No último sábado, 5 de agosto, tive o prazer de ir ao
encontro com o escritor Raymundo Netto, que aconteceu às 10h da manhã, no museu
do Ceará, aqui em Fortaleza. O foco da reunião, promovida pelo clube de leitura
Ponto de Leitura Itinerante, seria a leitura comentada de seu primeiro livro,
"Um conto no passado: cadeiras na calçada”, bem como conhecer um pouco
mais de sua vida e obra.
Praticamente mal cheguei da recente FLIP, emendei esse evento, o
que foi ótimo para manter o espírito, a energia, o movimento, como se houvesse
alguma continuidade entre o que vivi em Paraty e agora em diante. Foi um dia de
sol intenso, completamente contrastante ao frio que peguei nos últimos dias,
mas um sol gratificante, quase de boas-vindas.
Cheguei ao museu percebendo logo um grande movimento em seu
saguão de entrada. Não conheço direito o espaço ali, só sabia que provavelmente
não precisaria subir as escadas para a área da exposição. Uma pessoa atrás do
balcão perguntou: "É pro clube de leitura?" Confirmei, já imaginando
quantas vezes devem ter perguntado isso. Fui encaminhado a uma salinha lá mesmo
no térreo, onde já estavam dezenas de pessoas, sentadas ao longo do cômodo,
entre elas o próprio Raymundo Netto, muito à vontade e sorridente.
Tive o prazer de enfim conhecê-lo pessoalmente na recente Fresta
Literária. Já ouço falar dele há tempos, de suas muito bem-vindas incursões no
mundo literário, de seu blog AlmanaCultura... Este evento agora viria como
excelente oportunidade para conhecê-lo melhor, sua visão da cidade, tão
presente em sua obra.
"Um conto no passado: cadeiras na calçada" era o
destaque da roda, mas o autor começou antes elogiando a postura mais informal
do clube de leitura, que ao escolher o museu, explora novos ambientes, sai do
trivial, e de como isso é bom para a literatura. Raymundo Netto então falou
amplamente do livro, que completa 12 anos de lançado, representando sua estreia
no meio literário. Lançou numa época em que "não estava fazendo
nada", brincou (essa brincadeira, aliás, perduraria toda a fala). A ideia
estava nele desde seus 16 anos, inspirada numa velha casa que via nas
vizinhanças de sua juventude, que um dia foi demolida. Seu processo de criação
foi lento, mas contínuo. Escreveu primeiro uma parte, depois outra, depois fez
um desenho e assim o livro foi-se articulando.
"Não tinha pretensão literária. Não conhecia ninguém da
área. Meu objetivo era falar da cidade, sempre gostei da cidade de
Fortaleza" – Raymundo Netto
Contou que levou este seu primeiro livro às editoras e órgãos
públicos e recebeu muitos elogios, mas nada além disso, não era fácil publicar.
"O mundo literário é complicado demais, não encontramos
portas abertas."
Netto disse que levou o livro à Secretaria de Cultura, e lhe foi
apresentado a editais, que sequer sabia o que eram.
"O livro é produto do edital, fui obrigado a ir a um
encontro para meio que ser divulgado e ‘provar’ a existência do livro. Achei
bem chato no início". – Netto
Através de todo esse movimento, logo teve o primeiro lançamento,
em 2005, e foi percebendo que o mundo literário lhe acolheu bem:
"Conheci muitos autores nestes encontros, Ana Miranda,
Sânzio de Azevedo... e decidi ficar um pouco com o pessoal da literatura. Não
bebo, mas estava sempre em bares, pois é onde interagia com as pessoas" –
Netto
"Escrevi nesse livro tudo o que tinha a ver com a minha
vida. Fui muito leitor de jornal, lia muito memorialistas, Adolfo Caminha,
crônicas falando sobre a cidade. Ao todo foram uns 38 anos de pesquisa. Há nele
muitas leituras espontâneas e vivências minhas. Meus avós, tios, estão neste
livro" – Netto
O autor várias vezes destacou a importância de se ler
memorialistas, que viam coisas que hoje não se vê mais, e citou Otacílio de
Azevedo e sua percepção das luzes esverdeadas na cidade. Aproveitando a ótima
estrutura do museu, com seus janelões e estilo colonial, Netto comentou:
"Encontrei muitos elementos para este livro aqui, no museu
do Ceará. Tudo isso meio que me voltou agora, ao entrar aqui. O museu participa
muito dessa história" – Netto
Raymundo Netto falou também de como vendia os livros e lidava
com a questão dos prêmios:
"Andava com meus livros no braço, divulgando para as
pessoas. Quando eu falava que ganhei o prêmio de edital, gerava interesse nas
pessoas, elas ficavam motivadas, queriam ver, ler. Mas escrevo o que quero, do
jeito que quero. Não é o prêmio que vai me dizer se é bom ou ruim" – Netto
"O maior aprendizado do escritor é a leitura. E ela deve
ser lenta, deve-se analisar os períodos, as palavras, assim nasce o escritor.
