sábado, 29 de janeiro de 2011

"As Coisas Secretas da Alma", de Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro

Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até a morte delas.


E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos —porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz.


Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou — não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir — apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranhas são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar.


Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive — não existem. Nem poderiam existir.


No dia em que se compreendessem totalmente — ó ideal dos amorosos! — eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.

"A Um Ausente", de Carlos Drummond de Andrade


Tenho razão de sentir saudade,

tenho razão de te acusar.

Houve um pacto implícito que rompeste

e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.

Detonaste a vida geral, a comum aquiescência

de viver e explorar os rumos de obscuridade

sem prazo sem consulta sem provocação

até o limite das folhas caídas na hora de cair.


Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.

Que poderias ter feito de mais grave

do que o ato sem continuação, o ato em si,

o ato que não ousamos nem sabemos ousar

porque depois dele não há nada?


Tenho razão para sentir saudade de ti,

de nossa convivência em falas camaradas,

simples apertar de mãos, nem isso, voz

modulando sílabas conhecidas e banais

que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste

o não previsto nas leis da amizade e da natureza

nem nos deixaste sequer o direito de indagar

porque o fizeste, porque te foste.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

"Saudade", poema sem querer de Raymundo Netto


Saudade

Palavra que (é) chama

Na alma lesa que ama.

A tonta esperança de se morrer de rir

Mas a chorar, a mentir, feito moleque

Nas madrugadas de preguiça e de pileque

Suportar no coração a derriça

Correr os olhos de cinzas no céu chuvoso

E a se perder no vasto amplo do nada absoluto,

Impoluto e breve.


Saudade

Fruto da inocência, da semência

Do verão, a neve.


Saudade de tudo

Saudade

"Turistas das Letras", crônica-ensinamento de Airton Monte

Graças às bênçãos salvadoras de Apolo e das musas de plantão, para o gáudio de quem gosta de ler um bom livro, ainda existem escritores, não importa a sua nacionalidade, que escrevem tão bem, mas tão bem, que uma vez lidos, torna-se praticamente impossível deixar de lê-los e de relê-los regularmente, pelo prazer que nos proporcionam com boas histórias e ótimos enredos. Tais escritores de primeiro time são literalmente encantatórios como os encantadores de serpentes e prendem o leitor logo no alvorecer da primeira página. Todos eles são capazes de seduzir o leitor, por vezes, só pelo título do livro, e o leitor, depois de ser fisgado, não tem outra saída senão ir em frente na leitura, completamente fascinado até chegar o ponto final.


A relação entre um escritor e seu público não passa de um estético jogo de pura sedução, um flerte, um namoro, uma paquera literária que até pode virar um momentâneo affair ou paixão avassaladora, dessas que restam para todo o sempre. Sim, porque existem escritores que desafiam o tempo e mesmo depois de mortos, continuam a atrair leitores fiéis, jovens ou velhos, não importa. O bom escritor, aquele que entende do seu ofício, é que nem craque de futebol. Pode jogar mal, pode jogar bem, pode até perder um pênalti aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo e ainda assim, a torcida inteira, comovidamente, o cobre de aplausos e de desculpas. No Brasil, infelizmente temos poucos desses tipos raros. João Ubaldo Ribeiro é um deles. Carlos Heitor Cony é outro.


E por falar em João Ubaldo, um dia desses, em horário mais do que impróprio, me telefonou um desses paulificantes turistas das letras às doze da matina e de um, imaginem, domingo. Só não o mandei para aquele lugar onde a senhora sua genitora o pariu, por um restinho de civilização. Tomado da mais intensa aporrinhação, passei a mão no Graham Bell como se sacasse um revólver. E o que desejava de forma tão urgente o referido chato de galochas? Ora, como sempre, me forçou a ouvir um novo conto seu durante duas horas seguidas e ainda teve a coragem de pedir a minha mais sincera opinião. E eu quase que a disse, mas me contive a tempo para evitar esticar a conversa. Além do mais, pra completar, o referido curioso do ato de escrever sentia-se profundamente decepcionado porque o João Ubaldo afirmou com todas as letras, numa entrevista, que só escrevia por dinheiro.


