terça-feira, 31 de dezembro de 2013

"Totem e Tabu", uma leitura de Alfredo Monte (32.12)


“O problema pareceria ainda mais difícil se pudéssemos admitir que existem moções psíquicas que podem ser reprimidas de maneira tão radical que não deixam nenhum fenômeno residual. Só que isso não ocorre. A mais forte repressão tem de dar lugar a moções substitutivas distorcidas e às reações que delas se seguem. Mas então estamos autorizados a supor que nenhuma geração é capaz de ocultar da seguinte seus processos psíquicos mais significativos. É que a psicanálise nos ensinou que cada ser humano possui um aparelho em sua atividade mental inconsciente que lhe permite interpretar as reações de outros seres humanos, isto é, desfazer as distorções que o outro empreendeu na expressão de seus sentimentos. Por essa via da compreensão inconsciente de todos os costumes, cerimônias e normas deixadas pela relação original com o pai primordial, mesmo as gerações mais tardias poderiam ter sido bem-sucedidas na recepção daquela herança emocional.”
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de dezembro de 2013)

Aos 57 anos, vivendo um momento crucial nas suas relações (foi a época da ruptura com Jung), Sigmund Freud (1856-1939) publicou um de seus trabalhos mais importantes, cujas ideias básicas circularam intensamente pela corrente sanguínea do século passado, mesmo combatidas, ridicularizadas como fantasiosas, postas em dúvida por avanços em diversos campos científicos: Totem e Tabu, que chegou ao  centenário em 2013[1].
Reunindo quatro ensaios, o sempre arrojado criador da psicanálise analisa os dois termos do título utilizando seu vasto conhecimento de arqueologia, etnologia, mitologia e folclore; dessa forma, faz um escrupuloso mapeamento enciclopédico, um hábito seu desde sua primeira obra de vulto, A Interpretação dos Sonhos (1900), mesmo desculpando-se frequentemente com o leitor pela exposição sumária das concepções totêmicas e animistas dos chamados povos primitivos (totem, grosso modo, seria o ser ou o objeto venerado por um grupo humano— sendo o mais comum um “animal sagrado”)[2].
O que chama a atenção de Freud para o totemismo é a presença universal do tabu do incesto. Por que esse horror tão arraigado? A partir do segundo ensaio (O tabu e a ambivalência dos sentimentos), sua experiência clínica e analítica com indivíduos neuróticos, obsessivos, servirá de paralelo ao bosquejo empreendido do papel do tabu na psicologia dos povos. Em ambos os casos, há uma aparente ausência de motivos para os preceitos proibitivos; há um caráter deslocável (o objeto pode mudar) e um perigo de contágio e mácula pelo proibido; há a reiteração através de  ações cerimoniosas, rituais, por necessidade interior (pressão psíquica).
Como se sabe, o autor de Totem e Tabu era um escritor notável e um ótimo “contador de casos”, então não é árduo nem árido acompanhar esse progressivo entremeio das disciplinas coletivas (estudo dos povos e das mentalidades) e de casos individuais. Aonde ele quer chegar? À afirmação de que os mecanismos psíquicos em jogo são ambivalentes: o que é afeto e veneração também oculta ódio e hostilidade. Assim ficaria explicada a relação complicada dos vivos com seus mortos — e concepções como a de seres sobrenaturais malignos, como os demônios.
O terreno fica preparado para os dois últimos ensaios, saltos mortais em termos teóricos. Em Animismo, Magia e Onipotência dos Pensamentos, Freud equipara a fase animista (calcada no “pensamento mágico”), pré-religiosa dos povos com o narcisismo, uma de suas concepções fundamentais com relação ao desenvolvimento da personalidade, quando o caráter não se submeteu ainda ao princípio da realidade.
A proposição freudiana mais avassaladora faz sua aparição no ensaio-clímax, O Retorno Infantil do Totemismo. Partindo do conceito de Darwin sobre o agrupamento humano das origens, a horda, e rastreando o costume da “refeição totêmica”, da festa onde se partilha o animal sagrado, que depois se metamorfosearia em várias práticas religiosas (como a eucaristia), ele especula que o surgimento da religião (com todas as suas noções de culpa e expiação) estaria imbricado no complexo de Édipo (a fixação no Pai). Na horda primitiva, o pai tomava para si todas as mulheres e excluía os filhos do poder e da coabitação sexual. Eles então se uniram (tal como se fossem os Irmãos Karamázov da Pré-História) contra ele, executando o crime primordial, o parricídio, que desde então ficou inculcado na psique das futuras gerações (isso é que inconsciente coletivo!).
Nenhum deles tinha a força do pai para liderar a horda e assim surgiram os clãs humanos fraternos (com todas as suas ambivalências). A figura paterna nunca foi esquecida, porém. Transformou-se no animal totêmico e em torno dele se constelaram tabus, preceitos do que era permitido ou proibido e assim a humanidade chegou às suas primeiras criações institucionais em torno da moralidade e da adoração de um ser divinizado: “… no complexo de Édipo coincidem os inícios da religião, da moralidade, da sociedade e da arte, em completa concordância com a constatação da psicanálise de que esse complexo constitui o núcleo de todas as neuroses (…) Supomos, sobretudo, que a consciência de culpa referente a um ato pode sobreviver por mitos milênios e permanecer eficaz em gerações que nada podiam saber desse ato.”
Ou seja, esse pequeno volume revelava-se nada menos que explosivo em sua grande síntese da história humana, a qual (como  Freud mesmo diz) confirmava o que os devotos costumam dizer: “que todos nós somos grandes pecadores”.
Não é ocioso acrescentar que o próprio Freud experimentava naquele momento o agudo temor do parricídio, com a deserção de  Adler e Jung[3]. No final, ele acabaria sendo desmembrado numa espécie de refeição totêmica entre seus discípulos, os fraternos e os hostis.
Nota sobre a epígrafe- O que Renato Zwick traduz como “moção”, é traduzido por Paulo César de Souza e Órizon Carneiro Muniz como “impulso”.