Para quem quer começar na literatura, ler 'O feijão e o sonho' é um aprendizado
e tanto" – Netto
Deu um salto rápido para falar um pouco de seu livro mais
recente, "Crônicas absurdas de segunda", seleção de 10 anos de
crônicas suas do jornal O POVO.
Raymundo nos contou também que diagramava seus livros, que
aprendeu muito de editorial quando trabalhou na secretaria de cultura, e de
como se dava seus contatos à época:
"Eu ia a todos os lançamentos da cidade, todos mesmo, fazia
programação para conseguir ver várias coisas no mesmo dia, de ônibus mesmo. Eu
fotografava tudo, acho até que tenho registro maior que das próprias pessoas
que lançavam" – Netto
"Muita gente me conhecia pelo e-mail, fazia muitos contatos
por ele, divulgando pessoas, lançamentos e cheguei até a ter meu email bloqueado
por enviar demais. Isso me fez ficar bem conhecido na época e através desses
contatos eu mandava meus textos também. Me davam retorno, era ótimo, me diziam
que tinham lido" – Netto
Falando novamente de seu processo criativo, ele relembrou
histórias de infância, da rebeldia que tinha, de seu contato com o avô, que lhe
ensinou a tocar violão e de como isso se reflete no livro, bem como detalhes da
própria escrita:
"Quando se escreve, é bom não ser muito cerebral. Deixe
livre, não se prenda tanto a seus anseios, a seus medos."
Escrevi na 1ª pessoa para que os muitos 'eus' de alguma forma
trouxessem proximidade ao leitor"
"Sabia, na época, pouca coisa, era mais instintivo, das
leituras que fazia" - Netto
"No tempo desse livro, escutava muito músicas da época,
como Nelson Gonçalves, 'o difícil do amor é saber renunciar', e elas estão nele
– Netto, citando a música "Renúncia"
“Não sei exatamente de onde vêm os nomes de meus personagens,
mas não penso muito, são nomes simples, me ocorrem e os uso. O personagem
principal aqui não é Américo ou Olívia, mas a cidade, sobretudo a cidade” –
Netto
O livro, "Um conto no passado: cadeiras na calçada”,
atualmente esgotado, tinha um único exemplar ali presente, do qual o escritor
se valia para ler trechos e falar sobre. Revelou que planejava uma trilogia
para ele, mas não sabe se irá em frente com essa ideia.
Falando um pouco de sua vida antes da literatura, disse ter
formação inicial em fisioterapia, o que arrancou algumas caras de espanto.
“Estudei muito, fiz muito nessa área, mas não me sentia de fato realizado.
Passei por quadrinhos, cinema, faculdade de teologia, fiquei um tempo ‘sem
fazer nada’ e hoje trabalho na fundação Demócrito Rocha”
Todos em volta ouviam atentos às palavras do autor, comentando e
perguntando aqui e acolá, puxando dele mais detalhes. Percebi que muitos o
conheciam de longos tempos e me senti bem por estar ali, de alguma forma
interagindo com toda aquela história, aquela vivência, que até identifiquei um
pouco comigo.
“Antigamente, a cidade de Fortaleza era o centro, somente o
centro. Não existia rádio, TV ou internet, somente o jornal. No centro
acontecia tudo”
Para finalizar a fala, Raymundo Netto leu um trecho do livro,
uma leitura saborosa, de quem gosta do que faz, de quem vibra a cada palavra.