Logicamente, o chatíssimo escriba de fim de semana, como todo e qualquer amador, de folgadíssimo bolso que o permite financiar os seus próprios livrecos, tem a suprema coragem de espantar-se com o óbvio ululante, nu, pintado de vermelho berrante, de melancia ao pescoço bem no meio da Praça do Ferreira. Disse-lhe, então, porque paciência também tem limite, à queima-roupa, que eu também só escrevo por dinheiro, pois escrever trata-se de um trabalho honesto e digno feito qualquer outro. Já faz muito tempo que não escrevo mais de graça, tirante um prefácio para os amigos e poema pra mulher bonita. O turista das letras, graças a Deus, cortou imediatamente o papo e eu desliguei o telefone o mais rápido possível e ainda o tirei do gancho.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

"Chuvantiga", crônica nº 1 de Raymundo Netto para O POVO


Seria uma crônica sobre a chuva? Mais uma, dentre tantas, não fosse o fato de que, ao entranhar a lembrança no pensamento, senti chover-me no peito a chuvantiga. A quedar-me assim, comecei:


Numa das ruas do Monte Castelo, seguia um barquinho de papel a correr-lhe pelas águas frias das coxias. Sem pressa, sem pressa, chuá, chuá, imaginava: todas as aventuras do mundo cabiam naquele barco a desmanchar-se lentamente enquanto vaguejante por sobre um céu baço que parecia, na meninice, ser tão grande.


Nas calçadas, buscando bicas, outros meninos e meninas saltavam felizes a tiritar, braços cruzados ao peito, inda livre, crentes na simplicidade de uma vida a viver ainda distante e muita.


À praça redonda, as peladas nas areias corriam entre pernas ligeiras. Os menores piscinavam no antigo chafariz coberto em mosaicos vermelhos que nem vi crescer, assim como aquelas crianças.


Em volta, pretos guarda-chuvas cumprimentavam-se com bons-dias domingosos; o peixeiro a cantar para as freguesas aos portões; encimando os muros baixos, verdes em limos, as buganvílias, afirmando um vai-e-vem, dançavam; os cães a ladrar o estranhamento; as águas cortinavam, de cores, arco-íris na varanda; as empregadas corriam a desroupar o varal: “Chega, menina!”; o cheirinho de terra molhada entupia as narinas quando os respingos frios — vinham das venezianas do quarto — jaziam no travesseiro; o tactac repenicado no telhado acompanhava o grito do vizinho no alto do muro do quintal; o quintal avermelhecido em acerolas.


Era manhã e na sala inda escura o café esperava — passado no pano —, com leite, o pão francês quentinho e a manteiga de lata.


O pai, a mãe, os irmãos: nunca a mesa fora tão pequena.


Chovi com a chuva a tarde que ribombava.


“Mundo, mundo, vasto mundo”... Ah, se eu não me chamasse Raymundo, como vento gemeria, não em prosa, mas em poesia, todo o vivido retrato que, só no escuro deste quarto, a rasgar os céus azula-me o clarão, pela janela distraída do nublado coração.


Raymundo Netto. Contato: raymundo.netto@uol.com.br blogue AlmanaCultura: http://raymundo-netto.blogspot.com


domingo, 23 de janeiro de 2011

"Estrela", poema de Raymundo Netto


Sonho ou não:

Poeiras de estrelas grudaram-lhe à pele

Queimaram-na

E das feridas, em pústulas ardentes,

Rompeu uma lua nova.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

"Noite", de Terensinka Pereira para o "Literatura sem Fronteiras"


A neve cobre o chão.

Não há estrelas no céu.

A tristeza

vem com a noite

e se encosta em minhas

pálpebras

para que eu não sonhe

contigo.

"Poema obsceno", de Ferreira Gullar


Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira

Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
- e espreitam.

"Gramática do Silêncio", poema do Poeta de Meia-Tigela

"Perfil da Luz" de Odilon Redon (1840-1916)

...Uma carta iniciada:

Mais nada (jamais conclusa).

Uma frase delicada

Mas muda (de tão confusa).


Questionário sem quesito,

Descrente em confessionário.

O dito pelo não-dito,

Melhor dizendo, o contrário.


E um desejo de que não

Permaneça a boca, escrava.

Mesmo se de extremunção

Dissesse uma só Palavra!..

"Os FitoManos" em "Dura Missão de Espelho"

Os FitoManos, de Raymundo Netto

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"Pierre e Claudia", artigo de Tércia Montenegro para O Opinião de O POVO

Foto: Claudia Andujar Índios Yanomami. Série Marcados, 1980-1983

Quando vi pela primeira vez o trabalho de Claudia Andujar, logo tive em mente as obras de Pierre Verger. Havia muitas razões para aproximá-los, e a mais superficial apontava ambos como fotógrafos estrangeiros que fizeram do Brasil sua voluntária pátria.