TRECHO SELECIONADO
[na versão de Renato Zwick]:
As mais antigas e mais importantes proibições do tabu são as duas leis fundamentais do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os membros do sexo oposto pertencentes ao mesmo totem.
    Esses seriam, portanto, os mais antigos e mais fortes desejos do ser humano. Não poderemos compreender isso e, consequentemente, não poderemos testar nossa hipótese nesses exemplos enquanto o sentido e a origem do sistema totêmico continuarem tão completamente desconhecidos para nós. Mas quem conhece os resultados da investigação psicanalítica do indivíduo será lembrado, pelo teor desses dois tabus e pelo fato de estarem associados, de algo bem determinado que os psicanalistas declaram ser o ponto nodal dos desejos infantis e o núcleo da neurose.
    A diversidade dos fenômenos do tabu, que levou às tentativas de classificação anteriormente comunicadas, se funde para nós numa unidade, e da seguinte maneira: o fundamento do tabu é um ato proibido para o qual existe uma forte inclinação no inconsciente.
[na versão de Paulo César de Souza]:
As mais antigas e importantes proibições do tabu são as duas leis fundamentais do totemismo: não liquidar o animal totêmico e evitar relações com os indivíduos do mesmo totem que são do sexo oposto.
    Esses devem ser, então, os mais antigos e poderosos apetites humanos. Não poderemos compreender isso, nem verificar nossa premissa com base nesses exemplos, enquanto o sentido e a origem do sistema totêmico nos forem tão desconhecidos. Mas, para quem conhece os resultados da investigação psicanalítica do indivíduo, o próprio enunciado desses dois tabus e o fato de andarem juntos lembrarão algo bastante definido, que os psicanalistas veem como o ponto nodal dos desejos infantis e como núcleo da neurose.
     A variedade das manifestações do tabu, que levou às tentativas de classificação já mencionadas, reduz-se para nós a uma unidade: o fundamento do tabu é uma ação proibida, para a qual há um forte pendor no inconsciente.
[na versão de Órizon Carneiro Muniz]:
As mais antigas e importantes proibições ligadas ao tabu são as duas leis básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os membros do clã totêmico do sexo oposto.
    Estes devem ser, então, os mais antigos e poderosos dos desejos humanos. Não podemos esperar compreender bem isso nem testar nossa hipótese com esses dois exemplos, enquanto ignorarmos totalmente o significado e a origem do sistema totêmico. Mas a enunciação desses dois tabus e o fato de sua concomitância farão lembrar a qualquer pessoa familiarizada com os achados de pesquisas psicanalíticas em indivíduos algo bem definido, que os psicanalistas consideram como sendo o ponto central dos desejos da infância e o núcleo das neuroses.
     A multiplicidade das manifestações do tabu, que levaram às tentativas de classificação que já tive ocasião de mencionar, ficam reduzidas pela nossa tese a uma única unidade: a base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe forte inclinação do inconsciente.
[1] [1] A tradução comentada nesta resenha é a de Renato Zwick  (L&PM, 2013): Totem e Tabu- Algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos [no original Totem und Tabu.Einege Übereinstinmmugen in Seelenleben der Wilden und der Neurotiker], com revisão técnica de Paulo Endo. Zwick já nos brindara este ano com uma nova versão de A Interpretação dos Sonhos.
Para fins de consulta e comparação, utilizei também as seguintes traduções:
– de Paulo César de Souza (Totem e Tabu, Contribuição à História do Movimento Psicanalítico e outros textos, volume 11 de “Sigmund Freud- Obras Completas, Companhia das Letras, 2012)—uma edição um tantinho “enxugada” dessa versão de Totem e Tabu foi publicada à parte pela Penguin/Companhia das Letras (2013);
–de Órizon Carneiro Muniz (Totem e Tabu e outros trabalhos, 1913-1914, volume XIII da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud, Imago, 2006.
[2] Logo no início do terceiro ensaio há uma nota de rodapé que se reveste de uma conotação divertida. Ali, como em outras passagens, Freud lamenta a necessidade de simplificar o material. E arremata: “A autonomia do autor apenas se pode manifestar na escolha que fez  dos temas e das opiniões”.
A diversão fica por conta do “apenas”. Ora, Freud sempre foi um autor muito consciencioso com suas fontes. Mas todo esse escrúpulo não o impede de, ao fim e ao cabo, tratar toda aquela vastidão apenas como território introdutório para o essencial, o realmente novo e desbravador, que vai surgir da “escolha” que fez dos temas e a expressão das “opiniões”; em suma, aquilo que “apenas” lhe coube.
E quando se tem consciência do teor das conclusões de Totem e Tabu, um salto no abismo (ainda mais do que todas as hipóteses psicanalíticas anteriores), afora a própria personalidade do seu autor, aí sim a nota ganha um toque quase malicioso.
Outra nota de rodapé (tenho uma predileção possivelmente patológica por notas de rodapé), muito sensata e esclarecedora, que eu gostaria de ressaltar, aparece no quarto ensaio. Nela, somos advertidos de que o estudo dos chamados povos primitivos muitas vezes se deu por vias indiretas, que facilitaram visões possivelmente deturpadas e “construídas”: “Não se deve esquecer que os povos primitivos não são povos jovens, e sim, na verdade, tão antigos quanto os mais civilizados, e que não se tem direito a esperar que tenham conservado suas ideias e instituições originais sem qualquer desenvolvimento e distorção para que tomemos conhecimento delas”. Mais adiante: “Assim, a determinação do estado original é sempre uma questão de construção”.
Assumindo esse terreno escorregadio (ou mesmo pantanoso) para as suas construções, ou seja, suas hipóteses avassaladoras, nem por isso  Freud estava menos convicto da sua veracidade básica (e já adianto que ele consegue deixar o seu leitor convicto dessa veracidade, apesar de todos os avisos formais e corretos).
[3] É preciso ter em mente que Totem e Tabu também é, em larga medida, um libelo anti-Jung; este também à época se embrenhava em mitologia, folclore, religião e psicologia dos povos, com resultados inteiramente diferentes (e inaceitáveis para Freud, principalmente pela motivação “ariana” que fundamentava as investigações junguianas), que resultaram num de seus livros mais famosos, e o primeiro importante,  Metamorfoses e Símbolos da Libido (1912), cuja versão definitiva ficou como Símbolos da Transformação (volume 5 das Obras Completas)- uma leitura árdua, ao contrário do livro de Freud.