Era possível sentir, perceber isso, sobretudo em seu bom humor durante as quase
duas horas deste encontro. Alguém ainda comentou se ele não fazia poesia, ao
que disse que até tinha tentado, mas não gostava delas. “É mais comum começar a
escrever, os jovens, poesia do que prosa, sempre vejo mais” Mas eis que o
pessoal do clube de leitura apareceu com um de seus poemas, impresso em folhas,
diretamente distribuído a cada um dos presentes. Intitulado “Fortaleza?”, todos
foram convidados a fazer uma leitura conjunta daquele texto, a um Raymundo
Netto surpreso e admirado. A leitura parecia quase uma oração, puxada por vinte
ou trinta vozes, que demoraram um pouco a entrar no compasso, mas logo se
acertaram. A “reza” selou o desfecho da fala, terminando em aplausos efusivos.
Houve ainda vários sorteios de livros, a obra completa do autor,
bem como de outros escritores presentes, feitos a partir de um aplicativo de
celular. A maior vontade, após toda essa fala, era mesmo ler o livro, mas
infelizmente não havia outro senão aquele na mão de Netto... que logo foi
sorteado. Achei estranho ele não ser mais editado. Após uma fala tão profunda,
seria ótimo que estivesse disponível a todos. Não ganhei nenhum dos sorteios, mas
só em ter podido viver tudo aquilo, já me senti premiado. Acabei por comprar um
dos livros de contos, “Os Acangapebas”, vendido ali mesmo no museu, para
aproveitar aquela acolhida. Após palestras e falas como essa, é engraçado como
de alguma forma parecemos nos sentir mais próximos dos autores, passamos a
conhecê-los melhor, a enxergar melhor suas realidades, é uma troca maravilhosa.
Dezenas de fotos foram tiradas, todos queriam o melhor registro daquele
momento. Celular atrás de celular, a foto final, da qual até eu fiz parte, deve
ter revezado mais de cinco aparelhos.
E não acabaria por aqui, ainda. Raymundo Netto convidou todos a
uma breve caminhada pelo centro, para falar um pouco sobre uma Fortaleza que
não existe mais, embora ainda exista. O grupo se dissipou um pouco, mas várias
pessoas o acompanharam na empreitada, mesmo sob o sol do meio dia. Começando
pela Praça dos Leões, o autor contou um pouco do passado, de décadas atrás, dos
costumes, dos prédios do entorno, da praça em si, das árvores, do general
Tibúrcio, quase com a segurança e propriedade de quem viveu tal época.
Em seguida, a turma seguiu até a praça do Ferreira, onde tivemos
mais outros focos observativos, nos casarões, prédios comerciais, cujas
fachadas revelavam detalhes obscuros e esquecidos, trazidos à tona por Raymundo
Netto. Um pouco dessa visão do passado, em contrapartida aos dias de hoje, nos
deixou quase em estado de suspensão, surpresos por ver tanta história esquecida
e desvalorizada. Parar um pouco para olhar, contemplar a cidade, é cada vez
mais raro, quase desnecessário para a maioria, mas é incrível o que se pode
ver, ou mesmo não ver, ao fazer isso. Uma das maiores revelações foi quanto à
torre do relógio: Netto disse que a praça já passou por severas reformas ao
longo dos anos, mas que parte da estrutura da torre original (muito mais alta
que a atual), ainda pode ser vista lá, na forma de uma cacimba. Todos correram
para ver, e lá estava um pedaço vivo de memória, lutando para ser visto,
lembrado, a quem se permitisse.
O passeio poderia ter sido muito mais longo, como o próprio
Raymundo Netto sugeriu, mas o sol seguia implacável, bem como a fome da hora do
almoço. O escritor agradeceu a todos pela presença, sugerindo uma continuação
do percurso no centro um outro dia.
Saí desse encontro muito fortificado, como se tivesse vivido
décadas em poucas horas. O olhar da cidade, que já é um tema muito recorrente
em grande parte de meu trabalho, parece ter ganhado um impulso extra. Sentia
fervilhar o frescor de novas e ambiciosas ideias.
No ônibus de volta para casa, fui me deliciando do saboroso “Os
Acangapebas”, antologia agradável e cativante, fragmentos de tantas realidades
misturadas, refletidas ainda na cidade, nas calçadas… do ouvir histórias, pelo
prazer da palavra, do narrar.
Coloquemos as cadeiras na calçada, este é o mundo de Raymundo
Netto.
Créditos das Fotos: Kátia Teles, Beto Paiva, Cris Menezes, Alque, Sonha Nobre, Ana Remígio, Silas Falcão, Beth Albuquerque, Maria Inês Ramalho, Francisco José Jr e Leonardo Nóbrega.