Descobri Claudia no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Numa das salas de exposição, deparei com uma série dos seus retratos de ianomâmis. Cada um deles – não importava a idade, o sexo – trazia pendurada no pescoço uma plaqueta com um número. Foi a maneira de identificar os que já tinham sido vacinados, a forma encontrada pela pequena equipe assistencial, para organizá-los numa espécie de lista. Claudia passou cinco anos fotografando os ianomâmis. Em quase todas as imagens, vemos que os números são artifícios violentamente alheios à cultura, à expressão facial daquela gente de olhos rasgados e selvagem timidez.


Apenas dois idosos sorriem para a câmera, um com a boca escancarada, com dentes ruins e expostos de um jeito irreverente, quase pop. O outro pisca na hora da foto; de repente, percebo que de fato não são velhos; devem ter trinta, no máximo quarenta anos.


Mas é que seus rostos têm marcas de floresta...


Um rapazinho gracioso – o número 4 – põe o dedo na boca e inclina a cabeça; quase ri. Tem uns olhos imensos, meio extraterrestres. Os índios de números 79 e 85 ensaiam um sorriso, mas estão desconfortáveis, numa pose de galãs. E as moças de seios nus, com meninos no colo (que seguram com displicente amor), têm na maioria um ar distraído. O bebê de número 20 chora; tem os lábios contritos, duas lágrimas se empoçam sob seus olhos.


A exposição se chamava “Marcados para”, e o texto explicativo trazia uma nota pessoal, sobre a família de Claudia. Seu pai, um judeu húngaro, recebeu o rótulo da estrela-de-davi pouco antes de ser levado para Auschwitz. Aquele símbolo, costurado às roupas, era uma marca que conduzia à morte. Ao contrário, a plaqueta identificatória marcava os ianomâmis com intenções de vida e saúde.


Ora, as fotografias de Pierre Verger também são, a um tempo, obras de arte e de antropologia. Diante do preto-e-branco de suas imagens, inclinam-se igualmente os estudiosos e os maravilhados. E há – para além do que o corpo e a paisagem revelam – uma tentativa de ultrapassar a cena e mostrar o abstrato, a pulsão do sentimento, o viés supracultural.


Assim, retratando rituais religiosos de povos africanos ou indígenas, Pierre e Claudia conseguiram (cada qual dentro de seu tempo e sua intenção) elaborar um estético espiritualizado. É neste ponto, creio, que reside o traço que mais os aproxima. As fotografias de ambos evidenciam qualquer coisa intangível que, em última instância, une todos os artistas. É algo relativo a uma sensibilidade específica, que ultrapassa estilo ou modo de se expressar.


Tércia Montenegro - Fotógrafa, escritora e professora da UFC - literatercia3@gmail.com

"Quando desaparece uma linha de ônibus", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO


Fica uma saudade doendo na memória, daquele velho ônibus que pegávamos no tempo de colégio, de sufoco na saída apressada do trabalho para ir ainda à casa da namorada, da “pinada” quase perfeita das duas paradas puladas depois, pernas trôpegas de volta... Sinto uma saudade medonha do Vila Sarita, do Santa Maria desbravando o Monte Castelo (só hoje existe a miniatura sem graça), mas linha nenhuma me deu mais alegria, prazer e saudade que o Jardim América/via Itaoca... (vez por outra ainda o avisto ziguezagueando Montese adentro... Sem volta definida!). Quantos poemas e ficções dariam nossas sofridas e aventurescas linhas de ônibus, atuais e antigas... Queria ter o talento dos poetas Ruy Vasconcelos ou Carlos Nóbrega para com minúcia ir fazendo nossa odisseia suburbana de Aldeota e Parangaba, de Mucuripes e Antônio Bezerra, de João XXIII e Autran Nunes, entre outros expressos mais. Ou como bem fez o Poeta de Meia Tigela saudando, em lamento (leia a seguir), o recente final da linha Paranjana (da qual só vi igual aventura pegando um Grande Circular às 6 da tarde). De lambuja ainda recolheu pérolas que pululam pela internet sobre o triste fato.


Hino do Paranjana

(Poeta de Meia Tigela)


Antônio Bezerra, Parangaba e Lagoa

Só não Siqueira, nem a Messejana

Vá com glórias, com pressa quase voa

Nosso Querido e lotado Paranjana!