Sobre esse momento específico da vida de Jung ver aqui no blog: 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

"A Terrível História de Jesus" (REVISTA e COMPLETA), para o Natal de Raymundo Netto (24.12)



"Capoeira na praia", de Carybé (2003)

A Vinda-Luz
Jesus era baiano. Nazaré, a mãe, jovem roceira, na incerta noite, deu-lhe à luz, escanchada sobre estrelas-de-jerusalém, à beira de uma levada desalumiada sob o véu de lua nova da fazenda Cabaceiras, na vila de Curralinho. Ali, apenas ela e uma cachimbeira, rotineira de matar buchos, mas que, naquela vez, seria por suas mãos os primeiros afagos e a acolhida do rebento.
Não fosse o destino, três boêmios bêbados a fornicar com umas quengas no meio do canavial, talvez o menino e a mãe não resistissem ao frio, à falta de cuidados e do de comer. Os pleibóis, que nunca viram menino novo, colocaram mãe e filho na carroceria da caminhonete, deixando-os no hospital da cidade, local onde, naquela noite, o seu Zé, um quinquagenário dono de um pequena movelaria, se encontrava à dor de uma gastrite. Solteirão, encantara-se logo daquela cabrita nova e despossuída. Ademanhã, Nazaré, de não ter um travesseiro onde encostar a cabeça, aceitou amasiar-se com o desconhecido.
Contudo, Jesus, para sempre sem nome de pai, era inda menino quando o Zé falecera. A, então, viúva Nazaré deixou as coisas para trás, porque a vida só aprendeu a caminhar de olhos no futuro, e decidiu ir à procura de Salvador, se arranchando num tugúrio qualquer próximo à fábrica Barreto de Araújo, de beneficiamento de cacau, onde conseguira modesta função.

O Sumiço
Em sua lida de manhãs e tardes de operária, não tinha noção do que o filho fazia durante o dia, entregue a sorte e ao olhar muito solícito e pouco atento de umas vizinhas. Sabia, entretanto, que crescia falante, descolado, cheio de ginga e de conversa. Era comum acordar-se tarde, num vagarejo devaneado de mundo, descendo a ladeira do Bonfim com o sorriso frouxo e branco de negrinho safo, com olhos cor de céu de domingo, orgulhoso do brinco de ouro na orelha. As moças, dentre todos, lançavam os olhares desejosos a despertar a ciumeira dos demais rapazes do largo: "Tabareuzim folgado esse..."
Na favela todos conheciam o Jesus da Nazaré, moleque de ser visto em bares e botecos da região — dentre eles o famoso "Candelária" — assuntando com os mais velhos em troca do café da manhã, da broa, do saquinho de peta, jujubas, do PF de lei, ou mesmo por trocados, que recebia com reverência envaidecedora: "Eitcha, meu rei, que obrigado. Mais há Deus pra lhe dar."
Diziam que ele "era de vez" e que contava, sentado em latas de querosene "Jacaré", causos fantásticos da cosmogonia universal, uns remendões de almanaques, gibis, jornais ou de livros infantis e outras curiosidades que aquela baianada sequer sonhava, se rindo demais quando chegavam pela voz daquela coisinha sem eira nem beira. Mas Jesus não se detinha apenas nas historietas fantásticas, não.  Quando a recepção do público esfriava, se punha a falar mal do governador, do prefeito, do fiscal sanitário, dos mata-mosquitos, enfim, denunciava os males de todo um mundo, desde que o citado não estivesse presente, o que agradava a todos.  Tinha dias, porém, que adentrava a noite e, então, Nazaré, destruída da labuta, chegava a casa vazia e sem a ceia posta. Irritada, corria a ladeira a perguntar pelo bruguelo. Para ela, nada pior do que vê-lo em meio àqueles beberrões, cheios até a tampa de aguardente. Sem dó, tomava o filho, lhe torcendo feroz e escandalosamente a orelha na frente da plateia a requerer sua paciência ou a destacar a suntuosa nádega materna. Mas nem adiantava, pois, no dia seguinte, lá estava o danado do garoto a contar vantagem da obra. A mãe descia novamente, chinela na mão, e quando vinha torcer-lhe a orelha ainda inchada o danado lhe oferecia a outra, senão não aguentava mesmo...

Batista
Assim, Jesus cresceu rebelde: sem querer ir à escola, sem cumprir seus horários de jornaleiro, e, mais tarde, rejeitado como reservista do serviço militar. Era de sua mania se opor a tudo que lhe fosse posto. Ria-se dos dogmas, das regras, das leis! Contestava-os numa inadequação terrena  exemplar e absoluta. Já tivera, inclusive, passagens na cadeia, dentre outros motivos, por derrubar dezenas de tabuleiros de camelôs, provocando uma balbúrdia dos diabos, e lavando de acarajés e caruru a escadaria da igreja. O rapaz era espritado, não media palavras, além de frequentar as obscuras rodas de capoeira do mestre Batista — que mais tarde, saberiam, num crime passional, seria violentamente degolado.

As Tentações
Com receio de seu filho também ser morto, Nazaré, com coração acochado, o expulsou  de casa. Jesus, sem direção, fez o que todo desorientado faz: tomou o rumo do mar! Chegando em frente à foz do Rio Vermelho, subiu no alto farol, encostou-se à lanterna, e de lá passou os dias a observar estrelas mudas numa fogueirinha de papel. Foi uma viagem existencial tão longa de esquecer de comer e de dormir. Seus olhos e ouvidos foram, então, tomados a ver e a ouvir coisas. Foi quando uma menina num vestido de chita floral lhe apareceu. Tinha o sorriso terno, quase divino, e a voz de rouxinol. Percebendo-lhe faminto, cofiou-lhe a barba grossa, e lhe ofereceu pedras, como se fora pão. Ele não quis. Daí, ela colocou-se às suas costas e acariciou as escápulas nuas: "Mas que belas asas você tem, seu moço... Ah, se eu tivesse asas assim, eu me colocaria entre as gaivotas, pularia por sobre as nuvens, eu quereria ser o Sol! Salte, Jesus, salte e voe!". Todavia, vendo a apatia daquele homem entregue ao mais fugaz pensamento, ela se enfureceu. Diante de seus olhos, por final, se tornou mulher, linda, a pele branca a escorrer mel, e se fez nua e pronta a entrega ardente da sua paixão. Mas, de repente, uma revoada de trinta-réis preto e branco partiu para cima da mulher, atacando-a. Ela se pôs a gritar com língua de fogo, estrebuchando-se contra o ataque violento das centenas de aves que, violentas, trinchavam-lhe o corpo. Então, com os pedacinhos de sua carne inda quente no bico, uma a uma pousavam nos lábios de Jesus, alimentando-o. Depois, unidas, carregaram o corpo magro e alquebrado do rapaz, cruzando o encarnado céu quando o sol ajoelhava-se no horizonte, em direção a vila da Praia do Forte.

