sábado, 28 de setembro de 2024

"A Maior Casa da Cultura do Ceará", de Raymundo Netto para O POVO


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27 de setembro de 1836: data do aniversário de um dos maiores nomes da Literatura Cearense, o introdutor do Romantismo no Ceará, o poeta e abolicionista Juvenal Galeno. Fosse vivo, teria 188 anos.  Aquecida a cabeça pelo gorro turco, estaria balançando em sua rede branca a cofiar as barbas de nuvem, assistindo ao mundo através de sua mais absoluta escuridão. Talvez versejasse: “E o tristonho bardo cego,/que só pensava em morrer,/Por causa de tanto estímulo/Sentiu-se então renascer./E logo ditou mil versos,/Que não podia escrever.” Ao seu lado, caneta e papel em mãos, estaria uma das filhas, a dra. Henriqueta Galeno – que é como a chamavam –, a que nunca casou nem saiu daquela casa verde em cuja platibanda traz uma branca lira, assinalando para a sociedade cearense, sempre distraída, que ali se encontra, se não em corpo, mas em espírito, desde 1886, não o criador da poesia popular, que afirmar isso é uma asneira, mas aquele que em pleno século XIX foi o pioneiro de tudo o quanto se refere a nossa Literatura. Para mim, não há dúvida: o equipamento cultural mais legítimo do Ceará é a Casa de Juvenal Galeno, edificação de pelo menos 138 anos, constituída como centro de cultura desde 1919 – o poeta ainda vivo –, sendo na primeira metade do século XX parada obrigatória para todos(as) artistas, intelectuais e políticos nacionais e internacionais que por aqui aportavam, sendo eles(as) encantados(as) pelo lume do nome de Galeno e pela recepção daquela balzaquiana moça, sua filha, recém-formada em Direito, uma das primeiras mulheres do estado, dotada de elevada cultura, nascida naquela casa que a acolheria por 77 anos, até que, há 60 anos, em 10 de setembro de 1964, partiria ao encontro de seus familiares queridos, a quem tanto devotou sua vida... mas ela não seria apenas isso!

Henriqueta era inquieta, aguerrida, inconformada com diversos traços da sociedade naqueles anos de festejada Belle Èpoque. Entre eles, o machismo. Seria ela, então, sufragista, lutando pelo direito de voto das mulheres, defensora do divórcio – apesar de nunca ter casado “para não errar” – e umas das vozes que se aliaria ao nome da renomada feminista Bertha Lutz no II Congresso Internacional Feminista, no Rio de Janeiro, em 1931. Nos próximos anos, teria entrevistas suas publicadas em diversos periódicos do país e viajaria para o Sudeste, elevando a sua voz em nome do empoderamento feminino, da igualdade de tratamento e de oportunidades, clamando que as mulheres precisavam ganhar o seu sustento próprio para ter a sua independência e igual poder de decisão nos rumos de seu lar. Ao mesmo tempo, promoveria a Literatura produzida no Ceará, da qual era exímia conhecedora, e, como esperado, testemunharia sobre a vida e a obra do pai, tema constante nas rodas sudestinas, inclusive pela incansável divulgação realizada pela irmã caçula, não menos importante, Julinha Galeno, que após o primeiro matrimônio, passou a residir em outros estados e durante a vida inteira participaria e lideraria entidades litero-culturais na qualidade de poetisa e de colecionadora e promotora da obra do pai poeta.

Também em 27 de setembro de 1936, Henriqueta criaria a Falange Feminina, denominada, a partir de 1942, de Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno, instituição que, hoje, completa 88 anos de existência, criada para acolher e promover a literatura produzida por mulheres que sabiam encontrar apenas naquela Casa o incentivo e a esperança de se verem publicadas e respeitadas como artistas.

Em 2024, a Coleção Nova Terra Bárbara (EDR), organizada e coordenada editorialmente por Raymundo Netto, lança o perfil biográfico de Henriqueta, de autoria da jornalista e escritora Natercia Rocha, fazendo jus a essa mulher tão especial, explorando suas dores e conquistas, ressignificando e ampliando a importância da Casa de Juvenal Galeno, que é também a casa da mulher Henriqueta Galeno. Vivas!



Casa de Juvenal Galeno


Henriqueta, já idosa, cercada por algumas das associadas da 
Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno.
Logo atrás de Henriqueta, a sua maior discípula e futura gerente da Casa, 
a sobrinha Cândida "Nenzinha" Galeno.







 

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

"Vixit*", de Raymundo Netto para O POVO


Texto do livro Quando o Amor é de Graça!,

indicado para o Vestibular da UVA 2025.1

 

Depois do entardecer lunar, ante o mexerico das estrelas e de um sol cris, solavancava, como um galope à beira-mar, o suspiro derradeiro.

O pensamento distante se perdia e roto banhava-me da luz que chegava daquele olhar perdido na apatia do passado presente.

Como se manifesto de miasmas, sentia o corpo a se aquebrantar no aroma incandescente a inchar-se no escuro lembramento, como um corredor frio e senzalavrador de medos.

Senti febre de me roubar o ar. Na garganta, a palavra feria purulenta, amarga e frouxa como sangue, a correr venosa na pele, a se desmanchar em escamas, a me pedir: “Desista!”

Contudo, não sabia a voz que o mar cedo já me batia às paredes do coração, ensurdecendo a cada dia, conforme a indecisão infantil das marés e dos ocorridos, dos conflitos, dos aflitos, da insânia na soleira de minha porta.

Inapto ao mundo e à vida, lancei pedra na Lua, saltei por casas de angústias que não se calam. Devastei pessoas que traziam flores nas palmas das mãos e sorrisos nos dedos, mas que não suportaram viver por trás de paredes brancas que construí na esperança de pouso e de ninho.

