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LetraseLivros: “Abandonai toda a esperança vós que
entrais”. A frase é de Dante Alighieri e antecedia a porta do Inferno na Divina
Comédia. Está na primeira página de seu livro. É algum tipo de aviso ao leitor?
Raymundo Netto: Sim.
Talvez seja isso mesmo. O processo de criação e composição dos textos
que ora tomam corpo de Os
Acangapebas exigiu, durante tempos e relativa distância — passei anos
deixando-os encostados, inúteis, sedimentando —, muito de mim. Não só no que
diz respeito ao trabalho estético e de escolha da linguagem, da forma, mas da
ambiência, do conteúdo e da temática, digamos, “sugerida”. Muito do que está no
livro, e até do que não se lê por meio das palavras, mas que, creio, o leitor
mais perspicaz poderá traduzir ou reinventar, angustia-me profundamente.
Lendo-o, nos momentos finais antes de sua impressão, e após descartar alguns
dos contos antes elencados, senti-me envolvido como num abraço com o meu
“inferno pessoal”, que pode ser o de qualquer um. Não sei ainda como os
leitores se sentirão, talvez não o percebam dessa forma, porque, afinal, somos
todos muito diferentes em nossas percepções, mas perpassa, exatamente no
quesito “ambiência”, um certo ar comum de desesperança, ou de ridículo, no que
chamamos de humanidade.
LetraseLivros: Você demorou quase sete anos entre Um
Conto no Passado: cadeiras na calçada e o
novo livro. A que se deve esse hiato? Inspiração, observação ou processo de
amadurecimento como escritor?
Raymundo Netto: Durante
esse “hiato”, publiquei três livros infantojuvenis pelas Edições Demócrito
Rocha e um livro, Cronologia Comentada de
Juvenal Galeno, que integrou a coleção de sua Obra Completa, pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (entre
2010 e 2012, coordenei e organizei, enquanto integrante da Secult, cerca de 80
títulos). Escrevo crônicas há cinco anos (desde 2007), quinzenalmente, para o
caderno Vida & Arte de O POVO. Os
contos que compõem Os Acangapebas
foram escritos entre o início de 2006 até o momento de sua publicação em 2012. Na
realidade, alguns deles já existiam em rascunho, antes mesmo de eu escrever Um Conto no Passado: cadeiras na calçada,
como o conto homônimo que encerra o livro e outro que optei por retirar quando
encerrei o livro. De fato, não tenho pressa nem preocupação com o “publicar”,
mas com o “produzir”. A publicação, penso, é coisa muito séria, que, algumas
vezes, transcende a própria vida do autor, daí, temos que burilar ao máximo,
tomar o cuidado de garantir que tal texto esteja o mais próximo possível de nossa
(ir)realidade, de nossa “assinatura pessoal”.
LetraseLivros: Os Acangapebas, como você mesmo
explica no livro, quer dizer “os cabeças-chata”, alcunha pela qual são
conhecidos os cearenses. No entanto, em todos os contos o que se nota é uma
abordagem um tanto quanto ampla e às vezes irônica dos sentimentos e psique
humanas. São angústias, medos, solidão, depressão, temas que conferem às
histórias um caráter universal. Por que o título então?
Raymundo Netto: Pois
é. Quando comecei a escrever as histórias que pretendia enfeixar em livro, tinha
a pretensão de que seus personagens pudessem ser (ou não) figuras “cearenses” (o
homem das rodas de calçada, o palhaço mambembe, o bodegueiro, a doméstica, o
retirante, etc.), e que fosse possível nesses textos o leitor encontrar o colorido
de nossa voz e imaginário, algo meio pictórico, digamos assim. Havia acabado de
lançar o Cadeiras... e estava muito
acesa em mim a questão cultural, patrimonial etc. Alguns dos textos da época
perduraram na seleção final, outros tantos saíram, vitimados pela proposta
atual. Em alguns dos mantidos, o vocabulário mais “cearês” foi suprimido, por
achar, hoje, obsoleto ao texto, justificado porque o fator linguagem cresceu na
proposta de construção do projeto (enquanto) literário, embora se perceba que “ele”
ainda está lá, distribuído de uma forma diferente, como pendurado nas “paredes”
dos contos. O texto “Os Acangapebas”, por exemplo, entrou no livro por um “estalo”
da amiga Tércia Montenegro, uma das leitoras dos originais (Pedro Salgueiro e o
Nilto Maciel também o leram nesse período de pré-impressão). Ele não ia entrar.
