"Ora, deixemos esses passados mortos e vivamos o
presente. Uliyana chegaria dentro de alguns minutos e eu a pensar em escritores
medíocres. Entreguei-me, de olhos fechados, a fantasiar suas feições. Por que
teria me procurado? Informou-me, por telefone, ter percorrido quase toda
Fortaleza: da estátua de Iracema à feirinha de artesanato da Beira-mar, do
centro cultural Dragão do Mar aos caranguejos da praia do Futuro. E por quais
vias você me descobriu, ó czarina de meus delírios pós-soviéticos? Ofereceu-se
para vir ao Monte Castelo, onde moro. Pode ser agora? Pode ser a qualquer hora.
Passadas cinco páginas de Tchekhov, um táxi branco e reluzente deixou diante de
minha mansão a mais estonteante das raparigas russas de todas as eras. Joguei o
contista sobre o diário e corri a abraçá-la. Trazia livrinho dentro da bolsa
vermelha: O senhor pode me dar autógrafo? Percebi logo tratar-se de exemplar da
edição russa de Carnavalha."(...)
Era assim a vida animada e fantástica de Nilto Maciel, na sua
casa no Monte Castelo, onde residia sozinho, balançando na cadeira em frente à
TV, lendo as centenas de livros que lhe chegavam pelo correio, ou debruçado num
computador a alimentar famintos blogs e a escrever todotempo o tempotodo.
Por vezes, já pela noitinha, após a sua sopa e remédios — éramos
vizinhos —, ligava apenas para saber se podia desligar seu computador
moderno, cheio de mensagens alienígenas, ou se eu achava que daria tempo de retirar
dele um valioso pendrive sem o risco de perder a sua irreparável "obra
completa".
Deitado num travesseiros de sonhos, ou de ficções, acordava
com a cabeça pintada de contos, crônicas, romances, ou mesmo daquelas piadinhas
infames ou irônicas que os amigos se acostumaram a ouvir em suas ligações, nas
quais com a voz disfarçada, meio gutural, dizia:
— Meu amigo... estavam agora mesmo falando mal
de você... Sabe quem foi?
— Não, Nilto... (Sempre) Não, Nilto... Fala logo... O
que foi?
E ele ria uma gargalhada quase que dramática, divertindo-se, e comentava
causos que nunca sabíamos se eram verdades ou mentiras. Com ele, sempre era
assim, nunca se podia ter a completa certeza. Hoje, durante a triste nova da
tarde, tive essa mesma impressão: Será essa apenas mais uma marmota do Nilto
Maciel? Verdade ou mentira?
Havia lá suas coisas, seus livros cuidadosamente separados
nas prateleiras, sua cadeira de balanço, seus óculos, o fone e os controles da
TV ao lado dela. O computador ligado, assim como a luz da sala, provavelmente
ele ainda trabalhava, notívago que era. No sofá, a toalha com o brasão do
Fortaleza e uma calça, deixada sempre a postos, para o caso de aparecer visita.
No quarto, uma coleção de dvds, uma surpresa para as filhas, num deles um
adesivo remetia à sua querida "Tusa". Desabei com isso.
Na cozinha, ao trancar a janela, pude ouvir o eco ainda
fresco de sua voz: "Netto, quer uma coca-cola, quer? Eu pego a sua
coca-cola... Ou quer alguma coisa mais forte?"
Ao lado, na poltrona, a mala feita, separada com antecedência
para ir ao Encontro de Literatura Fantástica, em Sobral, onde abriria o evento.
No jardim, livros envelopados que ele nunca lerá, de amigos que ele sempre
divulgou em seu blog, dentre eles Enéas Athanázio, Geraldo Jesuíno e Francisco Miguel Moura.
Pensei muito num fantasma que me atormenta. Lembrei das vezes
que conversamos sobre isso. Como ele nunca reconheceu esse fantasma, nunca me
levou a sério. "Era a vida, Nettó."
Hoje, assisti à saída silenciosa de Nilto de sua casa, deixando
para sempre os seus livros colecionados durante a vida de literatura e os seus
arquivos de uma obra completa que nós também não conheceremos. O vi carregado e
imaginei que, ao invés de homens simples do IML, eram aqueles seus admiradores
leais, carregando-o nos braços para um pomposo carro à espera da glória da
imortalidade (leia-se não esquecimento) almejada por todo persistente escritor. Acenei timidamente, da
sala de visitas, entendendo ser aquela a última vez que nos encontraríamos ali.
Lamentei, claro, todos os momentos perdidos, mas prefiro agora pensar no que
fizemos e rimos juntos.
Vai-se Nilto Maciel, que nos últimos anos de sua vida
esforçou-se para não ser esquecido, publicando um livro atrás do outro,
inclusive fortuna crítica e memórias. Vai, mas não vai de todo, deixa aqui a
sua voz, os seus pensamentos mais ousados, as fantasias, a sua arte, a transgressão
e a loucura de viver "sem fronteiras" a sua paixão literária.
Nilto, vai com Deus, irmãozinho. Fica a sua falta, mas a lembrança nos brilha mais.