quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"Quando o Amor é de Graça VIII: História de não se Dar Passo", crônica de Raymundo Netto para O POVO (28.12)


  Moral da História: a vida é o exercício do perder!
Essa fábula ao inverso nada mais é do que a minha tese de pós-torturado da faculdade da vida, na qual nem pedi a inscrição, mas onde tenho cadeiras obrigatórias desde a primeira tapa, e onde jurei: até a morte hei de viver!
Pois sim, que não acreditem em mim, mas é mesmo a vida, tão querida ad respirata, dentre as tantas coisas que desaprendi, um exercício de perdas. Desde a nascença, nada nos é tão certo quanto a perda, cosida, pontilhadamente, até de um dia perder, irreparavelmente, a própria vida. Vai-se infância, saúde, amores, amigos, cabelos e, dolorosamente, os dentes, tudo se vai e, acreditem pelamordedeus, rapidamente num cadinho.
Nos meus 40 anos, já perdi tanta coisa, deixei tanto para trás, nem vale a pena o sofrer por isso... Ciente da prática de perdas, tenho desapegado franciscanamente, exercitado ao máximo, a ponto de, às vezes, ficar me rindo da ausência do peso das tantas coisas que não tenho... Sempre disse: Posso perder tudo, menos as pessoas... E as tenho perdido mesmo assim, aqui e ali, sem jeito.
Por que é charmoso e chama a atenção, vez ou outra grito a todo pulmão: “Desisto!”, mas continuo insistindo nas mesmas burradas a perguntar-me por que as coisas não me hão de nunca dar certo. Chego a ter dó de mim, um dó em si tão grande de fazer choro, não fora eu um nordestino, cem por cento negro, um forte Xunembó, caucásio-brasileiro, sem carteira assinada, nem dinheiro no banco, sem parentes importantes e nascido embaixo de fogos de São Pedro.
É quando me lembro da passagem literária, essa de Queiroz, d’Os Maias, em seu último capítulo, quando Carlos e o João da Ega, numa conversa descontraída de meio da rua, conceituam os românticos de “indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...” e resumem: “não vale a pena viver!” Explicam inda mais: “Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na Terra, porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.” Aconselham: “Não saia deste passinho lento, prudente, correto, seguro, que é o único que se deve ter na vida.” Os dois fanfarrões estavam convictos da descoberta da fórmula do mais seguro viver: “não fazer um esforço, nem correr com ânsia para coisa alguma... Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...”
Foi quando avistaram, ao longe, uma carruagem. Atrasados que estavam, entreolharam-se e “os dois amigos romperam a CORRER desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia”.
E é assim, meus amigos, que corremos quando temos que correr — a vida não espera —, mas das vezes temos que parar um pouco e apenas olhar o movimento das ruas, encantar-nos com as pessoas que nunca víamos chegar, ouvir histórias demorosas com amigos, arriscar novos pratos, novos sons, tomar banho de chuva e de sol, nunca dizer nunca nem sempre, pensar menos no passado e no futuro, viver mais o presente, ganhar o mundo, não pentear sempre os cabelos, nem fazer sempre a barba, trocar a cueca sempre é bom, mas, acima de tudo isso, fazer as pazes com a gente mesmo, não nos cobrarmos tanto e dar-nos a pequena chance de não nos perdermos, a não ser de amor.
Feliz Dois Mil e Doces para todos.

sábado, 24 de dezembro de 2011

"Integraciones", de Pablo Neruda



Después de todo te amaré
Como si fuera siempre antes
Como si de tanto esperar
Sin que te viera ni llegaras
Estuvieras eternamente
Respirando cerca de mí.

Cerca de mí con tus costumbres
Con tu color y tu guitarra
Como están juntos los países
En las lecciones escolares
Y dos comarcas se confunden
Y hay un río cerca de un río
Y dos volcanes crecen juntos.

Cerca de ti es cerca de mí
Y lejos de todo es tu ausencia
Y es color de arcilla la luna
En la noche del terremoto
Cuando en el terror de la tierra
Se juntan las raíces
Y se oye sonar el silencio
Con la música del espanto.
El miedo es también un camino.
Y entre sus piedras pavorosas
Puede marchar con cuatro pies
Y cuatro labios, la ternura.

Porque sin salir del presente
Que es un anillo delicado
Tocamos la arena de ayer
Y en el mar enseña el amor
Un arrebato repetido.

