segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

"Pelos Cabelos", de Raymundo Netto para O POVO


Tlic-Tli-Tlic...

Diante do espelho, Lili assistia aos fios de sua ondeante e volumosa cabeleira se embaraçarem violentos aos dentes de seu pente, feito náufragos ao divisar uma tábua de salvação. Não tinha problema, dizia, podem cair, o que não pode acontecer é deixar de nascer de novo: “Já pensou, eu, careca?”. Observando aqui de cima, penso que ela tinha razão, ainda havia muito, muito a se perder.

Por outro lado, não era apenas em seu pente que encontrávamos os seus “desertores”. Em casa, o piso claro realçava a sua presença, fosse em tufos ou esparsos, nos quartos, na sala, no corredor e, principalmente, nos banheiros. Enquanto nestes, o ralo do box do chuveiro e o da pia precisavam ser desentupidos diariamente – as visitas, desavisadas, à primeira vista, assustavam-se pensando se tratar de um rato –, os demais espalhados pela casa iam-se no aspirador de pó que, por vezes, se engasgava diante da sansônica tarefa.

O que Lili não sabia é que aqueles fios que lhe escapavam pelos ralos, vasos sanitários, pelos ventos ou mesmo no lixo tomavam amplas galerias nos esgotos ou lixões e que, aos poucos, foram se encontrando, se enleando, se estendendo, de maneira que anos mais tarde seria possível encontrá-los perturbando o trânsito das ruas, nas quais víamos centenas de imensos tufos de cabelos, como aqueles de feno dos filmes western, quicando ao sabor do vento e trombando nos carros e sobre os pedestres. Era notória a confusão daqueles que, chegando às emergências dos hospitais, acusavam: “Fui atropelado por cabelos!”

Os canos da Companhia de Água e Esgoto, vários, estavam inutilizados. Em diversos bairros já reclamavam: abriam as torneiras e delas só saíam cabelos!

Nas praças, os cachorros e gatos precisaram ser recolhidos para tratamento psicológico, devido ao terror de encontrar em seu caminho a grossa pelagem amorfa saindo dos bueiros a enfrentá-los. Assim como havia revoadas de pombos arrulhando presas nas teias capilares dispostas nas árvores, nos postes e semáforos.

Algumas praias tiveram que ser interditadas para o banho, pois as crianças temiam “um bicho” que as agarrava pelas pernas e que nada mais era do que uma extensa rede de fios de cabelos. Quando a maré baixava, tais como as manchas de óleo que não têm fim, assim eram as extensas áreas de praia cobertas pelas redes negras como as asas da graúna. Os ambientalistas estavam lá, a recolher o agente poluidor e a salvar as tartarugas e outras espécimes marinhas enredadas pelos cabelos. “Não joguem cabelos ao mar!”, apelava a nova campanha do governo. Porém, centenas de catadores coletavam aquilo para vender a fábricas de perucas – infelizmente, como havia muita oferta, o preço, assim como aquele cabelo, também caiu. Mendigos também se agarravam a esses cabelos – mais do que o Roberto Carlos – como mantas para combater o frio da noite. Os artesãos hippies passaram a criar adornos originais... e cabeludos! Os centros cirúrgicos dos hospitais públicos reaproveitavam os fios para suturas. Os passarinhos adotavam alguns desses tufos como ninhos, tão arrumadinhos que estavam. Até uma recém-inaugurada loja, a “Hair”, anunciava a novidade do momento: resistentes casacos capilares que poderiam se coloridos e mechados em qualquer salão de beleza.

Daí a Lili convidou o marido para irem a um restaurante chique a valer. Investiu no penteado e em unhas novas. Vestiu trajes, bijus e calçados de festa. Ao ombro, a bolsa mais cara. Lá chegando, como uma celebridade falsa de TV, demorou-se à leitura do menu e aguardou ansiosamente a refeição. Então, que surpresa, ao chegar o suculento e almejado prato, um grito escandaloso chamou a atenção de todos. Lili havia encontrado um fio de cabelo em seu prato. Era quase microscópico, mas... “Que nooojooo!” Não tinha a menor dúvida: nunca mais colocaria os seus pezinhos naquela espelunca!




 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

"Pílulas, Placebos & Emplastros", de Pedro Salgueiro para O POVO

 


Nesses tempos terríveis, onde a ignorância campeia e se mostra orgulhosamente vaidosa, quando a burrice se espraia pelas redes sociais e à boca miúda, como se dizia antigamente, e a depressão parece ser o porto mais provável (mesmo inevitável), só as boas leituras nos salvam, acredita estupidamente, impunemente... o escrivão Bartleby.

Tenho espalhado livros e mais livros pelos diversos cantos da casa como se fossem caixas de remédios para todos os males, brota uma tristeza pego um volume de poesia, mesmo que seja das mais fortes, que fatalmente me livrará de outros tantos comprimidos; uma contrariedade no trabalho, dois contos da prosa de Guimarães Rosa me jogam nas veredas da lucidez; notícias ruins como doenças de parentes e conhecidos, tasco quatro parágrafos de Machado e duas conversas com Quincas Borba me recobram (pasmem!) a paz.

Mas mesmo com esses santos remédios encadernados e poeirentos, ainda em papel, tenho tido infinitos problemas, a ansiedade crescente me impele a pular de livro pra livros com uma rapidez estúpida, com uma incrível fúria para encontrar o antibiótico mais eficiente, numa insana busca que se torna por si mesmo mais importante que o resultado final; vou às cegas à busca do placebo ideal pra minha dor de cabeça imaginária, para tentar em vão estancar a fúria das águas que são todas (ou quase) do espírito: olho ao redor e se empilham volumes com marcadores a denunciar suas leituras fraturadas, interrompidas...

