quinta-feira, 30 de setembro de 2010
A Lonja:performances circenses, Núcleo de Circo do Teatro das Marias (1.10)
quarta-feira, 29 de setembro de 2010
Apresentação de Sânzio de Azevedo à "Prelúdios Poéticos" (1856), de "Juvenal Galeno:obra completa"
Sânzio de Azevedo
Ministrando aulas no Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará-UFC ou escrevendo em jornais e revistas de nossa terra, há mais de trinta anos tenho lutado contra uma lenda que teima em vir à tona, vez por outra. Essa lenda é a de que Juvenal Galeno só começou a fazer poesia de caráter popular depois de um conselho que recebera de Gonçalves Dias, que estivera no Ceará em 1859.
Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde), em livro cuja primeira edição é de 1928, depois de afirmar que a atividade literária no Ceará começou exatamente “com a chegada de Gonçalves Dias, refere-se aos Prelúdios poéticos, publicados por Juvenal Galeno no Rio, em 1856. E completa:
O estreante de 20 anos procurou naturalmente o grande cantor das selvas e dos índios. E este aconselhou ao poeta imberbe que se deixasse de versos acadêmicos e que procurasse no povo e na terra a matéria poética dos seus versos.[1]
É o caso de perguntar: se os poemas do primeiro livro do autor cearense nada tinham da musa do povo,
O pior é que um grande escritor cearense, nada menos que Antônio Sales, afirmou, num livro do final dos anos trinta, após falar do Romantismo:
Foi esse um áureo período do pensamento brasileiro. Juvenal Galeno, obscuro e mal aclimado ainda, entrou como pôde no torvelinho, e aos vintes anos (1856) publicava os seus “Prelúdios Poéticos”. Suponho nada terem de comum esses versos com o gênero a que Juvenal se consagrou depois, tornando-se inimitável. Tenho mesmo motivos para afirmar que os “Prelúdios” se cingiam muito de perto a modelos que não eram, como para uma grande parte dos poetas de então, Lamartine ou Byron.[2]
Note-se que o autor de Aves de arribação demonstra claramente não ter à mão o livro de Galeno, usando expressões como “Suponho” ou “Tenho mesmo motivos”. Infelizmente, durante muitos anos os Prelúdios poéticos, devido à sua raridade, eram inacessíveis, e com base principalmente na autoridade de Antônio Sales cheguei a acreditar fossem ainda neoclássicos os primeiros versos do poeta, não obstante sua convivência, na então Capital do Império, com Machado de Assis, Quintino Bocaiúva, Joaquim Manuel de Macedo e outros vultos do Romantismo brasileiro.
Foi então que um amigo, o saudoso bibliófilo cearense José Bonifácio Câmara, forneceu-me cópia do livro, em cuja folha de rosto se lê: “PRELÚDIOS POÉTICOS / de / Juvenal Galleno da Costa Silva / Natural do Ceará / (vinheta com uma lira enramada) / Rio de Janeiro / Typ. Americana de José Soares de Pinho / Rua da Alfândega n. 210 /
Folheando esse livro, deparei-me logo com a presença avassaladora do Romantismo, não somente na dicção do poeta cearense, mas também nas epígrafes de Victor Hugo, Alfred de Musset, Lamartine, Alexandre Herculano, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Gonçalves de Magalhães e outros.
Os metros usados são típicos da corrente, como o decassílabo, em “Numa noite de luar”:
Ah, vem querida virgem, vem meu anjo;
Tão medrosa não fujas, cara amante!
Contempla o vasto mar, contempla a lua,
Ouve a onda gemer pouco distante.
Como o verso de sete sílabas, ou redondilho maior, em “O Cravo desprezado”:
Em teu raminho verdoso
Eras belo a vegetar!
Tão garboso, pelos ares
Doce aroma a espalhar.
Não falta o eneassílabo, verso de nove sílabas, em seu andamento anapéstico. É o caso de “A Enjeitada”:
Eu a vi!... Triste pranto banhava
Sua face tão linda e corada!...
Era jovem e já desditosa,
Era, oh Deus! uma triste enjeitada!...
Nem o hendecassílabo iâmbico-anapéstico, o mesmo que abre o poema “I-Juca-Pirama” de Gonçalves Dias. No livro do poeta cearense, temo-lo em “Cismar”:
E a lua vagava nos Céus infinitos,
Tão bela qual virgem sozinha pensando!
E eu era mui triste no adro do Templo
Na laje marmórea, na vida cismando!
É genuinamente romântico o poeta que, em versos cheios de amargura, derrama-se na confissão desses decassílabos do poema “Sou triste”:
Sou triste como a linfa suspirosa
Entre a selva de noite serpeando;
Sou triste como a rosa murchecida,
Que a fera ventania vai levando...
O subjetivismo, a tristeza explícita, as comparações, o vocabulário, a adjetivação, tudo nesses versos remete para a escola de Musset e Lamartine.
É verdade que, às vezes, ressumam leves reminiscências neoclássicas (o que é compreensível num leitor de Gonçalves de Magalhães), como neste trecho, em tetrassílabos (de quatro sílabas), de “Adeus, Aratanha!”:
Triste suspiro
Solto do peito,
Que da saudade
Jaz tão desfeito!
Mas diga-se a verdade: de neoclássico há aí unicamente o metro. Esse suspiro saudoso é característico da escola romântica, dentro da qual nasceu literariamente o jovem poeta.
Entretanto, não foi apenas Romantismo que encontrei nos versos desse livro: lá estão, vivas, se bem que ainda não em sua melhor forma, as notas regionalistas precursoras da poesia de raiz popular que haveria de consagrar Juvenal Galeno.
E antes que alguém afirme que os poemas do livro são ainda bisonhos, bem longe da arte de “A Jangada” ou do “Cajueiro pequenino”, lembro que em literatura há dois tipos de importância, a estética e a histórica. Os Prelúdios poéticos têm valor histórico porque abrigam os primeiros textos de caráter romântico e regionalista do poeta, inspirados pela musa popular.
Distante de sua terra natal, espraiava-se o bardo, em junho de 1856, nos heptassílabos de “A Noite de S. João”:
Em minha terra a estas horas
Eu sorria alegremente,
Tirava sortes co’as moças,
E brincava tão contente!
Era ledo e folgazão
Em noite de S. João!
Pulava destro e sorrindo
Por cima duma fogueira,
Aplaudido sendo sempre
Por menina feiticeira!
Brincava com tantas belas,
Por S. João ― compadre ― delas!
Era sem dúvida o prenúncio daquele poeta observador que, embora romântico, anotava de maneira mais ou menos realista todas as facetas do viver do nosso povo. No mesmo poema, há este trecho que revela a crença das jovens casadoiras:
Um sorriso de menina,
Que tirou sorte bonita...
Um suspiro doutra moça,
Que na sorte lê: ― desdita!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma vai atrás da porta
Co’a boquinha cheia d’água,
Ouve um nome... é do seu noivo,
Tem prazer ou sente mágoa!
Também o homem do mar, que haveria de merecer-lhe versos duradouros, está presente nas rimas do estreante, como em “A Canção do jangadeiro”, na qual diz, entre outras coisas:
Rema, rema, jangadeiro,
Vai tua esposa abraçar,
Ver os tão tristes filhinhos,
Que já choram de esperar!
Rema, rema, jangadeiro,
Pobrezinho aventureiro!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Tua esposa, cuidadosa,
Teus vestidos a enxugar,
Quanto é terna e desvelada,
Quanto é firme o seu amar!
Rema, rema, jangadeiro,
“A Canção do jangadeiro”, como vários outros poemas do livro, foi escrita no Ceará, em 1855. Desse mesmo ano é a “Cantiga do Violeiro”, que traz esta indicação entre parênteses: “poesia popular”, o que é significativo. É esse poema formado de versos de sete e de quatro sílabas:
Nas cordas desta viola
Quando toco e vou cantando,
Meu coração contristado
Em prazeres vai nadando.
A vida passo
Assim cantando,
Assim tocando
Numa função!
D’amor o laço
Já me prendeu!
Já se rendeu
Meu coração...
Não é fora de propósito imaginar que Gonçalves Dias, ao receber do então jovem poeta um exemplar de seu livro, viu que nele o que havia de mais original eram os poemas de cunho popular, daí, sim, o conselho para que o autor desenvolvesse essa faceta de sua inspiração.
Os Prelúdios poéticos representam, a meu ver, o marco inaugural, não da literatura cearense (pois sigo a opinião de Dolor Barreira, ao considerar como tal as produções dos Oiteiros, do tempo do governador Sampaio), mas do Romantismo no Ceará, o que não é pouco.
Ao enfrentar pela primeira vez o público ao qual se destinavam seus versos, o jovem poeta se apresentava timidamente, escrevendo com humildade palavras deste teor: “Quando lerdes este livro, lembrai-vos de seu título, da tenra idade de quem o escreveu, e sede indulgentes.”[3]
Diante de tudo que aqui foi exposto, não há razão para que se repita a afirmação infundada de que os Prelúdios poéticos nada tinham de romântico ou de regional.
Juvenal Galeno, já em seu livro de estreia, fazia palpitar, ainda que timidamente em seus versos de principiante, a alma do povo cearense, da qual ele seria, nove anos mais tarde, o legítimo intérprete, nas Lendas e canções populares.
domingo, 26 de setembro de 2010
sábado, 25 de setembro de 2010
Lançamento "Juvenal Galeno: obra completa", dia 27 de setembro na Casa de Juvenal Galeno
Data: 27 de setembro de 2010, a partir das 19horas
Local: Casa de Juvenal Galeno (rua General Sampaio, 1128, Centro - ao lado do Theatro José de Alencar)
Apresentação da Coleção: Sânzio de Azevedo
Sobre Juvenal Galeno: obra completa
A Coleção Juvenal Galeno: Obra Completa faz parte da série Memória da Coleção Nossa Cultura da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, planejada por ocasião das comemorações dos 90 anos de fundação e de ação cultural da Casa de Juvenal Galeno (1919-2009), residência construída pelo Poeta, em 1888, e que ele assistiu ser transformada em centro cultural, por atenção de suas filhas, Henriqueta e Julinha Galeno, no ano de 1919 (Juvenal faleceu em 1931, aos 95 anos incompletos).
A Casa sempre teve seus saraus e eventos frequentados por artistas e intelectuais, locais e nacionais — com ênfase nas décadas de 30 e 40 do século XX. Também na Casa, surgiram e se reuniram diversas associações e entidades de cunho literário, popular e folclórico como o Clube dos Poetas Cearenses (nos anos de 1970), Academias de Letras (Academia de Letras do Ceará, Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará, etc.), a Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno (fundada em 1936 pela própria Henriqueta), o Centro de Cordelistas do Ceará e outros mais. Firmou cada vez mais o seu papel, evidenciada sua natureza popular, de difusão e incentivo à cultura local, ao acolher escritores, jornalistas, pesquisadores, estudantes, interessados em geral, e ao promover as tradicionais Noites de Viola e preservar e disponibilizar o rico acervo da biblioteca de Juvenal Galeno e de Mozart Monteiro.
Aspirávamos produzir um trabalho que fizesse jus à memória do Poeta, principalmente em respeito às comemorações dos noventa anos de fundação da Casa de Juvenal Galeno e que servisse de referência aos futuros pesquisadores, pois cremos que esta Coleção provocará o surgimento de investigações e análises mais aprofundadas, elaboradas e relevantes sobre Galeno. Na Casa de Juvenal Galeno, por certo, muito se há por fazer, descobrir e revelar. Não se enganem, é mesmo um convite.
Modestamente, dirigimos nossos esforços em abrigar em Juvenal Galeno: Obra Completa todos os títulos publicados, a maioria, em forma de livro durante a sua vida, ou em caráter póstumo: (1) Prelúdios Poéticos/1856, (2) Quem com Ferro Fere, com Ferro será Ferido/1859 (nunca impresso) e Canções da Escola/1871, (3) A Machadada:poema fantástico/1860 e A Porangaba:lenda americana/1861, (4) Lendas e Canções Populares/1865, (5) Cenas Populares/1871, (6) Lira Cearense/1872 e (7) Folhetins de Silvanus/1891, (8) Cantigas Populares/1969 e (9) Medicina Caseira/1969.
Alguns dos títulos são tão raros que nunca tiveram uma segunda edição, missão assumida pela nossa Coleção que traz Prelúdios Poéticos, marco do Romantismo no Ceará, Canções da Escola e o fac-símile da Lira Cearense.
Quem Com ferro Fere, Com Ferro Será Ferido, única participação de Galeno na dramaturgia, cuja encenação aconteceu pela primeira vez, em Fortaleza, em 1861, e que segundo o Dicionário Biobibliográfico do Barão de Studart “não foi impressa”, chegou-nos às mãos, quase por um acaso, por Fernanda Quinderé que, por sua vez, conseguiu o texto digitado por Marcelo Costa, pesquisador do teatro cearense, sobre o original manuscrito de Juvenal Galeno, parte do acervo pessoal do, também ator e pesquisador, Ricardo Guilherme. Não perdemos tempo e incluímos, na íntegra, a PRIMEIRA EDIÇÃO de Quem Com ferro Fere, Com Ferro Será Ferido, após 151 anos de sua produção. Um resgate documental de grande importância não só para a literatura, mas também para o teatro cearense.
Impacientes, no desejo de oferecer mais de Galeno para o leitor, introduzimos entre os títulos apresentados, estudos críticos (Sânzio de Azevedo, Batista de Lima, Dimas Macedo, Georgina da Silva e outros), discursos, pesquisas, cartas, originais, ilustrações, enfim, “pistas” para a maior aproximação do leitor com o Poeta, este tão profundamente humano que marcou de forma pioneira muito da história de nossa literatura.
Nesse afã, elaboramos, com fins de edição crítica, uma Cronologia Comentada de Juvenal Galeno, devidamente ilustrada, com ênfase na sua história, na sua obra e na sua Casa, configurando o aspecto crítico da Coleção apresentada.
Acreditamos que Juvenal Galeno: obra completa trata-se do melhor que já foi publicado de Juvenal Galeno, uma nova fronteira de resgate e preservação realizada com dignidade, dedicação e rigoroso compromisso, acolhendo o Poeta e à sua obra com o respeito e reverência necessários a quem faz cultura, e, ao mesmo tempo, um estímulo para que o mercado editorial, em especial o cearense, escolha outros tantos autores injustamente esquecidos e os tragam de volta para que brilhem nesse novo tempo.
Enfim, se não atingimos nosso objetivo, com certeza nos aproximamos bastante dele, mais do que poderíamos, não fosse o empenho e entusiasmo do Secretário da Cultura, Prof. Auto Filho, e de uma pequena equipe — em especial de Sânzio de Azevedo, de Antônio Galeno e, num primeiro momento, de Jorge Pieiro — à obra daquele que, nas palavras de Freitas Nobre, “foi um sopro de vida para o seu século”.