PS: sou obrigado a publicar esse texto em espanhol, porque com a sua tradução ele pode até ganhar "significado", mas perde a beleza da palavra, e hoje não estou dispensando belezas de jeito nenhum...

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

"Traição", conto de Raymundo Netto para O POVO (14.12)



Gedeão incomodava-se. Passasse à calçada, a vizinhança logo o apontava olhos censurosos. Era um desgraçado, sabiam mais do que ele próprio. Sabiam sempre mais, de não entenderem como haveria de não saber de nada. Pois sim, a sua mulher o traía às ventas e ele nada! Como poderia?
Já havia de telefonemas anônimos. Bilhetes de solidária maldade lhe chegavam. Os colegas e mesmo os familiares mais próximos, com vexame, insinuavam desconfianças... Era de tão claro, mas Gedeão parecia receber tudo com a naturalidade de um Jó, incompreensível ao geral pensamento humano e, ademais, masculino.
Diante da porta da casa, torcendo a chave, a curiosidade de uma rua despontava aos ouvidos: haveria ali outro alguém? seria daquele dia a desforra? falaria à sonsa da mulher as verdades? surraria aquela vagabunda? acabaria dali, de vez, a pouca vergonha?
O silêncio frustrante de um nada, acontecia.
Naquele dia, entretanto, após minutos, saía ela, a esposa jovem e imperdoavelmente linda, pela mesma calçada, acompanhada de estranho. A lágrima descia única e atrevida à face, a luzir do suor vertido no calor da hora. O homem ao lado nem não tinha cor. Fosse outra, dignaria vaia, mas ela, não, era diferente. Temiam-na. No vento de sua passagem, correram todos à janela da casa. Gedeão, magro ao paletó, cruzava os dedos nos cabelos da cabeça reclinada. “O desespero corroía o peito”, pensavam todos a suspirarem dós de a sua inocência. Homem estudado, embora simples e apaixonado, trouxera aquela moça inda adolescente, virgem parecia, do interior, mal sabendo as palavras de boca. Deu-lhe nome, casa, comida. E agora, era de pagar esse preço. Por tanto a enganar olhos e ouvidos, a vadia aproveitou-se.
Como tudo na vida, menos na morte, o tempo passou. Gedeão, acolhido com disfarce generoso pela vizinhança, encontrou breve outra mulher. Esta, filha única da vizinha mais cruel algoz de sua outrora companheira. Via na filha a redenção daquele corno, pois nela o exemplo quase litúrgico de virtude e fidelidade.
Gedeão casara assim em festa de rua. Nunca mais que ficara só. A sogra, entretanto, não deixava o casal esquecer a outra. Sempre a relembrar de seus pecados e a ostentar a compensação na excelente escolha a remir o seu passado.
Foi-se a novidade. Gedeão atravessava a calçada, incomodado. Era de um encabulo só. Olhos demais, palavras demais, amigos demais e algo pedia-lhe a vida. A esposa já percebia. Acolhendo-o em seus braços, buscava chegar à sua dor, preencher-lhe o vazio de seu coração choroso.
E foi numa noite que Gedeão abriu, com sorriso, a porta da alcova, e apresentou à mulher um homem sem cor, e ela, compreensiva em seu sublime e devoto amor, abriu os braços, como numa cruz, para o seu mundo.

Contato: raymundo.netto@uol.com.br

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Lançamento IMPERDÍVEL: "De Clóvis para Amélia", de José Luís Lira (9.12)


De Clóvis para Amélia
— correspondência inédita de Clóvis Bevilaqua para a escritora e esposa Amélia de Freitas Bevilaqua —
de José Luís Lira (org)

Data: 9 de dezembro de 2011 (sexta-feira)
Horário: 18h30min
Local: Academia Cearense de Letras (Rua do Rosário, 1, Centro)
Apresentação da Obra e do Autor: Cid Sabóia de Carvalho
Participação especial: Cecília Bevilaqua, neta do casal.

Sobre a Obra: Valioso e originalíssimo acervo de correspondência de Clóvis Bevilaqua (Viçosa do Ceará, 1859 – Rio de Janeiro, 1944), um dos maiores juristas brasileiros, para a escritora e esposa Amélia de Freitas Bevilaqua, com quem casou em 1884, no Recife, e com quem teve cinco filhas.
Em 1930, apresentou a sua mulher, Amélia de Freitas Bevilaqua, como candidata à cadeira da Academia Brasileira de Letras, da qual era membro e fundador. A proposta foi analisada pelos seus pares imortais que resolveram interpretar o estatuto da academia como excluindo as mulheres da mesma. Clóvis e sua esposa ficaram ressentidos da posição de seus colegas. Depois do ocorrido, nunca mais Clóvis voltou à ABL.
O livro, cuidadosamente organizado por José Luís Lira, traz fac-similares das cartas, inclusive com desenhos de Clóvis feitos para a mulher amada e fotos do casal ninca antes vista pelo público em geral. É imperdível.

Sobre o Autor: José Luís Lira nasceu no Sitio Correios, Guaraciaba do Norte, Ceará. Filho de agricultores, conhece as primeiras letras em uma sala de aula improvisada na cozinha da casa de sua tia. Ingressou no curso de Direito da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, onde cursou um semestre. Voltou ao Ceará onde prosseguiu os estudos e os conclui na Universidade de Fortaleza – UNIFOR.
Em 1999, publica Ontem Campo Grande, hoje Guaraciaba do Norte, análise histórica sobre a sua cidade natal. No mesmo ano, o autor lança O levita do Senhor – A vida de Mons. Antonino Soares. Em 2003, na Academia Brasileira de Letras e em Fortaleza, lança No alpendre com Rachel: ensaio biográfico sobre Rachel de Queiroz. Ainda em 2003, publicou O Poeta do Ceará: Arthur Eduardo Benevides e Um Bispo da Igreja: Dom José Bezerra Coutinho.
Em 2005, funda a Academia Brasileira de Hagiologia, e pelas edições UVA, lança Academia Brasileira de Hagiologia: Breve Histórico, um resumo histórico sobre a fundação da citada academia e estudos acerca da santidade no catolicismo. Pela Academia lança, em 2006, Candidatos ao altar, com breves biografias sobre os santos candidatos à beatificação pelo Vaticano. Autor premiado, escreveu também a aclamada biografia A Saga de Gerardo: um Mello Mourão e o livro de poesias Algum Poema?, dentre outros.
Atualmente, José Luis Lira é professor efetivo do Curso de Direito da UVA e Chefe de Gabinete do Reitor.


Edição
Academia Sobralense de Estudos e Letras
Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)

Apoio Cultural
Academia Cearense de Letras
Faculdade Metropolitana de Fortaleza – FAMETRO
Universidade Federal do Ceará

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O Sertão Kafkiano de Pedro Salgueiro: "Inimigos", por Alfredo Monte



Resenha publicada originalmente, de forma mais condensada, em A TRIBUNA de Santos, em 25 de outubro de 2011, e no blogue do autor: Monte de Leituras

“Foi assim de repente, quando menos se esperava (em plena tarde morna) o sol tornou-se pálido, para sumir logo em seguida. O povo ainda não havia acabado de se assustar-ouvimos no meio da escuridão um bater de asas atravessando o vilarejo, como se um bando de pássaros saísse em revoada. Um pouco antes de os moradores da vila abandonarem suas casas em grande alvoroço, os bichos já alarmavam o acontecido: galinhas cacarejavam, galos cantavam em desespero, porcos fugiam pelas ruas atropelando as pessoas…
    O relógio do mundo parecia ter sido alterado, os sons se intensificavam mais e mais; e não havia quem não gritasse ou corresse de um lado para o outro. Mulheres procuravam seus maridos, mães chamavam pelos filhos, ninguém se entendia.
    Alguém com voz desesperada anunciou  o fim do mundo: suas palavras ecoaram  em outras bocas, e o que se ouviu depois foi um desfiar de rezas e choros. Os mais agitados gritavam o nome de Deus, pedindo ajuda; outros sussurravam um padre-nosso em meio  ao soluço intenso. A maioria andava de um canto a outro feito barata tonta.
    (Estávamos apreensivos desde a semana anterior ao acontecimento, quando a chegada de três grupos de forasteiros fez com que todos saíssem para as ruas e corressem, admirados, atrás dos automóveis, que pela primeira vez cortavam a poeira de nossas ruas. Das três equipes somente uma falava de maneira compreensível, as outras duas apenas trocavam entre si uns mungangos. De início se instalavam na praça da matriz, armaram barracas de lona e começaram a abrir grandes caixas trazidas nos automóveis [...] Com uma semana todos os aparelhos já estavam montados, grandes canhões apontavam, de diversos cantos da praça, para o céu. Os mais entendidos da vila, fingindo compreender as explicações dos invasores, tentavam acalmar a maioria, que permanecia apreensiva com tudo aquilo. Antes que os moradores dos povoados se acostumassem com os visitantes e suas extraordinárias maquinas de apontar para o céu, o mundo escureceu pela primeira vez às três da tarde.)
    Mas também de repente, como tinha escurecido, começou a clarear [...] Na praça, os estrangeiros davam pulos de alegria e estouravam garrafas de espuma [...] os que falavam melhor tentaram, em vão, explicar aos curiosos o que havia acontecido [...]  porém não souberam explicar de onde surgiu e para onde foi o imenso pássaro que sobrevoou a vila na escuridão.
    No mesmo dia desmontaram os aparelhos e foram embora…”
             (de A passagem do dragão, de Pedro Salgueiro)

“Na verdade, antes de mim, jamais se ouviu um relato confiável a respeito desses supostos inimigos…”
             (de A grande fogueira, idem)

   Em 2006, em Dos Valores do Inimigo, Pedro Salgueiro fez uma seleção entre os textos curtos que publicara até então (nas coletâneas O Peso do Morto, O Espantalho e Brincar com Armas). O conjunto assinalava um escritor de admirável sobriedade e controle da narração, sintético e cheio de lampejos brilhantes, mas traia igualmente certa timidez narrativa (que se sobrepunha ao talento imaginativo), poucas vezes indo até o fim do que sugeria com suas histórias. O adjetivo “curto” para os textos era tanto índice de qualidade quanto de limitação[1].
    Essa oportunidade de rever seu percurso anterior permite valorizar ainda mais o salto que Inimigos, uma das obras de ficção mais notáveis publicadas no Brasil dos últimos anos, representa. Salgueiro utilizou alguns dos incluídos na antologia citada, juntando-os a outros (num total de 20) de altíssimo nível, fazendo um aliciante misto de romance e de conto e nos propondo uma idéia de sertão completamente desvinculada de quaisquer clichês ou personagens “típicos”.
    As histórias se referem à Papaconha, povoado cuja inquietante característica é não ser fixo. Segundo o que corre no sertão, seus habitantes são os “inimigos” que estão sempre de mudança, aproximando-se, e podem chegar e invadir a região (um processo que leva gerações): “O boato corrente na região dava conta da existência de um povo estranho, que pretendia invadir e saquear todos os lugarejos, escravizar seus homens, aproveitar-se de suas mulheres e comer suas criancinhas. Mas a distância que os separava era tanta que, se um bando deles se dispusesse a andar até os vilarejos, certamente morreria no caminho, e as poucas crianças que porventura os acompanhassem chegariam tão velhas que nem forças teriam para contar as histórias do percurso”. Por isso, dissemina-se um sentimento de expectativa, de angústia, de fim de mundo, “esse medo que nos consome desde o começo dos tempos”.
    Há quem acredite (como o narrador de Um Batedor) que infiltrados de Papaconha ocultem-se entre os moradores locais - os “inimigos” podem estar entre quem menos se espera, como a esposa de  Fronteira (o marido “cavou trincheiras no jardim e montou um observatório no galho mais alto da ingazeira do quintal”, nem se dando conta de que o adversário “se infiltrara há muito tempo em sua guarda, já organizava junto com ele as mil situações de defesa, sussurrando em seu ouvido opiniões absurdas, desfocando lentes, cuspindo debochado no assoalho da sala enquanto ganhava a sua confiança. Se não olhasse para tão longe já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as panelas do fogo).
   Há quem se sinta forasteiro e “inimigo” como o narrador de Descoberta, ou nostálgico, como o de Madrugada (um daqueles textos anteriores, nos quais a intuição certeira do grande escritor cearense identificou as marcas desse universo de valores em choque, sem que possamos decidir qual é o lado “certo”); há quem se perca pelo mundo e acabe em povoados que podem ter a marca de Papaconha, e de qualquer forma são quase experiências com alienígenas, como os narradores de Aleine, A grande aventura e Perdido.
    O peculiaríssimo universo sertanejo de Pedro Salgueiro, a ambivalente tensão que estabelece entre os pólos do atraso e da modernização, nos remete às parábolas e fábulas de Kafka como, por exemplo, Uma mensagem imperial ou Um médico rural[2], um mundo onde as pegadas morais se apagam, as certezas se dissolvem, a realidade se torna ameaçadora (e muitas vezes cômica), como se também nos perdêssemos por trilhas inesperadas, sem que haja um único elemento sobrenatural, como experimenta o marido atrás da esposa desaparecida: De repente, um medo tomou conta de mim… e disparei na mais apressada carreira de que as minhas pernas foram capazes… Corri a madrugada inteira, subi e desci serras, encontrei nova estrada—sempre me afastando. Hoje não me arrisco a perguntar por Aleine, apenas observo disfarçadamente os rostos femininos em meio à multidão. Não olho muito para não despertar suspeitas, pois sei que - enquanto eu a procuro - muitos fariam de tudo para me impedir de chegar a ela”. Tudo e todos se tornam estranhos e absurdos. E a linguagem brilha,  absolutamente irretocável, nessa obra-prima (acho que já dá para arriscar essa avaliação ousada) da nossa literatura atual.

[1]   Já não tenho mais essa opinião.  A leitura de Pedro Salgueiro, aliás, está me demonstrando mais uma vez como é interessante e absorvente acompanhar a “evolução”, por assim dizer, de um determinado universo criador. No momento em que escrevi a espinha dorsal do texto acima, não havia lido nem O peso do morto nem Brincar com armas, cuja leitura modificou consideravelmente os dados. A obra de Salgueiro é um pouco como a sua cidade de Papaconha: nunca fixa, sempre movente, e inquietante.

[2]  Discordo, nesse ponto, de  Miguel Sanches Neto, o qual escreveu um simpático posfácio à edição da 7 Letras (Coleção Rocinante, 2007), em que afirma: “Se fosse para eleger um parentesco literário, poderíamos dizer que a vila dos contos e a cidade móvel chamada Papaconha [...] são desdobramentos das orbes fictícias de Italo Calvino (As cidades invisíveis), o que significa dizer que elas guardam as mesmas latitudes imaginárias, funcionando mais como  metáforas do que como pontos em um mapa.” A meu ver, isso passa longe do coração do universo de Salgueiro, uma vez que—sem ser menos profundo ou complexo—o universo de Calvino tem uma benignidade, uma deliberada leveza, uma transparência, muito pouco afins de Papaconha e das vilas que aparecem em Inimigos, mais próximas de Kafka, de José J. Veiga e Juan Rulfo, com um sentido mais trágico e “pesado” da existência.

"Hábitos do ofício, brincadeiras testosterônicas e boemia 1: happy hour de bancários", de Manuel Soares Bulcão Neto


"Angústia" de David Alfaro Siqueiros




“Não leve problemas do trabalho para casa”, determina o bom senso. Mas… e quanto a nós, escritores, que trabalhamos em casa, sob – como se costuma dizer – os “tormentos da criação”? E sem ganhar dinheiro?! Por isso que minha mulher (inteligente e pragmática como todas as advogadas) pediu o divórcio. Decisão sensata.
Quanto aos “hábitos” do ofício, ora, passamos a maior parte do nosso tempo de vigília trabalhando. Tão condicionados ficamos que impossível não levá-los para onde quer que vamos.
A propósito, lembro-me da época em que fui bancário (escriturário do extinto BEC). Sexta-feira à noite, relaxávamos eu e outros – todos, menos eu, estudantes ou formados em Contabilidade – pelos bares da Avenida Tristão Gonçalves. Pois, bêbados ou não, em qualquer conversa manifestavam sua “visão contábil do mundo”. Exemplo: à luz de um globo colorido e giratório, contei a um deles que, logo após o big bang, igual era a quantidade de matéria e de antimatéria – sim, meu papo sempre foi teórico, abstrato e chatíssimo –; que houve um processo de aniquilamento mútuo, restando, como refugo, um oceano de fótons e ínfima quantidade de matéria: esta de que nós somos feitos. Meu insólito interlocutor, com ar de espanto, disse: “Quer dizer que somos parte do patrimônio líquido do universo!”.
Noutra dessas “noites no século”, o mais feio e desengonçado deles – do tipo que, por mais caríssimas que sejam as roupas de griffe que vista, em vez de elegante fica só “enfeitado” – afirmou, jactando-se, estar namorando uma mulher casada. O único que acreditou passou-lhe um sermão: “Essa senhora” – nestes termos falou – “é um crédito indevidamente lançado no livro-caixa da sua vida. Estorne-a!”
Havia, ainda, o poeta da turma. Romântico – sim, empacou no romantismo –, costumava afetar profunda introspecção e melancolia (ou, como ele preferia chamar, tedium vitae), principalmente na frente de mulheres, entre as quais escolhia, para namorar, a mais “bandida”, só para ser corno (outra vez, sempre) o mais rápido possível, curtir aos prantos a dor de cotovelo e ter inspiração para escrever poemas — versos que recitava para outra musa “com cara de safada” num eterno retorno de dar piedade. Por sinal, ele lembrava muito aquele poema Elegia desesperada, em que Vinicius de Moraes roga a Deus que tenha piedade das meninas feiosas que, na adolescência, adquirem buço, dos que andam de ônibus, dos que empobreceram, dos práticos de farmácia que queriam mesmo ser médicos, dos ficcionistas frustrados que, para compensar, tornam-se ensaístas (poxa, o Vinicius foi muito cruel!) e, também, “muita (sic) piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta…”.
Pois, também bacharel em Contabilidade, às vezes, vagueando nas profundezas abissais do seu espírito, levantava-se da mesa, saía do bar e, na calçada (um cigarro no canto da boca, parecendo o Bogart) contemplava o firmamento infinito — contemplação à maneira contábil; isto é, ficava a “contar” as estrelas e com o cuidado de não deixar passar nenhuma célula falsa: “Uma, duas, três, quatro… não, aquilo é um avião… quatro, cinco, seis, sete…”.
Seu insight poético mais hilário e criativo, porém, foi na vez em que, agraciado não com um chifrezinho qualquer, mas com uma galhada do já extinto alce canadense (a maior que jaz registrada nos anais da zoologia), abraçou-me chorando e, entre soluços, desabafou: “Bulcão, minha autoestima nunca esteve com o passivo tão a descoberto!”. “Ó que bela metáfora!”, foi o que me saiu da boca. Ele, apesar do choro, abriu leve sorriso. “Obrigado…”, disse-me, agradecendo o elogio.
E por falar em poetas, estes, tanto os profissionais (isto é, os raríssimos que vivem do seu ofício literário) como os permanentemente desempregados (em cada esquina existem pelo menos doze) mantêm o cérebro operando, o tempo todo, no modo mágico-poético. Em tudo vêem metáforas e metonímias — e se rimarem, melhor. Um mundo, portanto, literalmente onírico e de tal modo fantástico que, estando o poeta em saias justas ou situações-limites, de seus atos e palavras podem surgir imagens as mais inusitadas e de uma criatividade que somente os deuses, “quando ainda crianças”, são capazes de manifestar. Conheço um caso bem ilustrativo. Não sei se devo contá-lo… Vou!
Meu saudoso amigo Francisco Moreira Júnior (“Bigo”, entre os mais íntimos), poeta (um dos mais criativos que já conheci), nos episódios maníacos do seu transtorno bipolar, perdia o controle sobre as pulsões eróticas do id. Em consequência disso, flagrei-o, num recanto escuro do campus do Benfica, dando o maior amasso na garota com quem eu estava “ficando” (aviso que, na época, eu ainda era solteiro!). Pareciam dois animais!… Bem, na verdade não — pelo menos não conheço nenhum animal que faça aquilo. A menina, morta de vergonha, limpou as mãos na calcinha e as levou ao rosto. Quanto ao Moreira, disse-me ele a seguinte pérola:“Bulcão, pelo amor de Deus entenda tudo isso no sentido figurado!”

Manuel Soares Bulcão Neto para o blogue Arte do Conceito  http://artedoconceito.blogspot.com/

X Semana Paulo Freire no Museu do Ceará (7.12)


Clique na imagem para ampliar!


Clique na imagem para ampliar!

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Lançamento "O Povo Fez Sua Santa", de Dellano Rios, no Museu do Ceará (7.12)

Clique na imagem para ampliar!

Ganhador do Prêmio Literário para Autor (a) Cearense da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, categoria Prêmio Guilherme Studart, de Ensaio Sobre Tema Histórico/Cultural