“O problema pareceria ainda mais difícil
se pudéssemos admitir que existem moções psíquicas que podem ser reprimidas de
maneira tão radical que não deixam nenhum fenômeno residual. Só que isso não
ocorre. A mais forte repressão tem de dar lugar a moções substitutivas
distorcidas e às reações que delas se seguem. Mas então estamos autorizados a
supor que nenhuma geração é capaz de ocultar da seguinte seus processos
psíquicos mais significativos. É que a psicanálise nos ensinou que cada ser
humano possui um aparelho em sua atividade mental inconsciente que lhe permite
interpretar as reações de outros seres humanos, isto é, desfazer as distorções
que o outro empreendeu na expressão de seus sentimentos. Por essa via da
compreensão inconsciente de todos os costumes, cerimônias e normas deixadas
pela relação original com o pai primordial, mesmo as gerações mais tardias
poderiam ter sido bem-sucedidas na recepção daquela herança emocional.”
(uma versão da resenha abaixo foi
publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de dezembro de 2013)
Aos
57 anos, vivendo um momento crucial nas suas relações (foi a época da ruptura
com Jung), Sigmund
Freud (1856-1939) publicou um
de seus trabalhos mais importantes, cujas ideias básicas circularam
intensamente pela corrente sanguínea do século passado, mesmo combatidas,
ridicularizadas como fantasiosas, postas em dúvida por avanços em diversos
campos científicos: Totem e
Tabu, que chegou ao centenário em 2013[1].
Reunindo
quatro ensaios, o sempre arrojado criador da psicanálise analisa os dois termos
do título utilizando seu vasto conhecimento de arqueologia, etnologia,
mitologia e folclore; dessa forma, faz um escrupuloso mapeamento enciclopédico,
um hábito seu desde sua primeira obra de vulto, A Interpretação dos Sonhos (1900), mesmo desculpando-se
frequentemente com o leitor pela exposição sumária das concepções totêmicas e
animistas dos chamados povos primitivos (totem, grosso modo, seria o ser
ou o objeto venerado por um grupo humano— sendo o mais comum um “animal
sagrado”)[2].
O
que chama a atenção de Freud para o totemismo é a presença universal do tabu do
incesto. Por que esse horror tão arraigado? A partir do segundo ensaio (O
tabu e a ambivalência dos sentimentos), sua experiência clínica e analítica
com indivíduos neuróticos, obsessivos, servirá de paralelo ao bosquejo
empreendido do papel do tabu na psicologia dos povos. Em ambos os casos, há uma
aparente ausência de motivos para os preceitos proibitivos; há um caráter
deslocável (o objeto pode mudar) e um perigo de contágio e mácula pelo
proibido; há a reiteração através de ações cerimoniosas, rituais, por
necessidade interior (pressão psíquica).
Como
se sabe, o autor de Totem e
Tabu era um escritor
notável e um ótimo “contador de casos”, então não é árduo nem árido acompanhar
esse progressivo entremeio das disciplinas coletivas (estudo dos povos e das
mentalidades) e de casos individuais. Aonde ele quer chegar? À afirmação de que
os mecanismos psíquicos em jogo são ambivalentes: o que é afeto e veneração
também oculta ódio e hostilidade. Assim ficaria explicada a relação complicada
dos vivos com seus mortos — e concepções como a de seres sobrenaturais
malignos, como os demônios.
O
terreno fica preparado para os dois últimos ensaios, saltos mortais em termos
teóricos. Em Animismo, Magia e
Onipotência dos Pensamentos, Freud equipara a fase animista (calcada no
“pensamento mágico”), pré-religiosa dos povos com o narcisismo, uma de suas
concepções fundamentais com relação ao desenvolvimento da personalidade, quando
o caráter não se submeteu ainda ao princípio
da realidade.
A
proposição freudiana mais avassaladora faz sua aparição no ensaio-clímax, O Retorno Infantil do Totemismo.
Partindo do conceito de Darwin sobre o agrupamento humano das origens, a horda, e rastreando o costume
da “refeição totêmica”, da festa onde se partilha o animal sagrado, que depois
se metamorfosearia em várias práticas religiosas (como a eucaristia), ele
especula que o surgimento da religião (com todas as suas noções de culpa e expiação)
estaria imbricado no complexo
de Édipo (a fixação no Pai).
