritoras brasileiras do século 19: poetisas, dramaturgas, prosadoras... Algumas foram romancistas. Duas delas, cearenses: Emília Freitas, nascida em Aracati, 1855; e Ana Facó, em Beberibe, mesmo ano. O romance psicológico de Emília Freitas, A rainha do ignoto, publicado em 1899, num tom meio gótico e insólito conta a experiência de um jovem culto, rico e racionalista que, em viagem ao Ceará, avista à noite, a descer num bote o rio Jaguaribe, uma mulher vestida de branco, cabelos soltos, cingida por uma guirlanda de rosas. Apaixonado pela visão irreal, o jovem sai em busca do mistério. A mulher, chamada pelos nativos de Fada do Arerê, entre outros nomes, é rainha de um mundo de amazonas dedicadas a fazer o bem, para isso usando de magia, pactos, ilusões. O jovem se depara, na verdade, com uma simbologia do sinuoso mundo feminino. Esse romance se localiza entre os pioneiros do gênero fantástico no Brasil. Li apenas fragmentos, mas acho a história bela, imaginativa e ousada. Emília Freitas escreveu outro romance, O renegado, de 1890, do qual não se conhece nenhum exemplar, quem sabe nossos bibliófilos o encontrem...
Ana Facó usava o pseudônimo de Nitio-Abá, não homem, não índio, não pessoa. Escreveu dois romances, publicados sob a forma de folhetins, capítulo a capítulo, em jornal. Rapto jocoso, 1906, romance popular histórico, passeia pelos sertões cearenses por meio da história de dois pretendentes à mão de Dunamira: um velho e um jovem. Narra num tom, segundo crítico da época, de humor bastante machadiano. Dos trechos que li, gostei imensamente da riqueza de linguagem, das citações a quadrinhas sertanejas, a costumes locais. “Bonina, flor da noite, Não abre senão de tarde; Pelos olhos eu conheço Quem me quer bem de verdade.” No outro romance, Nuvens, 1907, um casal de enamorados se separa pelas intrigas de uma pretensa amiga. Os dois foram publicados em livro apenas depois da morte de Ana Facó, e merecem reedição, assim como os de Emília Freitas. Precisam ser conhecidos, e lidos por olhos encantados.
Fico feliz, as mulheres não estiveram assim tão ausentes do romance brasileiro, apenas foram lançadas ao oblívio. Ainda surgirão outras. No Ceará, terra de matriarcado, com heroínas, potentadas, guerreiras valentes, abolicionistas, haveria de haver romancistas anteriores a Rachel de Queiroz. “Mas a rotina da educação provinciana, a timidez, a resignação um tanto oriental do seu temperamento, tudo leva a negligenciar o cultivo do espírito em proveito das utilidades da feminilidade tradicional”, como escreveu nosso poeta Antonio Sales, citado no livro da professora Cecília Maria Cunha, Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses. Esse precioso livro aprofunda o conhecimento sobre as duas romancistas cearenses, localizando-as entre nossas outras escritoras de poesia, dramas, textos jornalísticos. E vemos como foi difícil desbravar caminhos dentro do mundo cultivado pelo espírito.
Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras.
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