Achava o texto difícil, duro de engolir, mesmo entendendo que ele refletia a
ideia original da obra, mas que sairia noutra edição. Seria estranho “Os
Acangapebas” sair num livro de contos que não fosse Os Acangapebas, pensei, e exatamente por ser estranho achei ótimo.
Por fim, foi recolocado.
LetraseLivros: Em uma de suas entrevistas você diz
que a principal matéria-prima de seus contos vem das observações do outro, da
cidade, do cotidiano. Há, no entanto, algum resquício autobiográfico em
quaisquer das histórias de Os Acangapebas?
Raymundo Netto: Sempre
há. Difícil não utilizarmos a nossa vivência pessoal (vivida, ouvida,
sentida...), de alguma forma, naquilo que escrevemos. A nossa vida, a nossa
experiência própria, assim como nosso gosto, nossa voz, acabam por conduzir o
processo todo, mesmo quando a nossa “vida aparente” não esteja ali. Entretanto,
me vigio para não ser muito “eu mesmo” nesses momentos, atitude diferente de
quando escrevo crônicas.
LetraseLivros: Em seu conto “ Domingo” você fala
de uma mulher que envenena a família após anos de uma submissão velada. Lembrei
da primeira frase de Anna Karenina, do Tolstói, em que ele diz que “Todas as famílias felizes se parecem; cada família
infeliz é infeliz à sua maneira." E também do Belchior na letra de
“Hora do Almoço”. Essa “melancolia familiar” é inerente ao ser humano ou um retrato
da sociedade atual?
Raymundo Netto: Olha,
no caso, a mulher que mata a família (essa, a minha) é a empregada lá de casa
(risos). Ela existe e tudo ali é verdadeiro: o almoço de domingo na casa de
meus pais. Claro, até hoje não nos envenenou, ainda, mas poderia fazê-lo
facilmente, e, por isso, parei de comer a macarronada que ela faz, a “receita
da vovó Zena”, tradição dos domingos de tempos.
LetraseLivros: Há pouco mais de vinte anos um
autor de qualquer tipo de produção literária só dispunha de livros ou revistas
para publicar seus escritos. A internet mudou radicalmente essa realidade. Hoje
se escreve e se torna público o que se quer e a qualquer hora em sites, blogs e
até em redes sociais. Estamos diante da “Biblioteca de Babel” preconizada por
Jorge Luis Borges? Publicar demais faz bem à literatura?
Raymundo Netto: Penso
que a democratização de acesso, as possibilidades de divulgação e publicação,
ou mesmo a aproximação e a facilitação da troca de contatos entre autores,
críticos, editores e leitores de forma geral, em qualquer ponto do país ou fora
dele, proporcionadas com o surgimento da internet, das redes sociais e com o
avanço tecnológico são ganhos indiscutíveis. Por outro lado, me preocupa sempre
a publicação sem a autocrítica, sem critérios básicos e o mínimo de
questionamento sobre a qualidade daquilo que vai empurrar no mundo. Justamente
devido à facilidade e o pouco comprometimento com o que se estabelece nesses
meios, a pessoa escreve e em poucos minutos “publica”. Aliás, conheço diversos
escritores que se pabulam de nem ler o que escrevem ou de não se preocuparem
com essas coisinhas “desimportantes”, como, por exemplo, “revisão” (risos). Assim,
infelizmente, são vários. Esse fenômeno de “cibersucata literária”, uma
montanha de coisas nunca de se merecer lidas e que empatam a visão de outras
melhores ofuscadas nesse universo de “em formação” sem fim, acaba por banalizar
o que chamamos de literatura. Afirmo sempre que há uma distância brutal em ser
alfabetizado e ser escritor (de literatura).
LetraseLivros: Clarice Lispector uma vez disse o
seguinte: “Já que se há de escrever, que
pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.” O que o leitor deve
buscar nas entrelinhas de seus contos?
Raymundo Netto: O eco de si próprio. A sua verdade, a sua
mentira, o conflito entre ambos, o seu reconhecimento ou o do outro, a sua
tessitura enquanto gente, ou mesmo que não busque nada, deixando-se apenas
levar e descobrir aonde as ondas ou os ventos se encontram.
LetraseLivros: Você é atualmente editor adjunto
das Edições Demócrito Rocha, assina uma coluna quinzenal no jornal O Povo,
mantém o blog Almanacultura. Em meio a tantas atividades, quais os seus
projetos para o futuro?
Raymundo Netto: Tenho
vários e em diversos segmentos diferentes de uma mesma literatura. Penso que a
maior parte deles continuará apenas como projetos, a não ser que eu mude
radicalmente de modus operandi, o que
já venho tentando aqui e ali, sem sucesso. O meu maior projeto hoje é não
prometer mais nada e dizer mais “nãos”.