Um dia, entre nuvens dos olhos e do céu, recolhi um desejo azul, tingindo de firmamento o rosto por debaixo da máscara de sorriso contraído e arranquei a pele e os espelhos para nunca mais encontrar-me outra vez. E a perdi. Perdi-me só, completamente.

Durante anos, sem sabê-lo, percorri o (meu) mundo à procura daquela imagem que cuidei destruir, mas nos sonhos, muitas vezes recortados e infrequentes, via com assombro aquele rosto que não o meu, e ainda tão mais eu.

Às noites, cansado de esperar a queda de meteoros, promovia deicídios, feria os rituais, deitava no teto, desenhava caricaturas por sobre espelhos, tentava ignorar aquele “ninguém” que estava sempre ao lado a acenar com a cabeça: “Agora!” “Agora, ainda não!”

Tinha que escolher. Havia tempos, escolhi por não escolher. Não podia fechar portas, nem janelas. Não gostava de multidões. Vozes demais entonteciam. Detestava a mentira. Não suportava posses, nem manias, nem soberba, muito menos ciúmes, certezas ou prisões. Queria ser livre de tudo. Ria e me condoía da hipocrisia do mundo.

Não queria crescer, suportar a vida ou a morte. Não queria sonhar e fundei o meu país no reino da ideia, vizinho ao da loucura, onde escrever foi a única forma que encontrei para gritar em silêncio.

 

(*) Vixit era uma expressão usada entre os romanos para anunciar a morte de uma pessoa com mais delicadeza. Corresponderia a “Ele(a) viveu”, no sentido de que “não vive mais” ou mais objetivamente: “Morreu”.

 




 

domingo, 1 de setembro de 2024

"Itapipoca: artes rupestres II", de Raymundo Netto para O POVO


A “Pedra Ferrada” de Itapipoca, em 1924, foi estudada por Carlos Studart Filho, em seu conhecido ensaio “A propósito de uma petrografia encontrada na fazenda do Mucambo em Itapipoca”, publicado pela Revista do Instituto do Ceará, no qual destaca: “Apresentavam-se traçadas com tinta vermelha [segundo Martius, uma mistura de barro vermelho com urucum e dissolvido em azeite] sobre a parede de uma gruta bastante ampla e representavam numerosos grupos de silhuetas em séries paralelas. [...] Além dos desenhos apontados [silhuetas humanas], distinguia mais, perfeitamente nítida e clara, a silhueta de um bovídeo a pastar; via-se também uma ave de longas asas abertas [...] E é para servir aos profissionais que queiram lançar mão das petrografias para seus estudos que deixo aqui assinalada a existência da Pedra Ferrada.”




Estrigas, décadas depois, observava que as pinturas tinham dimensões distintas, assim como seu estado de vivacidade. Algumas permitiam apenas perceber-se os traços de contorno que determinavam a forma. Em outras, porém, tanto o contorno como a forma estavam bem mais nítidas, destacando-se até pelo colorido diferenciado na rocha.

O pesquisador e artista, teórico em arte, em seu texto, impressiona-se com os detalhes ainda perceptíveis, destaca a “composição simples e de pureza transcendente”, assim como “a elegância e a graça que o artista – considerava-o(a) um(a) colega – captou e refletiu dentro do formalismo de atitude e de linhas reais do modelo”.





Cita duas figuras humanas que parecem estar dançando, “com flexão de pernas e braços, e a elegância com que o fazem lembrar as dançarinas de balé”. Outra figura humana, diferente das demais, têm traços que impressionam, podendo ser interpretado como “a representação de um ser misterioso, com caráter mágico ou feiticeiro, num flagrante exercício de suas atividades.”

Uma observação feita ainda no estudo de Studart Filho é que, ao contrário do que se pensava, essas pinturas não eram feitas às pressas e sem intencionalidade, pois deveria ser bastante custoso e difícil o preparo dessas “tinturas”, sendo necessário um tempo maior para essa execução. 

“Todos esses trabalhos – afirma Estrigas –, todos os seres ali pintados, parecem ter tido suas imagens apreendidas pelos sentidos do seu autor ou autores, em um momento vivo das atividades desses modelos, e, nessa atitude, foram aprisionados, em pintura, nas paredes da gruta. [...] Esses trabalhos de arte [...] constituem-se a nossa manifestação artística pré-histórica cujo local escolhido para a sua execução foram as paredes internas de grutas, e não restam dúvidas quanto às formas que representam e ao seu caráter de qualidade estética.” 

Ao final de seu estudo, após uma análise da escultura pré-histórica em alguns cachimbos de barro e de citar alguns outros sítios de pinturas e/ou gravações rupestres cearenses, conclui desejando que o estudo e a investigação sobre essas inscrições continuem e que se preservem os originais por meio de documentos, antes que os próprios efeitos naturais do tempo os eliminem.

Qual o sentido desses sinais e a quem devemos atribuir a sua criação? Seriam indicativos de tesouros enterrados ou submersos por flamengos ou jesuítas? Marcos de cemitérios, terrenos sagrados de antigos povos indígenas? Foram desenhados por grandes pajés para defender seu grupo de demônios, ou foram eles, os próprios demônios, os gnomos ou gênios fabulosos os seus autores, daí o terror que causavam (ou causam) a supersticiosos? Certo mesmo é que eles estão por aí, em muitos lugares no Ceará e fora dele, e merecem, sim, a nossa atenção. 

Para os mais curiosos, assistam: “Vestígios pré-coloniais cearenses”, de Roberto Bomfim e Augusto Bastos: https://www.youtube.com/watch?v=7Uo2tkrp85g&t=6s




Ilustrações: Nice Firmeza