Raymundo Netto, organizador e coordenador editorial de Juvenal Galeno:obra completa
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
"Lançamento de Livro V: A 'Se Achademia' de Letras", crônica de Raymundo Netto para O POVO
“Se achar”, termo em vulgar em toda a cercania, parece reunir um grande mal de alguns de nossos escritores. Sabido é que a vaidade ao mesmo tempo que cega, envenena e contagia, por outro lado, para alguns, tem efeito contrário, provocando constante busca (entenda-se leitura) e aprimoramento na sua práxis criativa.
Às vezes, é tanta a arrogância, e em cordões os arrogantes, que chegamos a duvidar haver no Ceará espaço para tanta barriga, mesmo quando esta é disfarçada no pano passado, apertadinha no cinto abaixo dos peitos. Completamente despidas, dentro dessas barrigas, majestosas majestades se coçam a cavaquear com o “ser achante” sobre as suas qualidades, virtudes e originalidade de seu talento. Alguns, reparem, têm o hábito de falar, “aparentemente”, sozinhos.
Pena que por preguiça, pouca disponibilidade de tempo ou talvez pela simples e indisfarçável inabilidade para a coisa, o incauto acaba por se achar completo, em sua melhor forma, o que não podemos dizer de sua produção, quando esta nos é revelada, e se o é...
Uma vez, numa das crônicas anteriormente publicadas, escrevi que “quando o autor e/ou sua obra são bastante aplaudidos pela crítica e público, das duas, uma: ou eles são muito bons ou são, realmente, muito ruins!” Nada mais verdadeiro se tratando desse mundo tão incompreensível (diverso?) que é a literatura. Ademais, acredito: “são tantas as literaturas cearenses”...
Logo acontece o previsível: a tal criatura além de “se achar” sozinha, ainda se acha noutros que, por também se acharem, engrossam as fileiras das pretensas erudições e decidem, julgando-se (ou achando-se) vanguardistas, criar mais um silogeu, sodalício, sociedade ou academia, no caso a “Se Achademia de Letras”.
Alguns, infelizmente, reconheço haver exceções, precisam de um medalhão para garantirem o que no papel não o conseguem.
Mas, medalhão nos peitos, e imortalidade cucuricando-lhe à cabeça, nada mais os segura. Entre loas, panegíricos e discursos laudatórios, assumem suas cadeiras, elegem seus patronos, e montam a sua “ilha”. Digo “ilha”, pois fora dela toda a vaga literatura circundante passa a não mais existir. Nem por meio de mensagens de garrafas ou sinais simbolísticos de fumaça. Nada. Só “nós” e o estimado dicionário enteiado por verbetes do século XIX e epígrafes em latim.
Para falar a verdade, existem palavras que não fazem falta no dia-a-dia. Uma delas é panegírico. Prestando bem atenção, percebe-se que soa até mal, rima com jerico — o que não cabe aos que têm inclinação às coisas do espírito — e parece nome de remédio ruim, não? Tal engenho, fadado ao fracasso, deveria ser esquecido e condenado à fogueira do desuso, o que nos prestaria um serviço intemporal.
E no texto? Chorrilhos de sonetos de pés já engessados e versos livres, mas tão livres que se vão e não ficam, não ficam nunca... Tem também o se achadêmico “ficha limpa”, aquele que embora integre tal entidade, nunca escreveu nada.
Outros elegem o discurso. Adoram discursar. Verdadeiros torturadores da boa fé alheia, não medem palavras, ou melhor, as catam — à lupa e pinça — em dicionários, e se extasiam ao encontrar as mais extravagantes: “Ah, quero é ver se alguém sabe o que é isso...”
O ser gente é sempre uma cacimba de mistérios. Vamos lá:
Um dia, estava eu numa dessas agremiações, convidado a falar como desconhecido à “ilha”, quando dirigiram-se a mim três dedinhos de senhora muito elegante que delicadamente apanhei ainda no ar. Apresentou-se: “Sou membro da Academia X, da Associação Y, colaboradora da entidade Z e blá-blá-blá... — Ficamos com as mãos num lequeado inútil, quando rompi o breve silêncio com um inevitável: “Mas qual o seu nome mesmo, senhora?”
Outra história: um casual encontro que tive com um “se achadêmico”.
Anos antes, havia recebido um livro dele por intermédio de um amigo que desconfiara sê-lo de meu gosto pelo caráter memorialista. Na verdade, era um livro graficamente feio, de escritura rala, mas por se tratar de presente, guardei-o. Não sei como — tenho a memória ainda mais rala —, mas ao encontrar aquele sujeito, consegui lembrar-lhe o nome. Para quê? O homem inflou os peitos, cerrou o cenho, coçou a barriga (atiçou o rei nu) e perguntou o meu nome. Respondi-lhe. Ele divisou o horizonte e balançou negativamente a cabeça, confirmando a minha desprezível existência. “Muito prazer, então”, falei. Mas o homem ficou nas nuvens e pôs-se a achar que eu tinha tempo para ouvir-lhe a fastidiosa história literária. Formado em Letras, mantinha um jornalzinho — o mais lido em seu bairro —, escreveu tantos livros, e mais tinha a publicar nas gavetas, escrevia para um grande jornal (no caderno reservado ao leitor...) e, não me impressionei, fazia parte da Academia Fulana, União Sicrana, Sociedade Beltrana e por aí vai.
Enquanto ele falava, eu pensava “na minha ingenuidade, havia cometido um grave erro: reconhecera o escritor cearense! Droga! Este, reconhecido, é inatingível, inalcançável, imanente e imaneta!”
Outro caso: um escritor — para piorar esse era poeta —, empacotador de supermercado, muito simpático, contou-me que havia mandado fazer nas laterais das pernas de suas calças, bolsos imensos onde guardava seus livros, estes, financiados por personalidades conhecidas da nossa boa sociedade. Assim, ao colocar os pacotes dos clientes no bagageiro do carro, aplicava-lhes o golpe: sacava mais um livro de poemas das calças (tinha vários títulos). Nesse momento sorriu e disse-me que sua obra era um best-seller (ou um Peter Sellers, não lembro bem), e que havia sabido, na semana passada, que seu nome concorria ao Nobel. Não acredita? Tome!
Conheço entidade acolhedora de esperançosos escritores — esperançosos porquanto ainda não conseguiram escrever — que não sei se pela pouca habilidade criativa, ou pela crença verdadeira de que não temos memória mesmo, opta por copiar o nome de agremiação do passado, não se conformando em também copiar-lhe, aos berros, os seus versos, os títulos de periódicos, os seus rituais e outras coisas mais. Podemos chamá-la de “Academimeógrafo” ou “Literatura de Regressão”, para acompanhar a moda espírita...
Tem também a história triste de um “se achadêmico” que lamentava não poder concorrer a prêmio literário porque não poderia correr o risco de perder por se tratar, segundo ele, de “um nome”. E de outro que conta o tanto que fez “pelo Ceará” e que sofre boicotes de todos, mas apenas dos que não o leem e ainda não descobriram o quanto ele é único... Mas se acha...
Discutindo sobre isso com um conhecido, antes de confessá-la em crônica, ele aborreceu-se e afirmou que falar mal de intelectual é coisa de intelectual. Disse-me que eu “me achava”... Pode ser, tais germes do “se achismo” nos espreitam silenciosos até tomar-nos toda a chaguenta alma. Então, imbuído de um pouco da humildade que me resta e cônscio de minha ignorância, recolhi-me ao silêncio da Casa Verde, em despedida ao mundo visível.
Para mim, rogo, desocupado ledor, a sua compaixão; à “Se Achademia”, as batatas!
Raymundo Netto. Interno da Casa Verde, sucursal Ceará, cujo diretor é o Bacamairton Monte. Contato: raymundo.netto@uol.com.br/ blogue AlmanaCULTURA: http://raymundo-netto.blogspot.com.br