LetraseLivros: Em sua maioria, Os
Acangapebas é composto de textos
curtos, de, no máximo duas ou três páginas. Ainda assim, percebe-se algo
de denso. Em “Saudades”, por exemplo, lê-se: “A vida na Terra parece não ter
sentido sem a morte. A vida, eterno exercício de ter e perder; uma partida
constante; uma dor interminável de não ter fim.” Na sua visão, Acangapebas é um livro de fácil leitura?
Raymundo Netto: Ao
contrário, acho que é difícil leitura, pelo menos para os melhores
leitores (risos). Por vários aspectos: primeiro, porque não o escrevi
pensando em um texto exatamente fluente, o que se percebe nos vocábulos, por
vezes, elencados, pela presença de neologismos, ou mesmo de arcaísmos, pela
construção frasal (frases nem sempre curtas), presença de “sintaxes arrevesadas”
(como disse uma vez a amiga Inês Cardoso), muitas virgulações, enfim, não tomei
nenhum cuidado nem usei das fórmulas convencionais de fazer “escorregar” na
leitura. Por outro lado, apostei, sim, no que diz respeito à sonoridade (ou
musicalidade), à combinação do ambiente “cênico” com as palavras (e na verdade
que elas encerram), ao uso de linguagem cinematográfica e imagética, aos tipos
“desenhados” e às “lacunas desejadas” do texto (espécie de “pedras no vazio”
para os leitores “toparem” neles). Coisas assim...
LetraseLivros: Goethe dizia que escrever era um “
ócio muito trabalhoso”. E é com uma citação dele, “Mais Luz”, que você termina
o livro. O muitas vezes árduo ato de criar ilumina mais a quem lê ou a quem
escreve?
Raymundo Netto: Não
sei se ilumina. Antes, uma consequência de certa iluminância. Para nós que
escrevemos é sempre um privilégio ver uma obra publicada e, principalmente,
lida. Alguém discorrer sobre seu trabalho é muito prazeroso, desde que sincero.
Há um escambo de elogios muito grande no meio literário (aproveitando-se da necessidade
de um inútil reconhecimento intelectual por parte dos mais abastados), além de
uma cegueira para aquilo que não é cânone nem estabelecido. Por isso, decidi
não colocar orelha nem prefácio em Os
Acangapebas. Queria que as “críticas” viessem espontaneamente, sem muletas,
sem bússolas. Como disse, tudo para mim no que se refere a este livro, foi-me e
é muito difícil. O que é bom.
Quanto
a Goethe, ele é autor do romance Os
Sofrimentos do Jovem Werther, marco do romantismo alemão, onde o
protagonista, louco de uma paixão impossível por Charlotte — talvez nem tanto —
se questiona: “Por que é que aquilo que faz a felicidade do homem acaba sendo
também a fonte de suas desgraças?” É uma história forte e pessimista, e que, na
época, fez muito sucesso. Contam que a sua leitura, naqueles tempos, foi responsável
pelo suicídio de diversos jovens na Europa. “Mais Luz” seriam as derradeiras
palavras do autor em seu leito de morte. Para Os Acangapebas, a saída da escuridão de meu inferno. Há luz, sim,
em algum lugar.
LetraseLivros: Onde o leitor poderá encontrar Os
Acangapebas? Em que pontos comerciais da
cidade?
Raymundo Netto: Farei
um segundo lançamento do livro no projeto “Bazar das Letras do SESC”, no Teatro
Emiliano de Queiroz, dia 28 de agosto, às 19horas, num bate-papo com o contista
Carlos Vazconcelos. Especialmente, neste dia, o livro será vendido mais barato,
a R$ 15,00 (quinze reais), compromisso que firmamos com o Projeto. Depois,
poderá ser encontrado nas livrarias: Smile, Lua Nova, Arte e Ciência e Museu do
Ceará. Também pode ser adquirido pela internet, pelo loja virtual da Editora
PREMIUS. Costumo enviar pelos correios, após depósito bancário, caso as pessoas
queiram adquirir e não o consigam pelos meios comuns.
Raymundo Netto é escritor e editor. Autor de Um Conto no Passado: cadeiras na calçada
(romance, 2005), Os Acangapebas
(contos, 2012), Cronologia Comentada de
Juvenal Galeno (ensaio, 2010), e dos infantojuvenis A Bola da Vez (2007), A Casa
de Todos e de Ninguém (2009) e Os
Tributos e a Cidade (2010). É cronista do Caderno Vida & Arte do jornal O POVO desde 2007 e mantém o blogue
AlmanaCULTURA (http://raymundo-netto.blogspot.com.br)