Tlic-Tli-Tlic...
Diante do espelho, Lili assistia aos
fios de sua ondeante e volumosa cabeleira se embaraçarem violentos aos dentes
de seu pente, feito náufragos ao divisar uma tábua de salvação. Não tinha
problema, dizia, podem cair, o que não pode acontecer é deixar de nascer de
novo: “Já pensou, eu, careca?”. Observando aqui de cima, penso que ela tinha
razão, ainda havia muito, muito a se perder.
Por outro
lado, não era apenas em seu pente que encontrávamos os seus “desertores”. Em
casa, o piso claro realçava a sua presença, fosse em tufos ou esparsos, nos
quartos, na sala, no corredor e, principalmente, nos banheiros. Enquanto nestes,
o ralo do box do chuveiro e o da pia precisavam ser desentupidos diariamente –
as visitas, desavisadas, à primeira vista, assustavam-se pensando se tratar de
um rato –, os demais espalhados pela casa iam-se no aspirador de pó que, por
vezes, se engasgava diante da sansônica tarefa.
O que Lili
não sabia é que aqueles fios que lhe escapavam pelos ralos, vasos sanitários,
pelos ventos ou mesmo no lixo tomavam amplas galerias nos esgotos ou lixões e
que, aos poucos, foram se encontrando, se enleando, se estendendo, de maneira
que anos mais tarde seria possível encontrá-los perturbando o trânsito das ruas,
nas quais víamos centenas de imensos tufos de cabelos, como aqueles de feno dos
filmes western, quicando ao sabor do vento e trombando nos carros e sobre os
pedestres. Era notória a confusão daqueles que, chegando às emergências dos
hospitais, acusavam: “Fui atropelado por cabelos!”
Os canos da
Companhia de Água e Esgoto, vários, estavam inutilizados. Em diversos bairros já
reclamavam: abriam as torneiras e delas só saíam cabelos!
Nas praças,
os cachorros e gatos precisaram ser recolhidos para tratamento psicológico,
devido ao terror de encontrar em seu caminho a grossa pelagem amorfa saindo dos
bueiros a enfrentá-los. Assim como havia revoadas de pombos arrulhando presas nas
teias capilares dispostas nas árvores, nos postes e semáforos.
Algumas
praias tiveram que ser interditadas para o banho, pois as crianças temiam “um
bicho” que as agarrava pelas pernas e que nada mais era do que uma extensa rede
de fios de cabelos. Quando a maré baixava, tais como as manchas de óleo que não
têm fim, assim eram as extensas áreas de praia cobertas pelas redes negras como
as asas da graúna. Os ambientalistas estavam lá, a recolher o agente poluidor e
a salvar as tartarugas e outras espécimes marinhas enredadas pelos cabelos.
“Não joguem cabelos ao mar!”, apelava a nova campanha do governo. Porém, centenas
de catadores coletavam aquilo para vender a fábricas de perucas – infelizmente,
como havia muita oferta, o preço, assim como aquele cabelo, também caiu. Mendigos
também se agarravam a esses cabelos – mais do que o Roberto Carlos – como
mantas para combater o frio da noite. Os artesãos hippies passaram a criar adornos
originais... e cabeludos! Os centros cirúrgicos dos hospitais públicos reaproveitavam
os fios para suturas. Os passarinhos adotavam alguns desses tufos como ninhos,
tão arrumadinhos que estavam. Até uma recém-inaugurada loja, a “Hair”,
anunciava a novidade do momento: resistentes casacos capilares que poderiam se
coloridos e mechados em qualquer salão de beleza.
Daí a Lili
convidou o marido para irem a um restaurante chique a valer. Investiu no
penteado e em unhas novas. Vestiu trajes, bijus e calçados de festa. Ao ombro, a
bolsa mais cara. Lá chegando, como uma celebridade falsa de TV, demorou-se à
leitura do menu e aguardou ansiosamente a refeição. Então, que surpresa, ao
chegar o suculento e almejado prato, um grito escandaloso chamou a atenção de
todos. Lili havia encontrado um fio de cabelo em seu prato. Era quase
microscópico, mas... “Que nooojooo!” Não tinha a menor dúvida: nunca mais
colocaria os seus pezinhos naquela espelunca!