sábado, 22 de agosto de 2015

"Carta cansada", conto de Raymundo Netto para o AlmanaCULTURA


Raymundo Netto descansando com a adormecida Ariadne, 
filha do rei e esquecida por Teseu num jardim francês.

Veio-lhe a carta. Poderia ser qualquer uma, mas não, era cansada. Uma carta cansada, exaurida de lágrimas, qualquer resto delas, de fadiga ou de tédio, em desalinho, opressa a batidas de coração.
Ele, nem mesmo para si guardava a dúvida: de nada sabia do amor. Numa arrazoada assertiva o teria como um horizonte distante e inalcançável, como mentira, eternamente paralelo à vida, pelo menos a dele.
Não por isso negasse dias ter pela remetente sacrificado a palavra inda quente entre os dentes, nem sabia o porquê. Seria de mais grado a ambos deixar-se vomitar o “eu te amo”. Mas qual. Fitava-lhe os olhos de âmbar e o sorriso de menina.  Guardava na polpa dos dedos aquele desejo, quase em súplices joelhos, em forma de impressões e ardor da pele dourada. Buscava no lóbulo da orelha sob o cabelos furiosos o corpo que se expandia num abraço de acolhê-lo todo e inteiro – carne, alma e algo mais indescrito – em noites intermináveis de sempre ter fim. Agarrava-se aos cabelos como a tomá-la para si, para dentro de si, e beijando-lhe os olhos para não cair de sua lembrança.
No escuro, sua voz ainda corria nos seus olhos e ouvidos: “Eu tentei... Morri no ano passado, mas nesse ano eu não morro. Talvez eu tenha entendido ter chegado a hora de não querer mais entender. Seja feliz e adeus.”
“Adeus”, repetia, desbastando em retalhos as memórias que lhe vinham uma a uma, atravessando o peito e saltando do trampolim para o malogrado esquecimento.
Noutros dias, ao beijar outra mulher, sua boca estranhou a ausência doutra boca. Seus dedos, como se perdidos na multidão, procuravam reconhecer em novo corpo as mesmas e aquelas impressões e ardores que repousavam à pele dourada. Entretanto, nada encontraram e a noite volveu-se escura e fria. A sua ausência materializou-se e desabou em chuva, revelando no espelho que o seu pior castigo nem era ser ele mesmo, mas o risco de viver sem o perigo daquele abraço.
Do vizinho, uma radiola arranhava em long-play antigo: “entre os defeitos que tenho um é gostar de você.”
“Conte-me uma história...”, indicava no silêncio delicado dos olhos, enquanto na fúria dos azuis do luar ela despediu-se num abraço calcado em morte, em solidariedade de vazios e de saudades, num frouxe rompante:
“Eu te amei, eu te amo, não te amarei nunca mais!”