[Refrão]
Paranjaaaana, Paranjaaana

És lotado, és cheio de glória

Paranjaaaana, Paranjaaana

Minha herpes é tua memória!


Mesmo que um dia batessem minha carteira

Adorava entrar em ti, no Papicu

Mas agora tu foste embora

Tô atrasado e sem rumo


Seis da tarde era teu Paraíso

Venturoso, cheio de odor

Ostentas a beleza do aperto

E o suor do povo trabalhador


Alvo da molecagem

A notícia do fim das linhas Paranjana 1 e 2 rendeu muitas piadas no Twitter. Vários internautas aproveitaram para soltar “pérolas” nos #paranjanafacts:


1) “A maioria do meus anticorpos consegui no Paranjana.”

2) “Foi uma coisa de outro mundo... Foi a primeira vez que eu levitei...”

3) “Os 300 de Esparta foram até Termophilas em um só Paranjana.”

4) “Quando conseguia assento no Paranjana nem me sentava... Me ajoelhava para agradecer a graça alcançada...”

5) “O Paranjana foi praticamente a primeira rede social de Fortaleza... Todo mundo se conhecia ali...”

6) “As três maiores mentiras da Humanidade: “Nem Deus afunda o Titanic.”, “O 3º Reich durará mil anos.” E “Eu peguei um Paranjana vazio.”

7) “Cliquei em #paranjanafacts e apareceu Twitter is over capacity. Mera coincidência?”

8) “Ao ver o número 41 se aproximando, o passageiro já vai se alongando...”

9) “Uma vez eu peguei o Paranjana tão lotado que o motorista ia em pé e o trocador vinha atrás de mototáxi.”

10) “Felicidade é estar sentado na última cadeira e o motorista acelerar na subidinha da ponte do rio Cocó, só pra te fazer voar...”

11) “Paranjana 1 e 2, os únicos conversíveis que andei – andava só com os pés e as mãos dentro do ônibus, pendurado na porta...”

12) “Capitão Nascimento perdeu a moral no Paranjana. Seu famoso ‘Pede pra sair’ não surtiu efeito algum!”

13) “Definição da palavra ilusão: “Pegar o Paranjana no terminal da Lagoa pra descer na Parangaba.”

14) “Depois da Ortobom, o slogan só vale pro Paranjana: “1/3 da sua vida você passa sobre ele”.”

15) “Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço?! Até Newton foi derrubado pelo Paranjana.”

16) “Velocidade Máxima só não foi filmado no Paranjana porque se não o filme teria umas oito horas de duração.”

17) “Depois que conheci o Paranjana, nunca mais comi sardinha em lata... São como irmãs pra mim!”

18) “Capitão Nascimento falou na parada do ônibus: “Não vai subir ninguém, hein!”. De nada adiantou, todos correram para entrar no Paranjana.”

domingo, 16 de janeiro de 2011

"As nitio-abás de antigamente", crônica de Ana Miranda para O POVO (16.1)


Considero-me romancista, portanto, tenho grande curiosidade em conhecer a história das romancistas brasileiras. Como o romance chegou a mim, quem levou os primeiros “tiros no peito”, como diz a Lygia Fagundes Telles. Achava eu que pouco havia romancistas, nos tempos antes de Rachel de Queiroz até Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira que teria escrito o primeiro romance de brasileira e o fizera em Portugal, em 1752, sob pseudônimo. Mostrando como Diófanes, Climeneia e Hemirena, príncipes de Tebas, venceram os mais apertados lances da desgraça, dedicava-se a ensinar as máximas de virtude e formosura, enquanto atacava a monarquia. A erudição e o inusitado feminil dessas páginas levou contemporâneos a atribuírem a autoria a Alexandre de Gusmão, iluminista estrangeirado e conhecido por seu horror ao despotismo e sua virulência na crítica ao Trono. Depois se descobriu o nome da escritora, escondido no anagrama: dona Theresa Margarida da Silva e Orta, irmã do moralista Mathias Ayres. “Certamente a autora foi orientada pelo irmão e pelo protetor”, dispararam. Tive a oportunidade de ler o romance, e achei-o bonito, estranho, possuído por seu tempo... Depois descobri o pungente livro de Maria do Carmo de Melo Rego, Guido, sobre seu indiozinho Piududo.


Romances de outras mulheres... Nada nas minhas enciclopédias, antologias, nas histórias literárias, nas formações da nossa literatura... Uma floresta à noite... Mas o passado pode ser refeito por indícios, e o fazemos de acordo com as necessidades dos novos tempos. Com o interesse pelo feminino surgiu, em 1999, uma maravilhosa antologia publicada pela Editora Mulheres, levantando escritoras brasileiras do século 19: poetisas, dramaturgas, prosadoras... Algumas foram romancistas. Duas delas, cearenses: Emília Freitas, nascida em Aracati, 1855; e Ana Facó, em Beberibe, mesmo ano. O romance psicológico de Emília Freitas, A rainha do ignoto, publicado em 1899, num tom meio gótico e insólito conta a experiência de um jovem culto, rico e racionalista que, em viagem ao Ceará, avista à noite, a descer num bote o rio Jaguaribe, uma mulher vestida de branco, cabelos soltos, cingida por uma guirlanda de rosas. Apaixonado pela visão irreal, o jovem sai em busca do mistério. A mulher, chamada pelos nativos de Fada do Arerê, entre outros nomes, é rainha de um mundo de amazonas dedicadas a fazer o bem, para isso usando de magia, pactos, ilusões. O jovem se depara, na verdade, com uma simbologia do sinuoso mundo feminino. Esse romance se localiza entre os pioneiros do gênero fantástico no Brasil. Li apenas fragmentos, mas acho a história bela, imaginativa e ousada. Emília Freitas escreveu outro romance, O renegado, de 1890, do qual não se conhece nenhum exemplar, quem sabe nossos bibliófilos o encontrem...


Ana Facó usava o pseudônimo de Nitio-Abá, não homem, não índio, não pessoa. Escreveu dois romances, publicados sob a forma de folhetins, capítulo a capítulo, em jornal. Rapto jocoso, 1906, romance popular histórico, passeia pelos sertões cearenses por meio da história de dois pretendentes à mão de Dunamira: um velho e um jovem. Narra num tom, segundo crítico da época, de humor bastante machadiano. Dos trechos que li, gostei imensamente da riqueza de linguagem, das citações a quadrinhas sertanejas, a costumes locais. “Bonina, flor da noite, Não abre senão de tarde; Pelos olhos eu conheço Quem me quer bem de verdade.” No outro romance, Nuvens, 1907, um casal de enamorados se separa pelas intrigas de uma pretensa amiga. Os dois foram publicados em livro apenas depois da morte de Ana Facó, e merecem reedição, assim como os de Emília Freitas. Precisam ser conhecidos, e lidos por olhos encantados.


Fico feliz, as mulheres não estiveram assim tão ausentes do romance brasileiro, apenas foram lançadas ao oblívio. Ainda surgirão outras. No Ceará, terra de matriarcado, com heroínas, potentadas, guerreiras valentes, abolicionistas, haveria de haver romancistas anteriores a Rachel de Queiroz. “Mas a rotina da educação provinciana, a timidez, a resignação um tanto oriental do seu temperamento, tudo leva a negligenciar o cultivo do espírito em proveito das utilidades da feminilidade tradicional”, como escreveu nosso poeta Antonio Sales, citado no livro da professora Cecília Maria Cunha, Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses. Esse precioso livro aprofunda o conhecimento sobre as duas romancistas cearenses, localizando-as entre nossas outras escritoras de poesia, dramas, textos jornalísticos. E vemos como foi difícil desbravar caminhos dentro do mundo cultivado pelo espírito.


Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras.

sábado, 15 de janeiro de 2011

"Noite com sátiros e bacantes", de Nilto Maciel para o "Literatura sem Fronteiras"

Nunca tive sonhos de doido. Não viajo ao Kilimanjaro nem me encontro com Jesus de Nazaré. Não enfrento leões nem me abraço com Salomé. Sou normal, tenho sonhos de funcionário público bem remunerado: passeio de carro novo, família numerosa e sadia, algum voo entre estrelas de quinta categoria, divertimento com beldades de Hollywood. Hoje, porém, sonhei com Pedro Salgueiro e Dimas Carvalho. Ora, dirão os leitores: Onde está a loucura? Todo escritor sonha com dois ou mais escritores. E ninguém vê nisso sandice. Muitos veem, isto sim, latente homossexualismo. A insânia está, meus amigos, no tempo e no espaço da história. Éramos romanos ou, se não tanto, cearenses em visita a Roma. Não a Roma de Silvio Berlusconi e Bento XVI, ou Benedictus XVI ou o alemão Joseph Ratzinger. Estávamos nos primeiros anos da era cristã. O Rex Iudaeorum tinham crucificado havia pouco tempo. Dominava o mundo o Big Brother Tibério. E Dimas dava explicações minuciosas: Não o chamem simplesmente de Tibério. O nome completo é Tibério Júlio César Augusto. A brincar, Pedro saiu a dar pulinhos e a gritar: “Morra, Tibério!” Um centurião, com cara de Benito Mussolini, seguido de 100 soldados, passava ao largo. Apavorado, Dimas balbuciou: Plínio, o Velho, o chamou de “tristissimus hominum”.