A Iniciação
A imagem daquele homem carregado por um bando de aves entre nuvens do céu assombrou o grupo de onze pescadores pobres que se encontravam na praia da aldeia da vila. As aves largaram o rapaz no dorso da onda, a sétima, depois da passagem do vento que escancarava as vistas curiosas.
Os pescadores, percebendo que aquele mortiço desconhecido poderia se afogar, partiram ao seu encontro. Sem saber o que fazer, levaram-no aonde sempre se levavam as pessoas doentes daquela aldeota: para a choça de d. Mãinha Purah.
Ela, idosa, quase cega, pequena e artrítica, mas com dons de predição, o recebeu sem espanto. Disse para deitá-lo numa tipoia no fundo do corredor escuro onde, durante duas semanas, o trataria com rezas, limparia as suas feridas e o alimentaria com legumes, caldos  e raízes.
Jesus melhorava a cada dia e, por todos eles, proseava longamente com a velha num telheiro ao lado de sua hortinha, no qual o ensinava a fazer meizinhas, xaropes e outras beberagens caseiras. Também aprendeu a fazer pão e acompanhava a mãinha nas visitas regulares aos doentes e idosos daquela aldeia. Foi quando Jesus tomou conhecimento da miséria daquele povo, sem saneamento básico, sem escola e assistência médica. Acompanhava e consolava as famílias quando da perda de seus anjinhos. Ouvia os reclamos sobre a exploração de atravessadores e comerciantes da vila ou da capital, que tomavam a preço de nada a sua pesca e a produção suada de rendas e redes. Revoltava-se com o abandono da comunidade e a encorajava a resistir, reconhecer e brigar pelos seus direitos. A sua resposta, quase na totalidade, era o silêncio cabal da impotência.
Tomado de angústia e conflitos, quando não cumpria as "visitas de necessidade" com a d. Purah, passava o dia na praia. Sentava-se numa duna branca, onde os pássaros cercavam-lhe na cata de pequenos insetos entre os arbustos, verbena rosas e madressilvas, e emprestava os ouvidos, sempre mais a escutar do que a falar. As gentes o procuravam por curiosidade ou mesmo para lhe contar de seus problemas; outras pediam receitas de lambedor; outras queriam saber se viera mesmo do céu e se de lá podia-se ver anjos; e toda uma sorte de coisas sobre o Céu e a Terra e a mais vã filosofia. O moço era paciente. Com uma latinha velha e uns tocos de carvão torrava tatuís, que catava na arrebentação e comia ali mesmo. Muitas vezes, quedava-se atento assistindo a brincadeiras de meninos com espinhas de peixe ou banhando as tartarugas marinhas trazidas na ressaca de noite furiosa. Chamava as crianças, catava-lhe os piolhos e desenhava círculos na areia, cantarolando: "Que me perdoem se eu insisto neste tema/mas não sei fazer poema ou canção/ que fale de outra coisa que não seja o amor./ Se o quadradismo dos meus versos/ vai de encontro aos intelectos/ que não usam o coração como expressão."(1)
Ao final das tardes, já não estranhavam os pescadores quando ele, finalmente, se levantava e, batendo a areia da calça de algodão cru, se dirigia ao mar. Colhia nos lábios o sal, molhava de brumas os cabelos e, depois de torcer o seu dred, abria os braços a sentir a grandeza do mar na palma das mãos. O sol brilhava alaranjando o seu rosto e o vento, após serpear cada peça de suas vestes, se abrigava numa concha amarrada na cintura, reverberando em voz de canção, enquanto uma nuvem brilhante de cintilantes gotículas azuis arrodeava o seu corpo. Jesus então, numa fala diferente, passava a pregar aos peixes:
"O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!"(2)

A Chegada a Vila da Praia do Forte
Foi num domingo que chegou, com seus amigos pescadores, pela primeira vez, à praça grande da vila da Praia do Forte. Os moradores assuntavam por entreouvidos. Sabiam pela massa daquele rapaz misterioso que fazia coisas estranhas, que falava de outros mundos, a cuidar dos desassistidos. Para alguns, um lenda; para outros, um postulante político.
Jesus ganhava no sorriso cor de búzio. Encostava-se próximo às ruínas do castelo Garcia D'Ávila e reunia pessoas a contar histórias de "Era uma vez um Reino... um outro de outro mundo, muito, muito distante..."
Assim, noutras noites, passaram a perguntar pelo contador de histórias, o novo rei daquele castelo em ruínas, a exigir-lhe a presença nas noites claras de luar. E foi numa dessas noites que conheceu a jovem Madá Magdala, uma conhecida periguete filha da região, que, não fosse a intervenção de Jesus, seria violentada por um grupo de jovens baderneiros num samba. Magdala agradeceu e sumiu com a noite, assim como com a estrelas, mas não sem antes de a primeira vez confessar um seu amor.
Quando o forasteiro se pôs a emitir opiniões sobre assuntos da vila, incomodou, afinal, ninguém, é bem verdade, sabia de onde e a que vinha. Aquela história de "cair do céu carregado por pássaros", claro, seria mais uma história de pescador, uma lorota, fruto da invenção dos desocupados e ignorantes. Daí a pouco, ele quase não saía mais da vila, tornando-se um tipo popular, quase folclórico, alvo até da especulação turística.
Era de aparecer em festas, nas quais não era convidado, a distribuir garrafas de vinho; da mesma forma, comparecia a velórios e funerais onde agarrava-se aos mortos, convidando-os a passear — num desses, estava presente o Jorge Amado —; ficava horas na praça, contando histórias para as crianças, outras para as mocinhas românticas, outras para os velhos; não perdia uma reunião da comunidade, onde insurgia-se contra as iniquidades, falando em nome dos desvalidos, prostitutas, travestis, quilombolas, índios, crianças, cães e gatos. Para ele, não poderia haver a felicidade onde reinasse a miséria, a injustiça ou desigualdade. Essa vergonhosa felicidade, cria, era puro egoísmo e hipocrisia.