Na horda primitiva, o pai tomava para si todas as mulheres e excluía os filhos
do poder e da coabitação sexual. Eles então se uniram (tal como se fossem os
Irmãos Karamázov da Pré-História) contra ele, executando o crime primordial, o
parricídio, que desde então ficou inculcado na psique das futuras gerações
(isso é que inconsciente coletivo!).
Nenhum
deles tinha a força do pai para liderar a horda e assim surgiram os clãs
humanos fraternos (com todas as suas ambivalências). A figura paterna nunca foi
esquecida, porém. Transformou-se no animal totêmico e em torno dele se
constelaram tabus, preceitos do que era permitido ou proibido e assim a
humanidade chegou às suas primeiras criações institucionais em torno da
moralidade e da adoração de um ser divinizado: “… no complexo de Édipo coincidem
os inícios da religião, da moralidade, da sociedade e da arte, em completa
concordância com a constatação da psicanálise de que esse complexo constitui o
núcleo de todas as neuroses (…) Supomos, sobretudo, que a consciência de culpa
referente a um ato pode sobreviver por mitos milênios e permanecer eficaz em
gerações que nada podiam saber desse ato.”
Ou
seja, esse pequeno volume revelava-se nada menos que explosivo em sua grande
síntese da história humana, a qual (como Freud mesmo diz) confirmava o
que os devotos costumam dizer: “que
todos nós somos grandes pecadores”.
Não
é ocioso acrescentar que o próprio Freud experimentava naquele momento o agudo
temor do parricídio, com a deserção de Adler e Jung[3]. No final, ele acabaria sendo desmembrado numa espécie de
refeição totêmica entre seus discípulos, os fraternos e os hostis.
Nota sobre a epígrafe- O que Renato Zwick traduz como “moção”, é traduzido por Paulo
César de Souza e Órizon Carneiro Muniz como “impulso”.
TRECHO SELECIONADO
[na versão de Renato Zwick]:
As mais antigas e mais importantes
proibições do tabu são as duas leis fundamentais do totemismo:
não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os membros do sexo
oposto pertencentes ao mesmo totem.
Esses seriam, portanto,
os mais antigos e mais fortes desejos do ser humano. Não poderemos compreender
isso e, consequentemente, não poderemos testar nossa hipótese nesses exemplos
enquanto o sentido e a origem do sistema totêmico continuarem tão completamente
desconhecidos para nós. Mas quem conhece os resultados da investigação
psicanalítica do indivíduo será lembrado, pelo teor desses dois tabus e pelo
fato de estarem associados, de algo bem determinado que os psicanalistas
declaram ser o ponto nodal dos desejos infantis e o núcleo da neurose.
A diversidade dos
fenômenos do tabu, que levou às tentativas de classificação anteriormente
comunicadas, se funde para nós numa unidade, e da seguinte maneira: o
fundamento do tabu é um ato proibido para o qual existe uma forte inclinação no
inconsciente.
[na versão de Paulo César de Souza]:
As mais antigas e importantes proibições do
tabu são as duas leis fundamentais do totemismo: não liquidar o animal totêmico
e evitar relações com os indivíduos do mesmo totem que são do sexo oposto.
Esses devem ser, então,
os mais antigos e poderosos apetites humanos. Não poderemos compreender isso,
nem verificar nossa premissa com base nesses exemplos, enquanto o sentido e a
origem do sistema totêmico nos forem tão desconhecidos. Mas, para quem conhece
os resultados da investigação psicanalítica do indivíduo, o próprio enunciado
desses dois tabus e o fato de andarem juntos lembrarão algo bastante definido,
que os psicanalistas veem como o ponto nodal dos desejos infantis e como núcleo
da neurose.
A variedade das
manifestações do tabu, que levou às tentativas de classificação já mencionadas,
reduz-se para nós a uma unidade: o fundamento do tabu é uma ação proibida, para
a qual há um forte pendor no inconsciente.
[na versão de Órizon Carneiro Muniz]:
As mais antigas e importantes proibições
ligadas ao tabu são as duas leis básicas do totemismo: não matar o animal
totêmico e evitar relações sexuais com os membros do clã totêmico do sexo
oposto.
Estes devem ser, então,
os mais antigos e poderosos dos desejos humanos. Não podemos esperar
compreender bem isso nem testar nossa hipótese com esses dois exemplos,
enquanto ignorarmos totalmente o significado e a origem do sistema totêmico.