Súbito – e não sei explicar como isto se deu –, estávamos diante do Coliseu. Olhei para Dimas e perguntei: Se Tibério foi Imperador até 37 d. C., como podemos ver o anfiteatro, inaugurado em 81? Pedro, sério, benzeu-se: Caminhamos para o fim dos tempos. Pusemo-nos a caminhar e, de repente, chegamos a uma enorme praça. Exaustos, sentamo-nos num banco. Que lugar é este? Passavam por nós odaliscas, palhaços, papangus, índios, judeus, muçulmanos, tipos esquisitos. Dimas ria: Isto é a Praça do Ferreira no carnaval de 2011. Diante de nós parou um sujeito pançudo e, bêbado como os demais, acionou uma buzina e gritou: Vocês querem bacalhau? E jogou para o alto exemplares do meu Carnavalha, das Fábulas perversas e de O peso do morto. A multidão os pisoteou e rasgou com os pés. Irritados, saímos a voar. Circundamos o prédio do Cine São Luís e rumamos para o Monte Castelo. Num segundo, alcançamos minha casa. Fui à geladeira e apanhei latinhas de cerveja. Vamos comemorar nossas viagens, nossas aventuras. Deixemos a plebe nas praças.


Como se esquecidos das aventuras romanescas, pusemo-nos a falar da realidade, do Ceará, do Brasil, dos escritores. Esmagada a décima latinha, Pedro fez a primeira pergunta da noite: Sabem por que não somos famosos? Dimas deu resposta imediata: Porque não somos muito bons. Quem é muito bom? Citou José de Alencar, Oliveira Paiva e Rachel de Queiroz. Fui à copa à cata de mais bebida. Pedro quis incluir outros nomes à lista: Adolfo Caminha, Gustavo Barroso, Moreira Campos e Ana Miranda. Propus Caio Porfírio Carneiro, Gerardo Mello Mourão e Francisco Carvalho. Antes de eu mencionar mais três ou quatro, Dimas jogou lenha à fogueira: Além de não sermos muito bons, vivemos na província mais provinciana do Brasil. Pedro apresentou duas hipóteses para explicar a pobreza de nossos “literatos”: a de não sermos publicados por grandes editoras do Sudeste e a de não nos empenharmos a um só gênero literário. Refutei uma delas: Moreira Campos só se dedicou ao conto, Francisco Carvalho só se devota ao poema. Não nos entendíamos. Busquei mais líquidos e, também trôpego, anunciei a chegada de três bacantes. Dimas se entusiasmou. Há meses não via de perto mulher formosa. Eu quero desfilar em carro aberto pela Via Appia sob aplauso dos centuriões. Pedro esfregou as mãos e se pôs a sonhar: Eu quero levar ao circo as peripécias de Papaconha. Chegaram, sorridentes e sedutoras, as três divindades: Violeta Feitosa, Jéssica Morais e Nicole Masina. Servi-lhes suco de graviola. Pedro se aproximou delas e, tentáculos em movimento de posse, gritou: Eu quero rasgar a boca dos leões romanos. Elas riram, assustadas. Tentei ser polido: Estão brincando o carnaval. Dimas friccionou as patas dianteiras, como um semideus caprino, e se aproximou também delas, de joelhos: Eu quero ver os súditos de Tibério prostrados aos meus pés e eu a ler meus contos fantásticos no Coliseu lotado. Violeta me chamou ao quarto: Eles estão drogados ou são apenas personagens seus? Jéssica também se socorreu comigo: Eles querem me devorar. E a pobre Nicole? Talvez tenha sucumbido ao assédio dos sátiros. Fui à sala e raptei a terceira menina dos braços daqueles celerados. Fechei a porta do quarto e me deitei com as três. O resto não conto. Pulo para o fim da noite, o início da manhã.


Acordei fatigado e só, como se mil bacantes me tivessem possuído por toda aquela noite romana e cearense.