Judas Queriote
O mistério acerca daquele moço, chamou a atenção de Judas Queriote, um jornalista malsucedido, desesperançado com o ofício e que, desde sua demissão, carregava dívidas de toda a natureza. Viu na história de Jesus a sua remissão.  Então, aproximou-se, logo tornando-se amigos. Conversavam por horas, inibindo os ingênuos e iletrados pescadores da aldeia, ora roxos de ciúmes. O jornalista, admirador febril do peregrino, tomava nota de seus pensamentos, reivindicações e insistia em colher dele alguma tendência política e/ou doutrinária. Mas, embora à primeira vista revolucionário, Jesus nada queria saber de política, de suas estratégias ou de conceitos ideológicos. Não discutia sobre organização social e política, muito menos a financeira. Nada exigia ou esperava do Estado, nada queria com o poder, não reconhecia sequer o mérito de qualquer nome dentre os eleitos... Para ele, bastava que as pessoas fossem felizes. Elas mereciam isso, simplesmente, por estarem vivas. Certa mesmo era a sua indignação com o sofrimento alheio, com a exploração, a opressão, a violência e a maldade. Não precisava de muito, mas do suficiente. Irritava-se, entretanto, com os poderosos. E ali, com muito pouco, citaria nomes, falaria da exploração do povo e da corrupção do prefeito, dos vereadores, da omissão da Igreja, do padre, dos pastores — "sepulcros caiados" —, do juiz, do dono do cartório, do delegado.
Após exaustivas entrevistas, Judas trancou-se na pousada a redigir o seu aguardado artigo. Poderia ter revisado, mostrado a outras pessoas, pedido opinião, mas não, na sua estúpida segurança, tinha toda a certeza do mundo! Já via seu nome indicado aos grandes prêmios da imprensa brasileira, ou quiçá, mundial. Assim, tomou o primeiro ônibus a Salvador. Apresentou-se ao antigo editor, sendo parabenizado e empregado novamente. O artigo saiu no domingo, publicado em destaque, e o jornal vendeu a barulho, atraindo a atenção da mídia televisiva e radiofônica, além das redes sociais. Todos haviam de querer entrevistar o "Rei-Pescador", cotado, de já, para participação em comerciais de produtos de apelos populares de uma carangueja TV baiana.

O Juízo Final
Ora, as autoridades da vila, obviamente, não gostaram da citação de seus nomes na imprensa. A chegada das emissoras de rádio e televisão, e das revistas internacionais, apesar de aquecer o comércio, os colocava na lama, evidenciando  alguns costumes políticos não muito condizentes com a boa moral. O presidente da Câmara de Vereadores reuniu-se com o prefeito, o padre e o pastor. Criaram um discurso consensual onde acusavam Jesus de ser herege, louco, vagabundo. À noite, reunião fechada na delegacia, a deixa: "Aproveitassem o temperamento intempestivo do rapaz e criassem a situação. Ele tinha de ser preso, desmoralizado, desacreditado. E logo!"
Era noite de Natal. Estava o contador de histórias e os amigos pescadores, como de hábito, comendo azeitonas pretas e passeando por entre os arcos das ruínas do castelo, quando, do nada, uma adolescente desconhecida aproximou-se de Jesus e deu-lhe um beijo na boca. Um grupo de policiais e outros estranhos imediatamente saltaram em cima daquele triste "rei", agarrando-o num descarado flagrante: "Pedófilo! Pedófilo!"
Nem adiantou a resistência dos amigos, o rapaz foi arrastado sob a surra de rebenques até a delegacia, fato assistido com assombro e curiosidade pelos turistas e moradores da vila, sob a luz frenética de pisca-piscas. A capangada distribuía a zoada em notícias: "Abusou de uma criança, o vagabundo!" Ouvia-se da turba: "Que horror", "Pobre menina", "Monstro!", "Tarado!", "Esfola ele!"
Chegando à pequena delegacia, havia apenas uma cela. Nela, um bêbado, o Barrabás, solto para que não houvesse testemunhas para a "lição" de covardia que ali, logo, logo, teria lugar pela mão desmedida dos samangos.
Nuvens negras tomaram o céu, os penduricalhos natalinos sequestrados por um vento rodamoinho se espalhavam pelas pedras toscas. As areias polvilhadas feriam as pernas nuas e cegavam os passantes iluminados apenas por relampejos de uma chuva não concebida. Os morcegos e as corujas corriam feitos loucos para a luz e, dizem, todo o leite azedou.

As Sete Dores de Nazaré
Nazaré, por meio do noticiário televisivo, soube finalmente do paradeiro e da prisão do filho. Temendo por ele, ousou fazer o que sempre se negara: procurar o pai de Jesus.
Adonai, engenheiro que iniciara o ofício na construção de um açude no sítio em que Nazaré trabalhara, era agora um empresário bem-sucedido no ramo da construção civil. Quando soube que aquela mulher de seu passado de aventura estava à porta da firma, suou frio. Mesmo assim, por, talvez, uma curiosidade mórbida, aceitou recebê-la. O encontro marcado por ligeiro aperto de mãos foi de um constrangimento sem tamanho. A mulher nem sentar-se, nem água ou chazinho. Contou direto da sua história e pediu-lhe apoio. Rogou-lhe: "Ele é a sua imagem e semelhança... Não o abandone!"
Adonai foi só silêncio. Tentou abotoar o paletó apertado na barriga. Encaminhou-se ao lavabo, lavou as mãos, enxugou com a toalha o suor da testa e soltou o verbo: "Nazie, me perdoe, mas é o destino dele. De certa forma, convenhamos, foi ele quem o escolheu. Foi ele!"
Nazaré soluçou. Parecia-lhe então que nada havia a fazer a não ser chorar sozinha a dor de seu menino. Adonai, por desencargo de consciência, mandou Gabriel, o seu secretário de confiança, levar a mulher ao encontro do filho DELA. Ao chegar, sem forças, cansada e faminta, encontrou o tumulto formado: "Jesus é morto! Tentou reagir à prisão. Havia um punhal, não teve outro jeito. Fora apenas por defesa própria!", era o que dizia a boca coletiva de uma multidão confusa. Ao contrário dos empresários e de alguns comerciantes que comemoraram o castigo benfeito daquele pervertido, o  poviléu não arredava o pé da porta da delegacia. Acusavam a covardia. Xingavam a escória que mandava e desmandava na cidade. Nas portas cerradas das igrejas, os punhos só encontraram silêncios. A mãe, desafortunada, só queria saber dele: "Cadê o meu garoto, por favor, cadê o meu menino!" Mas ninguém sabia de nada: o corpo de Jesus sumira misteriosamente!
Caifás, o subdelegado, acusava: "Foram esses vagabundos, os amigos do elemento. Foram eles. Têm hábito de sair por aí levantando defunto. Foram eles que sumiram com o corpo."  De outro lado, Pedro Simão, um dos pescadores, negava três vezes, enquanto amanhecia e o galo cantava. Tomé, acenando um retalho ensanguentado em forma de cruz e a crer apenas no que seus olhos viam, acusava a delegacia de tentar omitir as provas do crime, na tentativa de eliminar a possibilidade de exame de corpo de delito. O padre e o pastor surgiriam apenas na manhã seguinte, oferecendo o apoio e o consolo a ambos os lados, numa resignação silenciosa, contagiosa e conveniente.

A Discípula do Rei
Ao repicar dos sinos de uma fria e incompreensível manhã, Nazaré, sozinha, assistia ao apagar de luzes dos lampiões da praça quando Madá lhe apareceu: "E a senhora é de verdade a mãe do rei?" Nazaré não entendeu, mas, fragilizada, deixou-se levar pela mocinha a contar-lhe as histórias de um reino muito, muito distante, enquanto a radiodifusora disseminava no ar uma canção-lamento: "Quem é essa mulher/ Que canta sempre esse lamento?/ Só queria lembrar o tormento/Que fez o meu filho suspirar/ (...) Quem é essa mulher/ Que canta sempre o mesmo arranjo? Só queria agasalhar meu anjo/ E deixar seu corpo descansar."(3)

Conclusão Inconclusa
Passaram dias. Os pescadores, em nome do amigo, se reuniam nos coqueirais da aldeia. Todos da comunidade manifestavam, conforme seu credo, a dor da partida tão prematura e da saudade do jovem Jesus: os cristão católicos, os evangélicos, os neopentecostais, os espiritistas e umbandistas. D. Mãinha Purah também sumira, sem levar de casa coisa alguma, deixando-a em portas abertas e, no telheiro, um ramalhete de rosas vermelhas imperecíveis.
Judas, de Salvador, enviou para os pescadores, num envelope, todo o dinheiro que ganhara com o artigo publicado e entrevistas concedidas sobre o anônimo Jesus: "Como poderia saber que isso aconteceria? Acreditava mesmo na força da figura dele perante a opinião pública. Acreditava que o povo apoiaria o meu amigo. Acreditava que poderia conseguir mesmo ajudar a vila pobre da região. Que trágico engano! Sinto muito."
E daí, numa noite estrelada onde os marulhos aqueciam os ouvidos, os pescadores estavam em uma choça com a porta completamente cerrada e, mesmo assim, alguém entrou. "Quem é você? A que vem?", perguntaram. Ele chegou mais perto, preencheu a escuridão de seu sorriso, e mostrou-lhes no corpo as feridas. Da testa seca, entretanto, desaguava um suor que, em terra, convertia-se em gotas de sangue. Os rapazes quedaram-se mudos de pensamentos e palavras, não lhe reconhecendo nem o rosto nem a voz. Quem era aquele? Até hoje não se sabe.

(1) "Você abusou", de Antonio Carlos e Jocafi
(2) "Sermão de Santo Antônio (aos peixes)", de Padre Antônio Vieira (1654)
(3) "Angélica", de Chico Buarque

domingo, 29 de dezembro de 2013

Pré-Resenha de "Totem e Tabu", por Alfredo Monte (29.12)


Logo no início do terceiro ensaio ("Animismo, Magia e Onipotência dos pensamentos") entre os quatro que compõem Totem e Tabu há uma nota de rodapé que se reveste de uma conotação divertida.
Ali, como em outras passagens, Freud lamenta a necessidade de sintetizar muito sumariamente um vasto material (a maior parte ligado a pesquisas etnológicas e mitológicas). E arremata: “A autonomia do autor apenas se pode manifestar na escolha que fez dos temas e das opiniões” (todas as citações, salvo indicação em contrário, foram extraídas da tradução de Totem e Tabu: algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos [no original "Totem und Tabu.Einege Übereinstinmmugen in Seelenleben der Wilden und der Neurotiker”], realizada por Renato Zwick (L&PM, 2013), com revisão técnica de Paulo Endo; para fins de consulta e comparação, utilizei também as seguintes traduções: 1) de Paulo César de Souza ("Totem e Tabu, Contribuição à História do Movimento Psicanalítico e outros textos", volume 11 de “Sigmund Freud- Obras Completas, Companhia das Letras, 2012)—uma edição um tantinho “enxugada” dessa versão de Totem e Tabu foi publicada à parte pela Penguin/Companhia das Letras (2013); 2) de Órizon Carneiro Muniz ("Totem e Tabu e outros trabalhos", 1913-1914, volume XIII da Edição Standard Brasileira sãs Obras Psicológicas de Sigmund Freud, Imago, 2006).
A diversão fica por conta do “apenas”. Ora, Freud sempre foi um autor muito consciencioso com o material pesquisado; quem leu, por exemplo, “A Interpretação dos Sonhos” lembrará que ele identifica escrupulosamente suas fontes e se vale de abundantes (e muito bem escolhidas) citações, de forma a fornecer realmente uma visão enciclopédica do tema de que está tratando. Mas todo esse escrúpulo não o impede de, ao fim e ao cabo, tratar toda aquela vastidão apenas como território introdutório para o essencial, o realmente novo e desbravador, que vai surgir da “escolha” que fez dos temas e a expressão das “opiniões”; em suma, aquilo que “apenas” lhe coube.
E quando se tem consciência do teor das conclusões de Totem e Tabu, cuja publicação original se tornou centenária em 2013 (ele estava com 57 anos), tão combatidas, ridicularizadas, tidas como escandalosas e fantasiosas, um salto no abismo (mesmo assim entrando na corrente sanguínea das ideias-chave do século XX), afora a própria personalidade do seu autor, aí sim a nota ganha um toque quase malicioso.
 Antes de comentar as ideias centrais dos quatro ensaios enfeixados no volume, arrisco-me a provocar a impaciência do meu leitor ressaltando outra nota de rodapé (a qual se encontra no quarto ensaio, "O retorno infantil do totemismo") muito sensata e esclarecedora. Nela, somos advertidos de que o estudo dos chamados povos primitivos muitas vezes se deu por vias indiretas, que facilitaram visões possivelmente deturpadas e “construídas”: “Não se deve esquecer que os povos primitivos não são povos jovens, e sim, na verdade, tão antigos quanto os mais civilizados, e que não se tem direito a esperar que tenham conservado suas ideias e instituições originais sem qualquer desenvolvimento e distorção para que tomemos conhecimento delas”. Mais adiante: “Assim, a determinação do estado original é sempre uma questão de construção”.
Assumindo esse terreno escorregadio (ou mesmo pantanoso) para as suas construções, ou seja, suas hipóteses avassaladoras, nem por isso Freud estava menos convicto da sua veracidade básica (e já adianto que ele consegue deixar o seu leitor convicto dessa veracidade, apesar de todos os avisos formais e corretos).

"Vinte e Nove", do Legião Urbana (29.12)


Por que hoje (há anos), 29 de dezembro, é uma data de grande reflexão.