Mas a enunciação desses dois tabus e o fato de sua concomitância farão lembrar
a qualquer pessoa familiarizada com os achados de pesquisas psicanalíticas em
indivíduos algo bem definido, que os psicanalistas consideram como sendo o
ponto central dos desejos da infância e o núcleo das neuroses.
A multiplicidade
das manifestações do tabu, que levaram às tentativas de classificação que já
tive ocasião de mencionar, ficam reduzidas pela nossa tese a uma única unidade:
a base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe forte
inclinação do inconsciente.
[1] [1]
A tradução comentada nesta resenha é a de Renato Zwick (L&PM, 2013): Totem e Tabu- Algumas
correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos [no original Totem und Tabu.Einege
Übereinstinmmugen in Seelenleben der Wilden und der Neurotiker], com
revisão técnica de Paulo Endo. Zwick já nos brindara este ano com uma nova
versão de A Interpretação dos
Sonhos.
Para fins de consulta e comparação, utilizei também as seguintes
traduções:
– de Paulo César de Souza (Totem e Tabu, Contribuição à
História do Movimento Psicanalítico e outros textos, volume 11
de “Sigmund Freud- Obras Completas, Companhia das Letras, 2012)—uma edição um
tantinho “enxugada” dessa versão de Totem
e Tabu foi publicada à
parte pela Penguin/Companhia das Letras (2013);
–de Órizon Carneiro Muniz (Totem e Tabu e outros trabalhos,
1913-1914, volume XIII da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
de Sigmund Freud, Imago, 2006.
[2] Logo no início do terceiro ensaio há
uma nota de rodapé que se reveste de uma conotação divertida. Ali, como em
outras passagens, Freud lamenta a necessidade de simplificar o material. E
arremata: “A autonomia do
autor apenas se pode manifestar na escolha que fez dos temas e das
opiniões”.
A diversão fica por conta do “apenas”. Ora, Freud sempre foi um
autor muito consciencioso com suas fontes. Mas todo esse escrúpulo não o impede
de, ao fim e ao cabo, tratar toda aquela vastidão apenas como território
introdutório para o essencial, o realmente novo e desbravador, que vai surgir
da “escolha” que fez dos temas e a expressão das “opiniões”; em suma, aquilo
que “apenas” lhe coube.
E quando se tem consciência do teor das conclusões de Totem e Tabu, um salto
no abismo (ainda mais do que todas as hipóteses psicanalíticas anteriores),
afora a própria personalidade do seu autor, aí sim a nota ganha um toque quase
malicioso.
Outra nota de rodapé (tenho uma predileção possivelmente
patológica por notas de rodapé), muito sensata e esclarecedora, que eu gostaria
de ressaltar, aparece no quarto ensaio. Nela, somos advertidos de que o estudo
dos chamados povos primitivos muitas vezes se deu por vias indiretas, que
facilitaram visões possivelmente deturpadas e “construídas”: “Não se deve esquecer que os povos
primitivos não são povos jovens, e sim, na verdade, tão antigos quanto os mais
civilizados, e que não se tem direito a esperar que tenham conservado suas
ideias e instituições originais sem qualquer desenvolvimento e distorção para
que tomemos conhecimento delas”. Mais adiante: “Assim, a determinação do estado
original é sempre uma questão de construção”.
Assumindo esse terreno escorregadio (ou mesmo pantanoso) para as
suas construções, ou seja, suas hipóteses avassaladoras, nem por isso
Freud estava menos convicto da sua veracidade básica (e já adianto que ele
consegue deixar o seu leitor convicto dessa veracidade, apesar de todos os
avisos formais e corretos).
[3] É preciso ter em mente que Totem e Tabu também é, em larga medida, um libelo
anti-Jung; este também à época se embrenhava em mitologia, folclore, religião e
psicologia dos povos, com resultados inteiramente diferentes (e inaceitáveis
para Freud, principalmente pela motivação “ariana” que fundamentava as
investigações junguianas), que resultaram num de seus livros mais famosos, e o
primeiro importante, Metamorfoses
e Símbolos da Libido (1912), cuja versão definitiva ficou
como Símbolos da Transformação (volume
5 das Obras Completas)- uma leitura árdua, ao contrário do livro de Freud.
Sobre esse momento específico da vida de Jung ver aqui no blog: