I
"Granja para os Granjenses". Assim foi denominado o Ponto de Cultura inaugurado no município de Granja, iniciativa da ONG dirigida pela Maria Ximenes, uma profunda conhecedora da cultura e da gente da cidade.
E foi por ocasião da inauguração que a Maria nos granjeou o lançamento de “Dolentes”, obra maior do Simbolismo no Ceará, livro póstumo do poeta granjense Lívio Barreto, um dos fundadores da agremiação literária bastante saçaricada por cá: a “Padaria Espiritual”.
Eu não conhecia a cidade e achei que lançar a nova edição de “Dolentes”, publicada pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, na terra natal do autor, inclusive numa data que remetia à sua história, ser-lhe-ia uma feliz homenagem. Não sei, mas vem-me sempre a lembrança: “um Profeta só é desprezado em sua terra” ou “santo de casa não faz milagre”...
Ao chegar, à vista dos renques de carnaubais, o céu faiscava num calor flagrante. Disseram-me: “Aqui, para cada morador existe um Sol!”. Atravessamos a cidade de ruas estreitas. Percebi rapidamente que ela, quase toda, ainda trazia na pele de cal as marcas da intensa quadra chuvosa, noticiada fartamente pela imprensa, que lhe banhara todos os cantos. Estranhei que, passado algum tempo, extensas gretas ainda marcassem de pedras soltas as descuidosas vielas.
A Ponte Metálica, às margens tão desverdeadas do Coreaú, estava interditada. Do casario antigo, bastante avariado, rompia das rótulas, das telhas, dos balcões, das portas carcomidas, o mato. Num poste, a placa enferrujada anunciava como “Arquitetura Histórica” um terreno de mato alto, troféu da conquista da violência granjeira e capitalista local.
A belíssima Estação, arquitetura de quase 130 anos, a desabar a qualquer momento, acolhida pelo descaso, não recebe mais ninguém a não ser as crianças que brincam — desconfiadas com a nossa estranha presença — de fazer rolinhos de papel transformados em fumaça de estrelas a evolar-se solta à luz do dia.
Vizinho à Estação, majestoso como um palácio em ruínas, um prédio escuro ostenta em sua entrada os dizeres “Maternidade de Granja” — embora nunca tenha assistido vir à luz um único granjense — revelando o desperdício e o abandono.
Andei pela cidade vazia. Ninguém às ruas. Pelas portas via, aos fins de oitões, redes a balançar. Calor demais. Conversei com alguns moradores: desânimo, desestímulo e ceticismo.
Alguns me contaram das chuvas que lavaram a cidade, principalmente o prédio da Prefeitura e do Fórum: “E olhe que mesmo assim, ainda não deu jeito...” — riam-se.
Foi quando diante da sequidão do tempo e dos humores abafadiços, vi surgir, num cimo, uma casinha amarela de janelas azuis que brilhava vivamente na frágua das fragas cinzentas dispostas num corredor de aves ligeiras. Perguntei que local era aquele, no que, então, me responderam: “Ah, ali? É o Ponto de Cultura. É naquela casa que ele vai funcionar”. Vi uma luz...
II
Fizera noite em Granja. Mesmo tendo que competir com o horário da Missa, a casa amarela do Ponto de Cultura estava apinhada de gente bonita. Ao contrário da tarde, o ar estava úmido, o vento frio, o clima aprazível. As pessoas — todas se conheciam — chegavam e sentavam-se em frente ao palco ao lado das enormes pedras cinzentas e de árvores escurecidas.
A Maria, toda em branco — “O Livinho gosta de branco!” — nos apresentava toda a casa e seus recintos decorados, por todos os lados, de crianças e jovens que se preparavam para atuar em esquetes, danças, performances, música, declamações etc.
Foi quando chegou, com ares de atrasado, o próprio Lívio Barreto. Rapaz novo, nem trinta, moreno pálido, olhar melancólico e expressivo, bigode ralo sobre poucos lábios, corpo franzino encafuado em uma fatiota modesta. Trazia “Só”, por debaixo do braço, e um cachimbo dormente à mão.
A Maria apresentou-nos.
Disse-me que esta seria a primeira vez que assistiria ao lançamento de seu livro “À Toa”.
Emendei: “Dolentes”, você quer dizer...
— Sim, “dolentes” como as súplicas dos granjenses à cidade que resiste “à toa”. Sempre achei que “À Toa” fosse o título mais adequado...
Após a apresentação dos demais artistas, fez questão de falar ao povo de sua terra. Tímido, mas firme, declarou-nos o que ora transcrevo a vocês:
— Agradeço a todos que aqui vêm ouvir este pobre rimador granjense. Acreditem, não há dia que valha-me este dia, todo cheio das pombas e da aurora. Lamento, entretanto, dizer que a andorinha volta ao lar se baixa a noite sombria. Eis-me náufrago e só!
Meus ideais, meus sonhos, meus castelos alvos, de escumilha, caíram todos... e onde Deus um mundo pôs, acho uma ilha. Pela cidade, tristeza só! Vestem-se os muros pardos, escuros, de limo e pó.
No ar passa uma tristeza mole de indolência. Dir-se-ia que as coisas bocejam. Entre tudo isto, pareço uma indecisão: Quando há de o dia esplêndido chegar dos nossos sonhos vermos realizados? Se bem que sempre unidos a esperar já há tanto tempo andamos separados!...
Nos lilases das tardes, enquanto forte chovia, pensava: vamos, inverno, molha, molha, não descansa, p’ra ver se quando te fores vêm para os campos as flores e para nós a esperança.
Hoje, lançando o olhar paciente, sem comoções, sem ansiedade, só vejo a flor roxa e tremente, tranquila e fria da saudade! Creiam, meu coração é uma fornalha acesa, uma cratera a vomitar no abismo. — abriu uma pausa, bebeu água, apertou com a mão o baixo das costelas esquerdas e continuou:
— Amigos, edifiquemos castelos de oiro e de luz, mas para vê-los, voemos para os espaços azuis, para só de longe vê-los. Longe, aonde não chegue a voz, para evitar que os castelos desabem por sobre nós. Não se deixem curvar a fronte, quero lábios a rir risos bons, estridentes, e, em nome das lágrimas, não chores!
Lívio foi aplaudido, e mesmo em sorrisos reservados, levado ao balcão — detesta balcões — para autografar seu “Dolentes”.
No dia seguinte, cedo partimos. Na entrada da cidade, passamos por uma vela amarela gigante, também depauperada, na qual a chama, parece-me, não mais tremeluz, e, mesmo assim, pedi ao Padroeiro que iluminasse o povo daquela cidade cuja beleza e graça se perdiam nos destroços inexplicáveis do esquecimento.
Lívio Barreto (18.02.1870 - 29.09. 895), o Lucas Bizarro da Padaria Espiritual, nasceu em Granja, Ceará. Escreveu e fundou alguns jornais literários como O Pão, Iracema e A Luz. Durante muito tempo teve que, com desgosto, exercer trabalho no comércio. Faleceu em Camucim, por detrás de um balcão de trabalho. Pouco tempo depois de sua passagem, os colegas da Padaria Espiritual publicaram seu Dolentes.
Raymundo Netto. Contato: raymundo.netto@uol.com.br.
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