Perdi vinte em vinte e nove amizades
Por conta de uma pedra em minhas mãos
Me embriaguei morrendo vinte e nove vezes
Estou aprendendo a viver sem você
(Já que você não me quer mais)

Passei vinte e nove meses num navio
E vinte e nove dias na prisão
E aos vinte e nove, com o retorno de Saturno
Decidi começar a viver.

Quando você deixou de me amar
Aprendi a perdoar
E a pedir perdão.
(E vinte e nove anjos me saudaram
E tive vinte e nove amigos outra vez)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

"Trem Noturno para Lisboa", uma forma cultbook de mudar de vida! (23.12)

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Pois é que acabei embarcando no "Trem  Noturno para Lisboa" (2013), filme baseado na obra homônima (lançada em 2004) do filósofo suiço, de Berna (1944), Peter Bieri, que assina Pascal Mercier, que, dizem, já vendeu mais de 2 milhões de exemplares no mundo.
Fui assisti-lo sem expectativa nenhuma, coisa a nos permitir a visita da surpresa, o que de fato aconteceu neste filme cujo elenco é formado por Jeremy Irons (Inglaterra), Melánie Laurent (França), Jack Huston (Inglaterra), Bruno Ganz (Suíça), August Diehl (Alemanha), Marco D'Almeida (Moçambique), contando com a participação não só da voz, mas do, também inglês, sr. Lee, Cristopher (bom saber que ainda está vivo... ou quase, ou não, afinal, ele é o Cristopher Lee).
Enfim, o filme nos mostra Raimund (somos tantos os raimundos) Gregorius (Jeremy Irons), um professor de Latim, Grego e Hebraico, residente em Berna, que, numa manhã chuvosa, salva a vida de uma jovem suicida em uma ponte sueca. Ela o acompanha até a sala de aula e depois desaparece, deixando para trás um casaco vermelho e um mistério. Inquieto, ainda em sua aula, Raimund pega o casaco e sai atrás dela, mas não a alcança. Mesmo assim, o professor não volta, pois, nos bolsos do casaco, um livro póstumo, Um Ourives das Palavras, do desconhecido poeta e médico português Amadeu de Almeida Prado (segundo a irmã, a tiragem do livro fora de apenas 100 exemplares). Numa breve leitura, identificou-se no texto, e descobriu entre suas páginas uma passagem de trem para Lisboa. Sem pensar, coisa difícil para quem lê demais, esquece dos alunos a esperá-lo e, com a roupa do corpo, salta no trem e começa a sua aventura em busca da vida do poeta. A fotografia do filme é belíssima, e os cenários: Berna, Lisboa e Salamanca.
Em dias em Lisboa, descobre a participação de Amadeu no movimento de resistência contra a ditadura de Salazar, conversa com familiares, amigos e correligionários, numa ânsia inexplicável de saber mais, por meio de uma narrativa delineada em flashbacks que vão, aos poucos, apresentando toda a história de vida do poeta: ideologia, amigos e amores. Aliás, é tão raro ver um filme onde o "mocinho" passa os dias com um livro nas mãos. É inspirador e já mostra a que veio o filme, cuja principal falha, a meu ver, é não ter utilizado da língua portuguesa nas cenas em Lisboa. Seria muito charmoso, mais verdadeiro e, para nós, auditivamente, uma delícia.
E, por falar em delícia, para mim foi inevitável a lembrança horaciana de "Carpe Diem", centelha arrebatadora de outro sucesso de bilheteria de mais de 20 anos: "Sociedade dos Poetas Mortos".
O filme carece de atenção, observação e pensamento. Para assisti-lo sem preconceitos, precisamos de profundidade e de espírito. Nele, sem pieguices ou efeitos especiais gratuitos, há uma rota de autoconhecimento e de autorreflexão, além da sua humanidade, sem muito enfeite para falar da sem-gracice da vida, mesmo no Velho Mundo, o que me atraiu muito (não vou mentir: surpreendi-me ao ver tantas paredes maravilhosas pichadas, ou seja, nada de enrolação e maquiagem).
O personagem principal é um sujeito solitário, que alega que seu casamento acabou porque a mulher o considerava "um chato", como devem ser (e defendem esse direito) os professores de latim (e, certamente, os escritores). Por outro lado, sendo tão metódico e maçante, surpreende a sua explosão em busca de um desconhecido do qual apenas ouve (lê) a voz (ponto para a literatura).
"O Trem...", acima de tudo, fala de escolhas e de seus resultados, nem sempre felizes, nem sempre tristes, porém, fatalmente humanos e, portanto, imperfeitos (quase feios). É um filme incômodo, certamente, por isso, poético, menos pela poesia de Amadeu, mais pela mente desesperada de um afogando Gregorius (talvez outro suicida não exitoso) a pedir socorro em passos pelas ruas de calçadas velhas lisboetas:
“Quando deixamos determinado lugar, deixamos para trás um pedaço de nós, permanecemos lá, apesar de partirmos. E há coisas em nós que só podemos recuperar se voltamos para lá.” (Amadeu Prado)

Recomendo demais!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

"Cruviana" e o Simpósio sobre Literatura Cearense da UFC, por Pedro Salgueiro, para O POVO (18.12)


Cruviana é um ventinho que varre o Sertão de “dentro pra fora” – ao contrário do nosso bendito Vento Aracati, que voa das praias longínquas esfriando nosso calorão terra adentro. Dizem que o cruviana traz mau agouro, vem cheio de mandingas e coisas ruins; eu mesmo não acredito, pois que mal pode fazer uma aragenzinha, senão nos esfriar o juízo, nos trazer sonhos de outras terras e mares, levantando de quando em vez as saias das sertanejas.
Verdade que Guimarães Rosa antevia o Diabo redemoinhando nos terreiros, e o sonso vento-encanado entorta bocas e revira olhos... Nesses casos acho que o ventinho é mero transporte, grota que traz água boa e ruim.
Mas quem chegou mesmo de mansinho foi a revista potiguar Cruviana – de contos, como a nossa cearense Caos Portátil – assoprada pelo escritor e editor José de Paiva Rebouças, que antes da quinta edição em papel já havia mostrado quatro números na internet. Revista com cara de livro, variação de temas e estilos em seus bons relatos.
E esse norte-rio-grandense casado com uma bela cearense chega, como o vento que dá nome à sua publicação, de mansinho mas procurando companhia: quer interagir com escritores de outras terras e convoca os contistas cearenses para participar com nossas histórias e ideias, com nosso jeito bom para agrupamentos e convivências fraternas.
Aproveitemos, pois, essa saudável ventania, essa atitude rara entre literatos, de diálogo franco, de ir juntos com os outros, de mãos dadas: que a subida é pedregosa, e longa demais para se ir sozinho.

