segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

"O Homem que não Sabia Morrer", de Raymundo Netto para O POVO


Benigno despertou em um assombro extraordinário. Por cima dos olhos tingidos de pavor, uma interrogação reluzia: “Qual o sentido de minha vida?”

Mastigando cereais vencidos à mesa há anos solitária, buscava por algum premeditado e egoístico ato heroico – como na maioria o é. Precisava abraçar uma causa nobre, aquela a valer alguma fatia de glória imediata, o suficiente para sua alheia autoestima.

Assistindo na TV a um histérico e dispensável noticioso policial – como a maioria também o é –, soube que em certo lugar, na fronteira do país, havia contrabandistas de órgãos humanos. Por associação esdrúxula de ideias, imaginou o destino de tais órgãos: o salvamento de outras vidas! Sem demora, comprou passagem e se dirigiu àquele lugar, resolvido a lhes ceder um rim.

Contrariando a máxima do Barão de Itararé que afirma “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”, nem mesmo eu sei explicar como o tonto, extasiado na sua felicidade burguesa, conseguiu encontrar tais contrabandistas.

Eles, claro, ainda ressacados da noite anterior, riram-se a valer – também sem entender nada – e, com todas as honras, o anestesiaram e, depois, em torpor profundo, o rebolaram no bagageiro sujo da van, sala de cirurgia improvisada. Nesse momento, diante da inesperada novidade, os malvados perceberam que poderiam tomar não apenas um rim, mas os dois. Aliás, se já estavam ali mesmo, por que não arrancar tudo aquilo que pudesse ser de proveito? Assim o fizeram. Levaram tudo: rins, fígado, coração, pulmões, córneas, pâncreas, intestinos... e o que deu. Motivados por uma bizarra gentileza, fecharam as suturas e largaram o corpo gordo e nu à beira da estrada.

No dia seguinte, Benigno acordou. Sentia-se mal, porém, mais leve. Sem córneas, não viu ninguém. Percebeu pelo corpo as diversas costuras grosseiras e malfeitas. As linhas de fios grossos espetavam o inchaço da pele inteira. Todavia, mesmo quando percebeu-se enganado, não conseguia sentir ódio, pois a ele faltava o coração.

Ao ser encontrado por populares, tentaram em vão descobrir contatos de parentes, amigos, colegas que pudessem vir buscá-lo, socorrê-lo em tão inusitada situação. Mas ele não se lembrou de ninguém – e não foi porque levaram também o seu cérebro, só por diversão, é claro. O homem adorava a solidão, era avesso às manias e celebrações humanas e ao cheiro de animais. Desconfiava de todo mundo, evitava sair de casa, seu maior refúgio, e assim afastou-se de tudo e de todos.

No leito ao corredor do hospital de caridade, ao questionar o médico plantonista sobre a gravidade de seu caso, recebeu cruel prognóstico: “Lamento, o senhor não pode mais morrer!”

Sim, com a ausência de seus órgãos vitais, seria impossível o infarto, a trombose, cirrose, enfisema, tuberculose, demência, nem a simples pneumoniazinha... “Meu Deus, estou perdido para sempre”, angustiava-se o desanimado Benigno, cujo sangue gelava parado em seu corpo imortal, enquanto revelava-se que, de fato, já havia morrido desde quando passou a não existir para mais ninguém.

 

 




 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

"Ilusionista", de Raymundo Netto para O POVO


Samuel, quando veio ao mundo, em vez de chorar, clamava: “quero ser mágico!”

Assim, desde de a sua meninice, peregrinava por jornais, revistas, manuais e internet e colecionava álbuns de figurinhas em busca de conhecer e se aproximar dos grandes prestidigitadores de sua época. Nesse intuito, fugiria da casa paterna resolvido a apreender os segredos milenares e maravilhosos do ofício.

Debulhadas inúmeras folhinhas de parede, o adolescente se via perdido, sozinho e faminto num mundo de inimaginável realidade, até a chegada na cidade do famoso Gran Circo Internacional. Entusiasmado, Samuel se dirigiu a ele, enfrentando a fila de pretendentes a serviços temporários, pois faria qualquer coisa, desde que pudesse se aproximar de Eugênio Roudin, o mágico, o melhor de todos. 

Aceito, passava o dia varrendo e limpando a coxia, lustrando objetos e, no momento do espetáculo, carregando pesos, vendendo pipoca, milho verde, balões e brinquedos de néon. Ali, dessem qualquer espaço, Samuel não perdia a oportunidade de anunciar: “Seria o maior mágico do mundo!”

Às noites, no sereno frio da manta naftalínica, seduzido pelo vagalumear das estrelas perdidas na vastidão do cortinado negro, fantasiava o seu picadeiro de encantamentos.

Um dia, de tanto se enxerir, perturbar a todos e assediar Roudin, conseguiu arrancar dele a promessa de treiná-lo como seu assistente. Seu objetivo, enfim, se realizaria.

Porém, para a surpresa do mágico, apesar do entusiasmo e a declarada paixão pela arte do ilusionismo, quando Roudin pôs numa mesa uma série de objetos utilizados em seus truques, como baralho, cordas, lenços, flores artificiais, moedas, dados, argolas, entre outros, o rapaz se resumia a esfregar as mãos e fitá-los com uma ansiedade vazia de qualquer experiência. Roudin pensou: “Teria que começar do zero!”. Para piorar, quando o fez, tudo indicava que Samuel não tinha a menor aptidão para a coisa. Era desastrado, desconcentrado, uma tragédia: um coelho descia-lhe pela perna da calça, se enrolava em lenços coloridos, tropeçava em fios de náilon disparando papéis coloridos pelo colarinho, escapavam-lhe pombos pelas mangas da camisa, esparramavam-se copas e ouros pelo chão... nada haveria de dar certo.

Após várias tentativas e frustras recomendações, Roudin surtou. Era uma absoluta perda de tempo... do seu tempo! Já não entendia de onde o rapaz tirara aquela ideia de que um dia poderia ser mesmo um mágico de verdade. Era, isso, sim, um inútil e grandessíssimo pateta que jamais dominaria o universo da magia.

Os colegas de circo, sentados nas arquibancadas a admirar os ensaios do garoto, nunca haviam visto o elegante mágico perder as estribeiras. E alguns, por considerarem Samuel um tanto pedante pelas suas incontáveis afirmações de ser o maior mágico do mundo, diante de suas trapalhadas, gargalhavam e o vaiavam a valer, numa estrondosa, constrangedora e irremediável humilhação.

Transtornado, Samuel assistia ali, por meio da plateia de seus próprios colegas e mentor, o coração dilacerar em rasgos perversos de solidão. Ainda diante do achincalhamento geral, abaixou-se, sacou um punhado de terra molhada por suas lágrimas, moldando com ela uma ave entre as mãos. Soprou seu bico e, como que puxando alfenim, fez crescer o grande pássaro vermelho a emitir sons dolorosos e estridentes. O fracassado artista, então, saltou sobre seu dorso, subindo em voo ligeiro através das estrelas costuradas na lona circense, sabe-se lá Deus para onde, determinado a nunca mais acreditar em sonhos.