Na minha quixotesca tarefa de escapar do caos exterior criei, sem querer (ou inconscientemente desejando), um caos interior insolúvel: atravesso madrugadas tentando concluir leituras espaçadas, pedaços de livros que se confundem, personagem de épocas e territórios diferentes que impunemente interagem na minha loucura, Lituma desce dos Andes e vem pleitear uma operação de urgência, ainda exige liminar: a inútil organização de tarefas se misturam com os tenebrosos noticiários das tragédias tão repetidas e reanunciadas que ecoam de tempos imemoriais: o desastre serrano de décadas atrás (ou D’antes, doutras tragédias que de tão repetidas viram comédias) se mistura com as enchentes da semana passada, a cara de gravidade de repórteres, comentaristas e políticos se misturam com os choros e caras de espanto das novas vítimas: a repórter embarga a voz ao anunciar que quatro corpos da mesma família foram encontrados, três abraçados sob o barro.

A contabilidade material, física mesmo, dessas últimas tragédias, é difícil de contabilizar, mas a enumeração de nossos males mentais decorrentes delas serão infinitamente mais impossíveis de se perceber, curar, sanar, remediar momentaneamente que sejam: e tome remédios, palavras, lágrimas, rezas e ódios... Então tento policarpamente curar tudo isso com inúteis livretes, que se amontoam inacabados, poeirentos, a entupir quase o quarto, a casa inteira, impedindo o fechamento de portas e janelas.    

Como se fosse possível fugir de nós através dos outros: procuro na prateleira um vidro ainda fechado de Pílulas do Mattos... e outro, já bastante usado, do Emplastro Brás Cubas!




segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

"Velho Ano Novo", de Raymundo Netto para O POVO


Para Zuila Nóbrega

Bate-me à porta o de 2022. O Velho, o de 2021, pula-me a janela, feito um amante em cinzas, sem despedidas. O Novo chega envolto em fraldas enrugadas de promessas de esperanças, o anúncio de vida bafejante aos olhos nunca tristes, sempre azuis, a trazer, como de costume, as mãos vazias. Já amadureci o suficiente para saber: ele nada traz que nós já não tenhamos. Pois sim, vem ele, todo em Menino, e abanca-se no sofá. Olha-me terno, como a saber de tudo de mim. Sorri balançando as perninhas ligeiras e pergunta sobre o Velho, o que foi dele. Poderia dizer muito, entre confissões cansadas de se repetir por demãos de cal de incompreensão e certa autopiedade, mas pouco de nada lhe disse, porque a palavra falada seca a língua, trava à garganta, finca-se entre os dentes, dói ao peito resfolegante. O pensamento, coitado, mais confuso do que provador feminino em véspera de Natal, despeja as suas verdades: “Tenho os melhores amigos do mundo, a melhor família – embora me sinta irremediavelmente só – e o módico castigo de tentar escrever escrevendo. Entre palavras, a correria insensata, sempre de trabalho – mais do que mereço –, mais dos outros e pouco de mim.

Mesmo assim, passei a limpo as minhas faltas, ausências, cansaços e promessas não cumpridas que puseram por terra a estima de alguns menos compreensivos. Tinha que lembrar e lhes pedir desculpas. Antes, lembrar de!

Na semana passada, durante uma das 100 confraternizações em que fui convidado – cheguei atrasado ou faltei –, uma senhora, a dona Zuila, no ecoar de seus 92 anos, olhou-me nos olhos e vozeou: “A vida é breve demais... É maravilhosa, mas o que fica é sempre muito, muito pouco.”

Tempo... sempre o Novo e o Velho brincando de revezamento, como a pular carniça, sem dós de seu ninguém, imagine se de mim. Às palavras da dona Zuila, deu-se a melódia: a incompletude de vida baixou-me em cortina. A lua, toda céu, insinuava ondas no mar. Desfiando a história de M., que começou na cachoeira do Riacho do Sangue, rompeu-me o coração alfinetado de saudades – não há uma única lembrança que não me doa –, o desejo de saltar no escuro, a esfolhar uma a uma das mealhas de meus dias, desfazer-me dos trilhos seguros, largar por aí o entulho às costas, desmanchar os escritos, continuar a apaixonar-me, como desde garoto, pela desconhecida que me passa na rua, mesmo quando ela nunca o fora nem jamais o será por mim. Amar, um dia – ou dois –, ganhar o mundo, perder a vida, sumir! Ora, como me lembra a princesa Isadora, das Claráguas del Noroña, na voz de Manoel de Barros: “Tenho em mim esse atraso de nascença.”

Daí que o improviso dessa crônica berce sem atrasos ou pudores e seja absolutamente branco, como se não existisse, nem fosse legível, como não se pudesse guardar. Que se queime, que se rasgue, que seja esquecida, que carregue do cimo distante a paz mais incômoda. Que chegue como sorriso tatuado na testa, a desconstruir espíritos, a apagar velas, a torcer orelhas, a beber-lhes da carne. Assim, verei aquele Menino-Velho se ir, veloz, mas marcando em definitivo a única coisa que nos pertence realmente nesta vida: o mais que imperfeito e impaciente AGORA!

 

P.S.: vez por outra eu me lembro do mundo grande.