LITERATURA CEARENSE
Semana passada aconteceu o I Simpósio sobre Literatura Cearense, trazendo o tema “Para onde vai a Literatura?”, como parte integrante do o X Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários, do Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal do Ceará. Foi capitaneado pela estudante (e jornalista) Lilian Martins, com apoio de Raymundo Netto (que juntou mais de uma centena de livros nossos para serem sorteados com os estudantes*) e outros abnegados.
O evento propiciou diálogos saudáveis entre nossos esquecidos escritores cearenses e jovens estudantes universitários; os debates, que aconteceram no auditório José Albano, vivificaram um pouco a nossa literatura, pois trouxe para dentro dos muros acadêmicos um pouquinho de nossas letras.

Quem sabe com repetição de encontros como esses as nossas instituições de ensino consigam se manter mais próximas do que é feito aqui fora dos muros acadêmicos, o que acredito contribuir muito para o engrandecimento não só da literatura cearense, mas da própria instituição, que necessita dialogar mais e mais com os diversos segmentos sociais do nosso estado.

(*) na realidade, o blog AlmanaCULTURA disponibilizou cerca de 200 exemplares distribuídos entre 170 títulos, aqui divulgados.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Nilto Maciel no "Autores & Ideias", da FM Assembleia (16.12)


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O Programa "Autores & Ideias" da FM Assembleia (96,7MHz), na sua comemoração de 5 anos no ar difundindo e propagando a literatura, principalmente a cearense, disponibiliza, na íntegra, a entrevista do escritor Nilto Maciel a Lílian Martins. Nela, o escritor fala sobre a sua carreira, suas visões sobre a "imortalidade", sobre a revista O Saco e o seu primeiro periódico, o marginal Intercâmbio, além de curiosidades sobre as suas últimas obras.
Também no programa, Arlene Holanda e Stélio Torquato Lima. Acesse:

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Rádio AlmanaCULTURA: "Trocando em Miúdos", de Chico Buarque


Para ouvir, acesse:


Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!
O resto é seu.

Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças...

Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer.
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter.

Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado.

Aliás,
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel.
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu.

Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.


sábado, 14 de dezembro de 2013

"O Sentimento é o Barco na Garrafa", de Raymundo Netto (14.12)



Ilustração: Andruchak ("Barco na Garrafa", 2004)

O sentimento é o barco na garrafa: represo, inútil e vazio.
É a raspa do tacho que faltava, é a desilusão, é o estio.
A mancha na roupa mais querida, a saudade que infarta.
É no peito, o lastro que se cria e na mente a imagem que se mata.

Do prego, a ferrugem que tetaniza. Na pele, a marca da navalha.
No amor, a ferida que se abre e na noite a folha que orvalha.
O sentimento é tal alegria que se esvai ou a fumaça que no azul vapora
No olhar traz a cinza da memória de um poema que em versos chora.

O sentimento é a fadiga na subida e a brasa que em cinzas arrefece.
É a calma piedante embebida na espinha que pela goela desce.
Dos sentimentos, o mais triste é a tristeza
E o amor, acreditem, dentre todos, pouco importa
Pois é no deserto que, diante da certeza da solidão,
A vida se conjuga e se conforta.

O sentimento é o barco na garrafa, poeticamente inavegável
e comido por cupins.

"Desejo Secreto", crônica de Raymundo Netto para o "Almanaque De Um Tudo" (14.12)


Ilustração: Weberson Santiago

Susanabela nem não acreditava, senão o homem do noticiário insistia: “Papai Noel estará neste domingo no shopping, aquele mesmo pertinho de você!”
Por trás dos olhos arregalados soluçava a duvidar do aparelho de TV: “Ele? Aqui?”
Trazia, no pouco mais de trinta anos, uma beleza sofrida e esquiva. Após ser largada por Genésio, o único e infeliz amor de sua existência, que a trocou  justamente pela irmã, a caçula, decidira largar de vez a sua cidadezinha de sempre e buscar sustento em casa de família na capital, à custa da necessidade, rotinando as únicas prendas de sua vida: varrer, lavar, passar e cozinhar.
Fazia apenas alguns meses. Morava num quartinho reversível dos fundos, ao lado da área de serviço, por trás do tanque. Sem família, sem amigos, sem ninguém, abria mão até dos finais de semana, simplesmente por não ter, ou saber, o que fazer fora dali. Não besta, a patroa a explorava carinhosamente, rasgando-a de cínicos elogios toda vez que a surpreendia passando as roupas no perfeito domingo, de costas para o café da manhã bem-posto, inda quentinho, na mesa de vista para o céu mais azul e livre deste mundo.
Mas naquele domingo, não. A patroa acordou de cara emburrada, estranhando a empolgação da empregada no enfeito em tamancos, e o nada de café nem de janela azul.
“É namorado, não é? Olhe, tome cuidado com os rapazes daqui, Susanabela, só querem tirar a casquinha e você, me desculpe, é uma tonta!”
“É hôme não, dona Rubi. Deus me livre. É mais que isso... é um sonho!”
Não ouvia, pois estava cheia de seus próprios sons, mas a patroa resmungava: “Serviço bom como este aqui vai ser difícil conseguir outro, visse?”
Susanabela quase abria os portões do shopping. Desfiava conversa com o segurança, os zeladores e taxistas. Mais ansiosa que caldeira de trem, numa felicidade estranhamente sincera, perguntava: "Você não vão falar com o Papai Noé, não?"
Com pouco, a fila se esticou de crianças e de pais sonolentos de boa vontade. Ao fim, chegava ele, passando por ela num acolchoado encarnado e luminoso sem dar-lhe mínima atenção, rumo ao seu trono. Ela, a primeira da fila, postava-se passiva e trêmula, enquanto as ajudantes do velhote lhe perguntavam pelos filhos: Não os tinha...

Daí, o canastrão, desconfortavelmente sentado na poltrona decorada, pôs-se ao papel, lançando um afônico Hou-hou-hou e chamando Susanabela: “E então, minha filha, o que você quer de seu Papai Noel?” Era o que faltava. Susana livrou-se dos tamancos, saltou em seu colo, beijou o blush de seu rosto e, num abraço caloroso e fatal, sussurrou-lhe ao ouvido: “Lembra quando eu pedi uma irmãzinha? Agora quero que você morra ela.... Morra ela, pra mim, Papai Noé, por favor!”